quarta-feira, 9 de março de 2016


Eutanásia: compreendo mas sou contra


Luis Carvalho Rodrigues, Observador, 4 de Março de 2016

A questão é que não serão, nem o doente nem aqueles que o amam, a decidir sobre o pedido e oportunidade da eutanásia. Serão funcionários, em gabinetes, às voltas com os seus formulários. Burocratas.

A discussão pública sobre a eutanásia já resvalou para o folhetim, o que tem, pelo menos, a vantagem de manter o assunto nas páginas dos jornais e nos écrans das televisões. Não fosse isso, é bem possível que fôssemos confrontados, um destes dias, com uma decisão da Câmara discretamente publicada em DR entre a promoção de duas vilas a cidade e a proibição de as casas de banho públicas fazerem discriminação de género. Fico satisfeito que o assunto continue a ser discutido porque creio que poucas questões serão, hoje, mais importantes para a res publica.

Devo esclarecer já que sou contra a despenalização. Não são os argumentos morais que me movem. Esses, confesso que os não entendo. Passam da defesa do «direito à vida» para a afirmação de um suposto dever de «não deixar morrer», e daí para a exigência de que o Estado garanta tanto o direito como o dever, com uma ligeireza que me confunde. Imagino que a lógica disto seja evidente para um cristão. Mas eu sou agnóstico e o meu Ocidente faz-se com mais heranças, incluindo a Grécia clássica e a Roma da república, onde o suicídio não era anátema. De resto, o Estado não é confessional. E é do Estado e das leis do Estado que estamos a falar.

Sendo médico, não é também o juramento de Hipócrates, que o bastonário da Ordem esgrime como se fosse a última defesa contra a barbárie, que me comove. O juramento é uma construção histórica e a História muda. Aliás, a versão actual, aprovada em 1983, diz apenas: «guardarei respeito absoluto pela Vida Humana». Não creio que o dever de respeito pela vida humana obrigue a manter vivo um doente em sofrimento. Primum non nocere (antes do mais, não fazer mal) também é um valor médico (que não está no juramento mas todos os médicos têm presente).

O que me faz ser contra a despenalização não é uma questão moral. O grande risco da despenalização é a burocratização do processo. Os que defendem a despenalização argumentam que, ao permitir-se que a morte assistida seja operada por profissionais, estaremos a torná-la-á menos penosa. Para o moribundo, para a família, para todos. É possível, embora tenha dúvidas se não estaremos simplesmente a dar mais um passo na ocultação da doença e da morte que é uma tendência tão marcada na nossa cultura. Seja como for, a questão é que não serão, nem o doente nem aqueles que o amam, a decidir sobre o pedido e a oportunidade da eutanásia. Serão funcionários, sentados em gabinetes, às voltas com os seus formulários. Burocratas. Dizem-me que isso é garantia de isenção. É?

Não vale a pena recordar aqui todas as barbaridades a que a isenção dos burocratas presidiu no passado. Olhemos antes para um caso actual: a Bélgica, onde a despenalização da eutanásia está em vigor desde 2002. A Bélgica, todos sabemos, é um país civilizado, europeu, cordato. Ora bem. Logo em 2009, uma curta carta dirigida ao New England Journal of Medicine referia, diga-se que com curiosa (ou cuidadosa?) displicência, que, em 2007, «1,9% de todas as mortes na Flandres eram resultado de eutanásia (morte a pedido expresso do doente)» e que «1,8% se deviam ao uso de drogas letais sem pedido expresso do doente» (sublinhado meu). É isto que está escrito: quase duas em cada cem mortes ocorridas na Flandres em 2007 deveram-se a eutanásia não pedida pela pessoa.

Seis anos depois desta carta, como sabemos, passou-se do sofrimento físico para o sofrimento psicológico como justificação para a eutanásia, e dos adultos lúcidos e responsáveis para as crianças e para doentes com grave depressão clínica. Sempre com base em decisões isentas, garantidas pelos tribunais.

Não quero viver num mundo assim, em que a «compaixão» pelo sofrimento do doente justifica o menosprezo pela vontade da pessoa. Por isso votarei contra a despenalização, se e quando houver um referendo.


Post-Scriptum – Espero que haja referendo. Não entendo a ideia peregrina de que «questões de consciência» se não referendam. É melhor deixá-las nas mãos de 230 pessoas cuja consciência ninguém sabe qual seja?






Um texto que também é uma carta aberta

aos responsáveis cívicos do Concelho de Oeiras


Tiago Cavaco, Facebook, 7 de Março de 2016

Ser um bom comediante é ser um bom político. Um bom número cómico pode ter um efeito tal que a nossa vida em sociedade muda. É a minha convicção que, quando no final dos anos 90 o Herman José inventou o Diácono Remédios, Portugal passou a ser outro. Hoje ninguém quer fazer figura de Diácono Remédios. Ninguém quer armar-se em ofendido em questões de moral sexual porque quando alguém se ofende em questões de moral sexual há uma grande parte da população portuguesa que reage como estando na presença de um Diácono Remédios. E, como nós sabemos, o Diácono Remédios era um hipócrita, um homem com responsabilidades religiosas que passava a vida a implicar com a suposta indecência dos outros quando ele, na prática, era o mais malicioso de todos. Sei que muitos ao lerem este texto me podem encaixar na figura do Diácono Remédios. E, se querem que vos diga, não é isso que me vai impedir de o escrever. O que está em causa neste texto vale mais do que o prejuízo de poder ser posto ao nível de uma caricatura do Herman José.

Chamo-me Tiago Cavaco, tenho 38 anos e vivo em Oeiras. Cresci com os meus pais e duas irmãs, uma cinco anos mais velha e uma quinze minutos mais nova. Eu e a minha mulher temos duas meninas e dois meninos. Profissionalmente sirvo uma igreja que semanalmente junta um pouco mais de uma centena de pessoas, sendo que perto de 40 delas estão abaixo dos 16 anos. Por estas razões, os assuntos da educação no geral e da formação específica para a sexualidade são constantes na minha vida.

Como é fácil antecipar, ocupar funções de alguma responsabilidade na formação de crianças pede que as esclareçamos acerca de como a vida é, e não apenas acerca de como gostávamos que a vida fosse. Neste sentido, não é possível uma educação dos mais novos que lhes esconda as coisas más que existem, como as agressões que podem sofrer, agressões essas que também podem ser trazidas por adultos. Educar responsavelmente pede hoje, como em qualquer época da história mas talvez com mais ênfase, uma compreensão e prevenção do abuso sexual.

Uma das regras fundamentais na formação dos mais novos acerca do abuso sexual é que eles entendam o seu corpo como um espaço sagrado. O que é que isto quer dizer na prática? Seja a que pretexto for, os meus filhos e os menores que participam da vida comunitária da igreja que sirvo (a Igreja da Lapa em Lisboa) aprendem que ninguém deve tocar neles sem permissão, sendo que há lugares do seu corpo que nem com permissão podem ser tocados. Apesar de nem sempre ser fácil explicar às crianças os porquês destes princípios, elas tendem a integrá-los como naturais ao desenvolvimento de uma personalidade autónoma e responsável. Por exemplo, eu e a minha mulher nunca precisámos de descrever uma violação às nossas meninas para elas tomarem o corpo que têm como um espaço que devem proteger e estimar.

Acreditar que o nosso corpo é sagrado nem sempre é fácil numa sociedade que alberga diferentes compreensões acerca dele. Mas, felizmente, numa democracia como a portuguesa, o caminho tem sido, apesar de tudo, promissor para pais de crianças como nós. O cuidado com o corpo que ensinamos aos nossos filhos é geralmente correspondido pelo cuidado que o próprio Estado também encoraja aos seus cidadãos, sobretudo aos de idade menor. No geral, sentimos que as autoridades cívicas estão connosco na tarefa de educar e proteger os nossos filhos.

É aqui que entra o assunto do lamentável cartaz de uma encenação a acontecer no palco do Teatro Independente de Oeiras. Vou ficar-me pelo adjectivo lamentável porque gostaria de manter o tom deste texto o mais objectivo possível. Neste cartaz, uma mulher aparece tapando simultaneamente os órgãos sexuais de dois homens, despidos, um à sua esquerda e outro à sua direita. Se nesse tapar lhes toca ou não, não é claro. Nesse sentido, não posso afirmar que o que está a acontecer naquele cartaz é uma actividade sexual. Mas não me parece descabido dizer que essa actividade sexual pode, pelo menos, ficar insinuada. Podemos pôr as coisas pela negativa e reconhecer que se o cartaz não quisesse de modo algum sugerir qualquer actividade sexual, provavelmente vestiria os actores e não colocaria as mãos da actriz ao nível dos seus órgãos genitais. Por outro lado, o título da encenação é «H2M1, Parte 2 – Conversas do pirilau», sendo que a palavra «pirilau» aparece graficamente como uma correcção de outra que começaria por C e acaba em O. Fica à imaginação do espectador acertar no original.


Este cartaz encontra-se espalhado pelo concelho de Oeiras, culminando, para os efeitos deste texto, num lugar querido da nossa família: a Biblioteca Municipal. É rara a semana que não levo os nossos quatro filhos à Biblioteca, algumas vezes mais que uma vez. Na última vez que lá estivemos, lá estava a publicidade às «Conversas do pirilau». Ou seja, a Biblioteca Municipal de Oeiras serve os seus leitores também convidando-os para «Conversas do pirilau», facto mais estranho por geralmente não ser possível conversar dentro de uma biblioteca, mas divago. Indo ao que interessa: este texto serve para pedir que se retire este cartaz da exposição pública a menores de idade. Porquê? Porque creio que este cartaz impede alguns princípios valiosos de educação sexual responsável e autónoma que desejamos na formação dos mais novos.

Sigam por uns instantes a minha linha de raciocínio, por favor. Se as nossas crianças aprendem que ninguém tem a permissão de tocar no seu corpo, e que, consequentemente, ninguém pode obrigá-las a tocarem no corpo de outros, o que faremos com esta imagem que, pelo menos, pode sugerir uma mulher que de uma vez só manipula os órgãos sexuais de dois homens, que parecem divertidos com a ideia. Claro que, admitindo que a imagem tal sugere, poderemos dizer que provavelmente está em causa uma relação consensual entre três indivíduos adultos (partindo do princípio que a mulher pediu para fazer isto e que dos dois homens recebeu um sonoro sim). Mas mesmo que assim seja, significa que é útil que às crianças que vêem o cartaz esteja pronto um esclarecimento minimamente satisfatório acerca de relações sexuais consentidas, que neste caso envolvem logo três pessoas. É para o Município de Oeiras este um plano pretendido, escrutinado e aprovado para formar e proteger os seus cidadãos de menor idade, este de entrar num assunto destes a pretexto de uma imagem destas? Por outro lado, e tendo em conta que a sugestão supostamente inocente de manipulação de órgãos sexuais masculinos é um dos pretextos mais recorrentes para o abuso sexual, é este o melhor início de conversa? Até que ponto é que uma imagem desta espalhada por todo o concelho não antecipa sem precaução e desequilibra o programa pedagógico que as entidades de ensino querem promover acerca da educação sexual? Ou é apenas indiferente?

Colocando a questão de uma maneira bem simples e pessoal: o Teatro Independente de Oeiras não me ajuda a mim nem à minha mulher quando sugere graficamente aos nossos meninos que talvez não haja assim tanto problema em eles meterem as mãos nos órgãos genitais de homens, mesmo quando são educados que nem eu, enquanto pai, nem os seus irmãos alguma vez podem pedir-lhes semelhante gesto. E por que estou convicto do facto que essa ideia, podendo não ter sido planeada, é pelo menos sugerida? Pelos comentários que tive de ouvir dos meus filhos acerca do cartaz. Para eles não restou sombra de dúvida que aquilo que o cartaz sugeria ia contra as precauções que recebem dos seus encarregados de educação. Alguém pode dizer que o problema é meu e da minha mulher, e da maneira como educamos os nossos filhos. Mas como nós pode haver muitos mais pais e muitos mais filhos. O que pergunto é: pais como nós não têm o direito cívico de sugerir restrições para o modo como imagens destas são espalhadas pelas ruas? Creio que sim. Que nós, e eventualmente muitos outros, temos esse direito.

O que pedimos não é censura. Este cartaz pode ser mostrado em contextos determinados, da mesma maneira como em nossa casa temos livros e filmes que intencionalmente não mostramos aos nossos filhos, por não os acharmos apropriados ao seu estado de desenvolvimento. No entanto, que este cartaz esteja espalhado por todo o Município parece-nos uma agressão à liberdade de cidadãos que, em virtude da sua idade, não têm de saber já distinguir completamente e com maturidade um acto sexual consensual de um abuso sexual. Não espalhar publicamente imagens destas não é tirar liberdade, é dar mais àqueles que mais dela precisam. Partir do princípio que as crianças já têm de perceber como adultos imagens destas pode ser um acto de indescritível violência sobre elas, e, creio, um contributo acidental para a sua fragilidade diante de abusadores sexuais. Pode ser exagero meu, mas creio que em muitos países democráticos isto poderia valer demissões das pessoas responsáveis. Seria interessante que aqui valesse, pelo menos, a atenção de o retirar dos olhos dos que estão ao nosso cuidado. A imposição de imagens de carácter sexual sobre menores também não pode constituir uma violação?

Gostaria de não ter de mudar a opinião que tenho tido até agora, de que as autoridades cívicas estão connosco na tarefa de educar e proteger os nossos filhos. Mas não me parece que o Município de Oeiras tenha demonstrado, através deste cartaz, que reflectiu responsavelmente na promoção e formação para a liberdade e auto-determinação sexual dos seus cidadãos mais novos.



Atenciosamente,

Tiago Cavaco e Ana Rute Cavaco.




segunda-feira, 7 de março de 2016


Como sobreviver sem depender do estado

ou do partido, sem ser maçon nem gay

e sem estar no facebook?


Miguel Sousa Tavares, Expresso, 5 de Março de 2016

O quê, você não trabalha para o Estado? E não tem partido político? Ao menos, pertence à Maçonaria ou ao lóbi GLBT? Não é nada disso e também não tem Facebook? Eh, pá, o melhor é emigrar. Aqui não tem futuro

1 — Sabe, meu caro João Soares, o problema da substituição de António Lamas por Elísio Summavielle nem é a forma espalhafatosa, e no mínimo deselegante, como a levou a cabo. O problema nem é a sua atitude de quero, posso e mando, que confunde com estilo e autoridade. O problema nem é assistirmos a mais um dos intermináveis episódios de «muda o Governo mudam os boys» a que já todos estamos habituados e conformados. O problema nem é os custos que isso terá para os contribuintes, quando o substituído ganhar a sua indemnização em tribunal – podemos levá-los à conta de custos da democracia. O problema nem é a explicação que deu de que não gostava do plano Belém-Ajuda e que, em vez de mudar apenas o plano, tinha de mudar primeiro o executor. O problema nem é a competência do novo responsável pelo CCB – que, de boa vontade, presumo – ou a competência do ministro para decidir qual dos dois era mais competente para o CCB. O problema nem é o nomeado ser seu amigo. Ou seu correligionário partidário. O problema é ser seu irmão na Maçonaria. É isso que me põe logo de pé atrás. Pergunto-lhe: em Portugal inteiro, não conhece ninguém que fosse igualmente ou mais competente, não sendo seu amigo, seu camarada de partido e seu irmão de avental? Desculpe a pergunta: é a isto que chegámos?

Na página 3 da última edição deste jornal vinha uma notícia cujo título era este: «Sucessão das Secretas abre guerra na Maçonaria». Reproduzo o primeiro parágrafo: «A possibilidade de substituição do secretário-geral dos Serviços de Informação da República Portuguesa (SIRP) com a chegada do novo Governo abriu campo a uma guerra surda entre as duas principais obediências da Maçonaria, que disputam o cargo.» É a isto que chegámos. A falta de vergonha tornou-se a normalidade.

Eu não duvido que a Maçonaria – nas suas origens, talvez – era uma organização dotada de excelentes princípios e objectivos. O que não impediu que alguns dos mais notórios bandidos que este país conheceu recentemente fossem maçons – não sei se por coincidência, se por necessidade. Mas hoje, vivendo em democracia, a persistência de uma organização secreta cujos objectivos principais estão reflectidos no Estado democrático não só não faz sentido como dá que pensar. Para que serve hoje a Maçonaria, se não como associação de socorro e ajuda mútua entre os seus membros, através do tráfico de influências na política, no mundo empresarial e no aparelho de Estado? Quando se chega ao ponto de a Maçonaria e os Serviços Secretos estarem intimamente ligados e penetrados (como se viu na patética história de vida do patético «superespião» Silva Carvalho), só podemos concluir duas coisas: uma, que os Serviços Secretos não servem para nada, como sempre desconfiei, excepto para criar despesa e sarilhos: outra, que a Maçonaria, sim, serve para alguma coisa, mas essa alguma coisa não se recomenda.

2 — Extraordinária reportagem no «DN», onde a jornalista especializada (ou melhor, estagnada) no universo gay-lésbico Fernanda Câncio (quem havia de ser?) descobriu que as Happy Meals do McDonald´s faziam discriminação sexual, dando brinquedos diferentes aos rapazes e às raparigas e permitindo-se ainda manter um questionário diferente para ambos os sexos das crianças. Que horror, o McDonald´s permite-se oferecer Transformers aos rapazes e My Little Ponies às meninas, desrespeitando a livre orientação sexual de cada um, que não pode ser presumida nem orientada desta forma homofóbica! Mas isto é admissível? Não, não é, mas felizmente temos a Câncio, autêntica polícia dos novos costumes e guardiã da nova verdade. O seu texto no «DN» é um verdadeiro manual dos novos inquisidores das verdades estabelecidas como tal. Em breve, presume-se, ela sairá em cruzada contra as lojas que têm secções de brinquedos separados por sexos, ou roupa separada por sexos, ou até casas de banho separadas por sexos. Ela irá espiolar os manuais escolares, os livros infantis, os folhetos de instruções dos electrodomésticos, os códigos da NASA, as regras da FIFA – já para não referir os rituais da Maçonaria –, até extirpar de todo o mundo civilizado essa noção retrógrada de que há diferenças entre os sexos ou até de que existem sexos diferentes.

O nível de sectarismo arrogante e ditatorial destas causídicas só deve ser levado a sério na justa medida em que há quem as leve a sério e se deixe intimidar por elas. É o caso da secretária de Estado da Igualdade, Carolina Marcelino (por que razão tudo o que é Igualdade – Comissão, Associações, Secretaria de Estado – tem sempre de ser presidido e ocupado quase em exclusivo por mulheres: onde está a igualdade?). Aterrorizada pela jornalista, a senhora secretária de Estado nem hesitou: «Não há brinquedos de menino e de menina… Isto é uma atitude discriminatória que reforça os estereótipos de género.» O Governo, garantiu a senhora, vai já encarregar a Comissão de Igualdade de seguir o assunto junto da McDonald´s, pois «não podemos concordar com essa discriminação». Ó minha senhora, diga-me lá se por acaso tem um filho e uma filha, para eu, no próximo Natal, mandar uma metralhadora para a menina e uma Barbie para o menino.

3 — Não se passa praticamente um dia em que eu não fique confortado com a minha decisão de jamais me sentir tentado a frequentar redes sociais. Porque nunca senti a pulsão de partilhar com desconhecidos os meus pensamentos íntimos, actividades domésticas ou fotografias pessoais e porque poupo nisso um tempo que já é escasso de mais para o que me interessa fazer. E porque, além disso, as redes sociais sempre me pareceram um Big Brother ao contrário – voluntário e das massas para o líder oculto –, sendo óbvio que, mais cedo ou mais tarde, os registos deixados, e que nunca são apagados, se virarão contra os seus frequentadores. Veja-se o caso da acima citada secretária de Estado da Igualdade, Carolina Marcelino. Antes desta faceta igualitária, por que outros motivos era ela conhecida? Por ter escrito no Facebook a frase: «Não tenho por hábito fazer sensura, mas não tulero insultos… e com grande probalidade bloquiarei no meu facebook o autor/a.» É verdade que a sua gramática de primeira classe a não impediu de subir a mais altos voos, mas lá que ficou registado… ficou. E não há igualdade de estereótipo que apague o que ficou escrito.

O facto de ser um auto-excluído do palpitante mundo das redes sociais não impede, é claro, que também seja um alvo exposto da turba anónima, cobarde e ordinária que por lá destila ódios, invejas e mais insultos por centímetro quadrado que uma claque de futebol. Mas, mesmo então, há um gozo que não lhes dou, que é lê-los. Podem insultar-me à vontade, inventarem todas as calúnias que quiserem, que eu não dou por nada. Só presto atenção a quem dá a cara, responde pelo que diz e foi educado em pequeno. Vem isto a propósito da solidariedade devida ao meu colega deste jornal, Henrique Raposo, alvo de um miserável auto-de-fé nas redes sociais, por se ter atrevido a escrever um livro sobre o Alentejo onde relata coisas que alguns alentejanos não gostaram. Um tipo fez-se fotografar no Facebook a queimar o livro dele, milhares de outros lançaram um movimento para o proibir e até a polícia foi chamada para precaver tumultos no lançamento. Não me interessa o que diz o livro, se diz coisas que são verdade, que já foram ou que nunca o foram. Democracia, direito à indignação, dizem eles. Não: direito à intransigência, à intimidação e à mais larvar estupidez.


Miguel Sousa Tavares
escreve de acordo com a antiga ortografia