Tiago
Cavaco, Facebook, 7 de Março de
2016
Ser um
bom comediante é ser um bom político. Um bom número cómico pode ter um efeito
tal que a nossa vida em sociedade muda. É a minha convicção que, quando no
final dos anos 90 o Herman José inventou o Diácono Remédios, Portugal passou a
ser outro. Hoje ninguém quer fazer figura de Diácono Remédios. Ninguém quer
armar-se em ofendido em questões de moral sexual porque quando alguém se ofende
em questões de moral sexual há uma grande parte da população portuguesa que
reage como estando na presença de um Diácono Remédios. E, como nós sabemos, o
Diácono Remédios era um hipócrita, um homem com responsabilidades religiosas
que passava a vida a implicar com a suposta indecência dos outros quando ele,
na prática, era o mais malicioso de todos. Sei que muitos ao lerem este texto
me podem encaixar na figura do Diácono Remédios. E, se querem que vos diga, não
é isso que me vai impedir de o escrever. O que está em causa neste texto vale
mais do que o prejuízo de poder ser posto ao nível de uma caricatura do Herman
José.
Chamo-me
Tiago Cavaco, tenho 38 anos e vivo em Oeiras. Cresci com os meus pais e duas
irmãs, uma cinco anos mais velha e uma quinze minutos mais nova. Eu e a minha
mulher temos duas meninas e dois meninos. Profissionalmente sirvo uma igreja
que semanalmente junta um pouco mais de uma centena de pessoas, sendo que perto
de 40 delas estão abaixo dos 16 anos. Por estas razões, os assuntos da educação
no geral e da formação específica para a sexualidade são constantes na minha
vida.
Como é
fácil antecipar, ocupar funções de alguma responsabilidade na formação de
crianças pede que as esclareçamos acerca de como a vida é, e não apenas acerca
de como gostávamos que a vida fosse. Neste sentido, não é possível uma educação
dos mais novos que lhes esconda as coisas más que existem, como as agressões
que podem sofrer, agressões essas que também podem ser trazidas por adultos.
Educar responsavelmente pede hoje, como em qualquer época da história mas
talvez com mais ênfase, uma compreensão e prevenção do abuso sexual.
Uma
das regras fundamentais na formação dos mais novos acerca do abuso sexual é que
eles entendam o seu corpo como um espaço sagrado. O que é que isto quer dizer
na prática? Seja a que pretexto for, os meus filhos e os menores que participam
da vida comunitária da igreja que sirvo (a Igreja da Lapa em Lisboa) aprendem
que ninguém deve tocar neles sem permissão, sendo que há lugares do seu corpo
que nem com permissão podem ser tocados. Apesar de nem sempre ser fácil
explicar às crianças os porquês destes princípios, elas tendem a integrá-los
como naturais ao desenvolvimento de uma personalidade autónoma e responsável.
Por exemplo, eu e a minha mulher nunca precisámos de descrever uma violação às
nossas meninas para elas tomarem o corpo que têm como um espaço que devem
proteger e estimar.
Acreditar
que o nosso corpo é sagrado nem sempre é fácil numa sociedade que alberga
diferentes compreensões acerca dele. Mas, felizmente, numa democracia como a
portuguesa, o caminho tem sido, apesar de tudo, promissor para pais de crianças
como nós. O cuidado com o corpo que ensinamos aos nossos filhos é geralmente
correspondido pelo cuidado que o próprio Estado também encoraja aos seus
cidadãos, sobretudo aos de idade menor. No geral, sentimos que as autoridades
cívicas estão connosco na tarefa de educar e proteger os nossos filhos.
É aqui
que entra o assunto do lamentável cartaz de uma encenação a acontecer no palco
do Teatro Independente de Oeiras. Vou ficar-me pelo adjectivo lamentável porque
gostaria de manter o tom deste texto o mais objectivo possível. Neste cartaz,
uma mulher aparece tapando simultaneamente os órgãos sexuais de dois homens,
despidos, um à sua esquerda e outro à sua direita. Se nesse tapar lhes toca ou
não, não é claro. Nesse sentido, não posso afirmar que o que está a acontecer
naquele cartaz é uma actividade sexual. Mas não me parece descabido dizer que
essa actividade sexual pode, pelo menos, ficar insinuada. Podemos pôr as coisas
pela negativa e reconhecer que se o cartaz não quisesse de modo algum sugerir
qualquer actividade sexual, provavelmente vestiria os actores e não colocaria
as mãos da actriz ao nível dos seus órgãos genitais. Por outro lado, o título
da encenação é «H2M1, Parte 2 – Conversas do pirilau», sendo que a palavra «pirilau»
aparece graficamente como uma correcção de outra que começaria por C e acaba em
O. Fica à imaginação do espectador acertar no original.
Este
cartaz encontra-se espalhado pelo concelho de Oeiras, culminando, para os
efeitos deste texto, num lugar querido da nossa família: a Biblioteca
Municipal. É rara a semana que não levo os nossos quatro filhos à Biblioteca,
algumas vezes mais que uma vez. Na última vez que lá estivemos, lá estava a
publicidade às «Conversas do pirilau». Ou seja, a Biblioteca Municipal de
Oeiras serve os seus leitores também convidando-os para «Conversas do pirilau»,
facto mais estranho por geralmente não ser possível conversar dentro de uma
biblioteca, mas divago. Indo ao que interessa: este texto serve para pedir que
se retire este cartaz da exposição pública a menores de idade. Porquê? Porque
creio que este cartaz impede alguns princípios valiosos de educação sexual
responsável e autónoma que desejamos na formação dos mais novos.
Sigam
por uns instantes a minha linha de raciocínio, por favor. Se as nossas crianças
aprendem que ninguém tem a permissão de tocar no seu corpo, e que,
consequentemente, ninguém pode obrigá-las a tocarem no corpo de outros, o que
faremos com esta imagem que, pelo menos, pode sugerir uma mulher que de uma vez
só manipula os órgãos sexuais de dois homens, que parecem divertidos com a
ideia. Claro que, admitindo que a imagem tal sugere, poderemos dizer que
provavelmente está em causa uma relação consensual entre três indivíduos
adultos (partindo do princípio que a mulher pediu para fazer isto e que dos
dois homens recebeu um sonoro sim). Mas mesmo que assim seja, significa que é
útil que às crianças que vêem o cartaz esteja pronto um esclarecimento
minimamente satisfatório acerca de relações sexuais consentidas, que neste caso
envolvem logo três pessoas. É para o Município de Oeiras este um plano
pretendido, escrutinado e aprovado para formar e proteger os seus cidadãos de
menor idade, este de entrar num assunto destes a pretexto de uma imagem destas?
Por outro lado, e tendo em conta que a sugestão supostamente inocente de
manipulação de órgãos sexuais masculinos é um dos pretextos mais recorrentes
para o abuso sexual, é este o melhor início de conversa? Até que ponto é que
uma imagem desta espalhada por todo o concelho não antecipa sem precaução e
desequilibra o programa pedagógico que as entidades de ensino querem promover
acerca da educação sexual? Ou é apenas indiferente?
Colocando
a questão de uma maneira bem simples e pessoal: o Teatro Independente de Oeiras
não me ajuda a mim nem à minha mulher quando sugere graficamente aos nossos
meninos que talvez não haja assim tanto problema em eles meterem as mãos nos
órgãos genitais de homens, mesmo quando são educados que nem eu, enquanto pai,
nem os seus irmãos alguma vez podem pedir-lhes semelhante gesto. E por que
estou convicto do facto que essa ideia, podendo não ter sido planeada, é pelo
menos sugerida? Pelos comentários que tive de ouvir dos meus filhos acerca do
cartaz. Para eles não restou sombra de dúvida que aquilo que o cartaz sugeria
ia contra as precauções que recebem dos seus encarregados de educação. Alguém
pode dizer que o problema é meu e da minha mulher, e da maneira como educamos
os nossos filhos. Mas como nós pode haver muitos mais pais e muitos mais
filhos. O que pergunto é: pais como nós não têm o direito cívico de sugerir
restrições para o modo como imagens destas são espalhadas pelas ruas? Creio que
sim. Que nós, e eventualmente muitos outros, temos esse direito.
O que
pedimos não é censura. Este cartaz pode ser mostrado em contextos determinados,
da mesma maneira como em nossa casa temos livros e filmes que intencionalmente
não mostramos aos nossos filhos, por não os acharmos apropriados ao seu estado
de desenvolvimento. No entanto, que este cartaz esteja espalhado por todo o
Município parece-nos uma agressão à liberdade de cidadãos que, em virtude da
sua idade, não têm de saber já distinguir completamente e com maturidade um
acto sexual consensual de um abuso sexual. Não espalhar publicamente imagens
destas não é tirar liberdade, é dar mais àqueles que mais dela precisam. Partir
do princípio que as crianças já têm de perceber como adultos imagens destas
pode ser um acto de indescritível violência sobre elas, e, creio, um contributo
acidental para a sua fragilidade diante de abusadores sexuais. Pode ser exagero
meu, mas creio que em muitos países democráticos isto poderia valer demissões
das pessoas responsáveis. Seria interessante que aqui valesse, pelo menos, a
atenção de o retirar dos olhos dos que estão ao nosso cuidado. A imposição de
imagens de carácter sexual sobre menores também não pode constituir uma
violação?
Gostaria
de não ter de mudar a opinião que tenho tido até agora, de que as autoridades
cívicas estão connosco na tarefa de educar e proteger os nossos filhos. Mas não
me parece que o Município de Oeiras tenha demonstrado, através deste cartaz,
que reflectiu responsavelmente na promoção e formação para a liberdade e
auto-determinação sexual dos seus cidadãos mais novos.
Atenciosamente,
Tiago
Cavaco e Ana Rute Cavaco.