Daniel Serrão
1. Sinto-me profundamente afectado pela
aprovação, no parlamento do Reino da Bélgica, de uma lei que permite aos
médicos matarem menores de idade. Quero deixar aqui a minha opinião sem
ambiguidades e sem qualquer preocupação em ser politicamente correcto.
É claro que cada país faz, dentro das suas
fronteiras, o que os seus habitantes, e quem os represente no sistema político,
desejarem que seja feito. 86 deputados votaram a favor desta lei, 44 votaram
contra e 12 acharam que não valia a pena darem opinião e abstiveram-se. Tudo
bem; melhor dizendo, tudo mal.
Pois quando esses habitantes, por via dos seus
representantes políticos, aprovam comportamentos que ofendem gravemente a
dignidade de todos os que pertencem à família humana temos o direito de dar a
nossa opinião.
Foi o silêncio de todos que tornou possível o
horror criminoso de um governo da Alemanha, no início com legitimidade
democrática, em pleno século XX. A lei estabelecia que havia vidas indignas de
serem vividas, incluindo a vida de crianças, logo deviam ser exterminadas. E
foram. Depois foi o plano inclinado até ao holocausto de milhões de judeus e
outros não-arianos. Milhões, não dezenas ou centenas. Os agentes desta matança
disseram, em tribunal, que se tinham limitado a cumprir a lei, como
funcionários zelosos. Esta atitude levou a intelectual judia Hanna Arendt, que
assistia aos julgamentos, a descobrir que, para estes homens, a morte do outro
era uma banalidade burocrática, coberta pela lei. Tal como os executores da
pena de morte nalguns estados dos Estados Unidos da América.
2. Tenho o direito de dar a minha opinião como
cidadão responsável por ter a honra de pertencer à grande família humana, tal
como todos os cidadãos belgas pertencem; os que vão ser mortos e os que os vão
matar.
Procurei informar-me dos motivos que levaram à
apresentação da proposta de lei agora aprovada. Basicamente a proposta afirma,
no que designa por desenvolvimentos, o seguinte:
– Temos uma lei que despenaliza a eutanásia desde
2002 e estamos confortáveis com ela – sem qualquer referência aos abusos que
aparecem na imprensa belga, alguns dos quais estão em fase de julgamento.
– Contudo, ela não pode aplicar-se a menores mas
apenas a maiores ou emancipados, juridicamente capazes, o que para os
promotores é um mal que se pretende corrigir – esquecendo que a lei universal
da maioridade é para proteger os menores de todo o tipo de abusos, incluindo os
sexuais.
– Logo, vamos acabar legalmente com esta reserva
etária e abrir a eutanásia a todos os nascidos mesmo que tenham apenas dias ou
horas de vida. Para já aos menores que um pedopsiquiatra considere que tem
capacidade de discernimento e está consciente no momento em que pede para ser
morto.
Porquê?
Cito: «La décision de fin de vie est un
acte d’humanité, posé en dernier recours. De ce point de vue, pourquoi les
mineurs seraient-ils privés de l’accès à cet acte d’humanité» (a
decisão de terminar a vida é um acto de humanidade, colocado em último recurso.
Sob este ponto de vista porquê privar os menores de acederem a este acto de
humanidade).
Portanto a eutanásia é um acto bom que deve ser
praticado em adultos, em menores (e a seguir em recém-nascidos, como já
acontece na Holanda).
3. A falácia desta argumentação está em considerar
a eutanásia como o último recurso, quando o último recurso é o cuidado
compassivo e bondoso que tira o sofrimento a adultos e a menores e permite que
vivam o seu limitado tempo de viver em paz, serenidade e conforto físico e
espiritual.
Refiro-me ao cuidado paliativo personalizado, que
pode ser prestado no domicílio, cuidado no qual o menor não é um «caso»
incurável, do qual os médicos desumanizados se desinteressaram, mas uma pessoa
que merece todo o afecto e atenção para que não sofra até ao fim da sua vida.
Uma investigadora do Instituto de Bioética da
Universidade Católica Portuguesa, Marta Brites, vai defender uma tese de
doutoramento em bioética sobre o cuidado paliativo pediátrico, na qual mostra
como esta atitude de atendimento da criança que sofre de uma doença sem cura
pode – e deve – ser a regra nas instituições que atendem estes doentes. Porque,
como escreve, «A acção paliativa em pediatria é assumida como arte e
ciência de prestar cuidados activos e totais para com o corpo, a mente e o
espírito da criança, envolvendo o suporte dos familiares».
Os 86 deputados que votaram
a favor desta tenebrosa lei, não sabem nada do que é atender com afecto e
compaixão a criança em vez de decidirem que irá ser morta. A história irá
julgá-los, em nome da vida, como julgou e condenou os carrascos nazis. Bem como
aos médicos que se prestem a praticar a «matança dos inocentes».