quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

O MDN presidiu a um colóquio...

João J. Brandão Ferreira

O senhor Ministro da Defesa, Dr. Santos Silva, foi presidir à sessão inaugural do XIX colóquio de História Militar (16/11/10), que este ano versou o tema da queda da Monarquia e a implantação da República.

O MDN não se limitou, porém, a presidir à sessão e a dizer umas palavras de circunstância, não, ele próprio fez uma conferência. Por sinal notável.

Notável, não propriamente no conteúdo mas, sobretudo, na forma inteligente como encadeou a substancia e a argumentação para atingir o seu objectivo; e, igualmente, pela forma como foi dita. O Sr. ministro é um orador exímio.

Qual era então, o objectivo do MDN? Pois era o de fazer um balanço algo equilibrado da I República – ao contrário do que fazem próceres republicanos mais fundamentalistas –, ignorar olimpicamente o “Estado Novo”para, reportando-se à actualidade nascida no pós Abril de 1974, nos dizer que agora estamos no bom caminho, pois não se tem cometido os erros que se seguiram ao 5 de Outubro de 1910.

O discurso é todo ele voltado para o futuro e não para o passado, sem demagogia e aproveitando para fazer doutrina, cuja importância o orador aprendeu, certamente, durante a sua formação politica na juventude.

Sem embargo o discurso suscita alguns comentários.

O Dr. S. Silva começa por tentar justificar a República pelos “valores” republicanos emergentes e pela necessidade de mudar o regime a fim de se resolverem os problemas económicos, financeiros e sociais existentes, sendo a “regeneração” do país sinónimo de republicanismo.

Não cremos que o Dr. S. Silva tenha qualquer razão. Em primeiro lugar porque os tais valores alegados já existiam, na sua maioria, desde a implantação do Liberalismo, em 1820. A única grande diferença era a figura do chefe do estado não ser eleita por meio de votos.

Por outro lado, quaisquer que fossem os “valores” alegados, estes ficaram irremediavelmente manchados pelo regicídio e pela baixa politica contumaz desenvolvida pelo Partido Republicano (PRP) e seus apêndices/tutores.

Finalmente, usaram a insurreição armada para a tomada do poder, sem haver qualquer factor de ordem política, social, de ameaça interna ou externa, etc, que justificasse a acção tomada. E nunca fizeram sequer um referendo para legitimarem a nova “ordem”.

E também ficou provado à saciedade que a mudança de regime não só não regenerou a Pátria, nem resolveu qualquer problema, como os agravou a todos.

Passou, de seguida, o MDN a analisar o “passivo” e o “activo” da I República.

Como passivo indicou – e bem – a sucessão de decepções consubstanciadas nas promessas não cumpridas (quebra de legitimidade social, não implementação da descentralização administrativa, diminuição das liberdades politicas, intolerância e violência politica); as acções de governo que se revelaram serem rupturas excessivas ou deslocadas (a questão religiosa, o tratamento do operariado); aquilo a que chamou de “continuidades incríveis” (o Partido Democrático ter feito suas as listas das clientelas de anteriores partidos monárquicos; o partido no poder nunca perder eleições) e, ainda, o que considerou serem os grandes insucessos republicanos: o combate ao analfabetismo e a participação na I Grande Guerra, nomeadamente na incapacidade em retirar dividendos na conferencia de paz.

Sobre isto temos apenas a dizer que, infelizmente, o quadro do passivo dos 16 anos daquela “balbúrdia sanguinolenta” (Eça de Queiroz dixit), é muito mais negro do que aquele pintado por quem gosta de “malhar na Direita”.

E passou, de pronto, aos activos:

Progresso na forma politica, referindo o parlamentarismo como a expressão de diferentes opiniões; a libertação de formas de tutela religiosa; a criação do registo civil; modernização dos quadros normativos que regulavam a vida social e o sistema nacional de educação.

Neste âmbito as conclusões do Sr. ministro são mais facilmente desmontadas, senão vejamos:

O parlamentarismo não representou nenhuma melhoria política, não só porque já existia desde 1820, como nunca funcionou bem, tendo piorado após o 5 de Outubro a ponto de se poder afirmar que o que passou a existir foi uma anarquia parlamentar; a libertação de tutelas religiosas só em parte representa um ganho (no sentido de eventuais constrangimentos à liberdade individual), já que passou a haver uma “tutela” civil, ou laica, além do que o modo como trataram a Igreja, os padres e os religiosos, não tem qualquer qualificação; quanto ao registo civil era uma tarefa que fazia parte das atribuições do Estado. Se o serviço era prestado pelas autoridades religiosas, só se lhes devia dar crédito por isso, pois mais ninguém o fazia…

Por outro lado, não se entende muito bem, qual o avanço no quadro normativo da sociedade, a não ser naquilo em que mudou o simbolismo e nas referências monárqui-

co/nobiliárquicas. As promessas, como o orador referiu, também não foram cumpridas neste particular. E nem sempre aquilo que é julgado “avançado” é o mais adequado para a especificidade do povo a que se aplica…

O sistema educativo, esse sim, tinha bastantes aspectos positivos e foi pena não ter dado os frutos que se esperavam, por via da instabilidade que afectou todos os sectores da vida nacional, e que se tornou crónica.

Aqui o Dr. S. Silva fez uma pausa para ignorar o Estado Novo, desclassificando-o de “República” e crismando-o de “Ditadura”, e para afirmar que aquele tempo foi de “regeneração no campo republicano”. Dá ideia de que o país esteve imerso numa espécie de “buraco negro”.

Apenas alguns comentários: em termos de ciência politica podemos dizer que o termo “ditadura” se deve aplicar ao período que vai de 1926 a 1933, em que a Constituição de 1911 foi suspensa e não foi substituída por outra. E podemos, até, dividir a ditadura em três, ou seja uma ditadura militar, entre 1926 e 1928; uma ditadura financeira entre 1928 e 1932 e uma ditadura politica, até à entrada em vigor da Constituição de 1933.

Por isso, quer o MDN queira ou não, Portugal continuou a ser uma República, não só porque assim era designado constitucionalmente, como a prática obedecia ao princípio republicano de governo. O que não havia era o parlamentarismo como tinha existido no constitucionalismo monárquico e na democracia directa, após o 5 de Outubro, que tinham, aliás, revelado ser um verdadeiro desastre politico para o país.

Mais ainda Sr. ministro, o plebiscito efectuado em 1933, constituíu até, a única forma de legitimação do novo regime feita até então.

E se, por acaso, tiver dúvidas do que as pessoas preferem, se um ditador integro e competente, ou uma mão cheia de democratas corruptos e, ou, ignorantes, tente fazer uma sondagem e verá como fica esclarecido…

Mas passemos ao presente, pois essa era a grande aposta do auto imposto conferencista. Agora (defendeu), é tudo diferente – subentende-se, que para melhor – da I República que, segundo António Sérgio “não conseguiu cumprir os seus ideais”, sic. Hoje o “plano de relação com a I República é fundado na distância”, e citando Popper, veio dizer que a “actual Democracia é o regime político que permite que os governos percam eleições”. Inteligente este ministro.

Tudo agora é diferente, “entrámos na UE, existe muito mais parceria social” (seja lá o que isso for). Acusou Afonso Costa de pretender que “a República fosse cativa dos republicanos”, e defendendo A. José de Almeida que opinava “ser o regime de todos os portugueses”, e que “após o 25 de Abril a situação é muito mais clara e ninguém se pode arvorar em dono da revolução”. Curioso isto.

Finalizou dizendo que “hoje estamos muito longe da República na questão religiosa – a religião não tem que ser evacuada do espaço público!”, e não estamos “obcecados pela questão jacobino/religiosa”, existindo “muito mais preocupação com a estabilidade politica”, lembrou os “ 45 governos que houve entre 1910 e 1926 – ou seja um governo, em média de três em três meses (após o 25/4 vamos em 30, ou seja um por ano)”, o que parece mesmo assim ser uma média desadequada…

O sistema, defendeu ainda, não “se compraza com a instabilidade nem com o comandamento por vanguardas” – quem o viu e quem o vê! Segundo S. Silva existe hoje a “centralidade da educação” e a “convicção das nossas próprias capacidades”, e remata “ a Nação não deve ser um lugar de depressão”.

Calha não termos, também, sobre esta última parte, a mesma ideia do ilustre sociólogo, começando por dizer que ao fim de 84 anos (1926 - 1974), parecia muito mal não se ter aprendido nada. Mas aprendeu-se pouco.

Comecemos pela “instabilidade”. A seguir ao 25/4 a instabilidade politica e social foi imensa, a ponto de o país ter ficado à beira de uma guerra civil. Isto para já não falar nas terras do Ultramar (convenientemente esquecidas pelo MDN), onde as iniquidades duraram décadas (com alguma excepção em Cabo Verde, S. Tomé e Macau). Contabilizam-se cerca de um milhão de mortos…

No entretanto a instabilidade politica e social na parte europeia que restou a Portugal, continuou, embora sem violência de maior, mas afundando-se a situação económico/financeira, mesmo sendo aguentada pela “pesada herança”deixada pelo regime anterior. E só foi ultrapassada após a intervenção do FMI.

As coisas serenaram com a entrada na CEE (não a UE…), quando começaram a jorrar, uma quantidade astronómica de fundos comunitários, o que permitiu lançar obras públicas em barda, ocupar as pessoas e distribuir subsídios.

Depois inventou-se o dinheiro de plástico e abriu-se portas à especulação financeira e outras. O pessoal perdeu a cabeça e pura e simplesmente passou a navegar-se à vista, estando a classe politica e empresarial muito mais interessada em fazer negócios e tratar da vidinha, do que governar bem e acautelar o futuro. Quanto ao povo entrou na onda e passou a consumir e a endividar-se desenfreada e alegremente. O exemplo vinha de cima.

Ou seja passámos a viver com dinheiro que não era nosso, com riqueza que não produzíamos e acima das nossas possibilidades; não aplicámos os fundos em investimentos que garantissem mais valias futuras e ainda ajudámos a destruir o nosso aparelho produtivo.

Quando os governos começaram a ficar sem dinheiro, os políticos fizeram a única coisa que homens pouco sérios sabem fazer: escamoteiam a verdade e pedem emprestado. Há dois anos que se começou a destapar esta gigantesca farsa (que está longe de ser exclusiva de Portugal), e entrou tudo em paranóia – afinal a nação é um lugar de depressão… Nunca tantos fizeram tão mal, em tão pouco tempo!

O Dr. S. Silva está mortinho de saber que a Instrução (e não a educação, que, também anda pelas ruas da amargura), consubstanciada no sistema de ensino, é um monumental embuste; que os portugueses acreditam tanto nas capacidades do país que passaram a emigrar às dezenas de milhar e que o regime é tão transparente que permite partidos monárquicos, mas impede (artº 288 da CR), que se possa ter um regime não republicano!

Quanto à questão religiosa concedo-lhe que houve umas tréguas e alguma esperteza na acção. Mas há meia dúzia de anos, que o ataque voltou através de ampla campanha de imposição laicista, ghetização dos católicos (e só desses), proibição de crucifixos nas escolas, limitações aos capelães nos hospitais, prisões e quartéis, dificuldades na regulamentação da Concordata, etc, etc. E, sobretudo, na subversão dos costumes, e na defesa da vida humana (divórcio, aborto, educação sexual, investigação genética, eugenia, eutanásia, casamento de invertidos, mudança de sexo, e o mais que estará para vir…).

E fará o Dr. S. Silva o favor de explicar o que é que a desvirtualização da frase de Popper, que resulta na “guerra civil” contumaz de se andar a atirar com os governos abaixo e a arranjar outros, ajuda à governação.

Existe, porém, uma diferença abissal entre a I República e esta III, em que agora estamos: é que os republicanos de 1910 eram, salvo raras excepções, patriotas e nacionalistas. Defendiam o reforço da soberania tanto na Metrópole como no Ultramar; tinham preocupações de defesa e não hostilizavam as FAs como instituição, etc. Os de agora abandonaram o Ultramar de qualquer maneira; evitam os termos “Pátria” e “Nação”, andam a “desmontar”não só as FAs mas todas as instituições nacionais; são internacionalistas e não têm qualquer pejo em alienar soberania.

Tudo somado, vejam bem, ainda prefiro os de 1910…

Os verdadeiros portugueses, Dr. S. Silva, não gostam da República Portuguesa, ou de qualquer outra coisa, mas sim de Portugal.

Passar bem.

Os cinco cavacos

(Autor desconhecido pela Redacção)

Cavaco Silva apresenta hoje a sua recandidatura. Foi ministro quando eu tinha 11 anos. Pode sair da Presidência quando eu tiver 46. Ele é o maior símbolo de tantos anos perdidos. E aqui se fala das suas cinco encarnações.

Sem contar com a sua breve passagem pela pasta das Finanças, conhecemos cinco cavacos. Mas todos os cavacos vão dar ao mesmo.

O primeiro Cavaco foi primeiro-ministro. Esbanjou dinheiro como se não houvesse amanhã. Desperdiçou uma das maiores oportunidades de deste País no século passado. Escolheu e determinou um modelo de desenvolvimento que deixou obra mas não preparou a nossa economia para a produção e a exportação. O Cavaco dos patos bravos e do dinheiro fácil. Dos fundos europeus a desaparecerem e dos cursos de formação fantasmas. O Cavaco do Dias Loureiro e do Oliveira e Costa num governo da Nação. Era também o Cavaco que perante qualquer pergunta complicada escolhia o silêncio do bolo rei. Qualquer debate difícil não estava presente, fosse na televisão, em campanhas, fosse no Parlamento, a governar. Era o Cavaco que perante a contestação de estudantes, trabalhadores, polícias ou utentes da ponte sobre o Tejo respondia com o cassetete. O primeiro Cavaco foi autoritário.

O segundo Cavaco alimentou um tabu: não se sabia se ficava, se partia ou se queria ir para Belém. E não hesitou em deixar o seu partido soçobrar ao seu tabu pessoal. Até só haver Fernando Nogueira para concorrer à sua sucessão e ser humilhado nas urnas. A agenda de Cavaco sempre foi apenas Cavaco. Foi a votos nas presidenciais porque estava plenamente convencido que elas estavam no papo. Perdeu. O País ainda se lembrava bem dos últimos e deprimentes anos do seu governo, recheados de escândalos de corrupção. É que este ambiente de suspeita que vivemos com Sócrates é apenas um remake de um filme que conhecemos. O segundo Cavaco foi egoísta.

O terceiro Cavaco regressou vindo do silêncio. Concorreu de novo às presidenciais. Quase não falou na campanha.

Passeou-se sempre protegido dos imprevistos. Porque Cavaco sabe que Cavaco é um bluff. Não tem pensamento político, tem apenas um repertório de frases feitas muito consensuais. Esse Cavaco paira sobre a política, como se a política não fosse o seu ofício de quase sempre. Porque tem nojo da política. Não do pior que ela tem: os amigos nos negócios, as redes de interesses, da demagogia vazia, os truques palacianos. Mas do mais nobre que ela representa: o confronto de ideias, a exposição à critica impiedosa, a coragem de correr riscos, a generosidade de pôr o cargo que ocupa acima dele próprio. Venceu, porque todos estes cavacos representam o nosso atraso. Cavaco é a metáfora viva da periferia cultural, económica e politica que somos na Europa. O terceiro Cavaco é vazio.

O quarto Cavaco foi Presidente. Teve três momentos que escolheu como fundamentais para se dirigir ao País: esse assunto que aquecia tanto a Nação, que era o Estatuto dos Açores; umas escutas que nunca existiram a não ser na sua cabeça sempre cheia de paranóicas perseguições; e a crítica à lei do casamento entre pessoas do mesmo sexo que, apesar de desfazer por palavras, não teve a coragem de vetar. O quarto Cavaco tem a mesma falta de coragem e a mesma ausência de capacidade de distinguir o que é prioritário de todos os outros.

Apesar de gostar de pensar em si próprio como um não político, todo ele é cálculo e todo o cálculo tem ele próprio como centro de interesse. Este foi o Cavaco que tentou passar para a imprensa a acusação de que andaria a ser vigiado pelo governo, coisa que numa democracia normal só poderia acabar numa investigação criminal ou numa acção política exemplar. Era falso, todos sabemos. Mas Cavaco fechou o assunto com uma comunicação ao País surrealista, onde tudo ficou baralhado para nada se perceber. Este foi o Cavaco que achou que não devia estar nas cerimónias fúnebres do único prémio Nobel da literatura porque tinha um velho diferendo com ele. Porque Cavaco nunca percebeu que os cargos que ocupa estão acima dele próprio e não são um assunto privado. Este foi o Cavaco que protegeu, até ao limite do imaginável, o seu velho amigo Dias Loureiro, chegando quase a transformar-se em seu porta-voz. Mais uma vez e como sempre, ele próprio acima da instituição que representa. O quarto Cavaco não é um estadista.

E agora cá está o quinto Cavaco. Quando chegou a crise começou a sua campanha. Como sempre, nunca assumida.

Até o anúncio da sua candidatura foi feito por interposta pessoa. Em campanha disfarçada, dá conselhos económicos ao País. Por coincidência, quase todos contrários aos que praticou quando foi o primeiro Cavaco. Finge que modera enquanto se dedica a minar o caminho do líder que o seu próprio partido, crime dos crimes, elegeu à sua revelia. Sobre a crise e as ruínas de um governo no qual ninguém acredita, espera garantir a sua reeleição. Mas o quinto Cavaco, ganhe ou perca, já não se livra de uma coisa: foi o Presidente da República que chegou ao fim do seu primeiro mandato com um dos baixos índices de popularidade da nossa democracia e pode ser um dos que será reeleito com menor margem. O quinto Cavaco não tem chama.

Quando Cavaco chegou ao primeiro governo em que participou eu tinha 11 anos. Quando chegou a primeiroministro eu tinha 16. Quando saiu eu já tinha 26. Quando foi eleito Presidente eu tinha 36. Se for reeleito, terei 46 quando ele finalmente abandonar a vida política. Que este homem, que foi o politico profissional com mais tempo no activo para a minha geração, continue a fingir que nada tem a ver com o estado em que estamos e se continue a apresentar com alguém que está acima da politica é coisa que não deixa de me espantar. Ele é a política em tudo que ela falhou. É o símbolo mais evidente de tantos anos perdidos.