João J. Brandão Ferreira
Desde D.
Afonso Henriques que há assuntos, na História de Portugal, mal arrumados.
Alguns, até, de tão mal descritos, resultam em distorções e mentiras
grosseiras.
É o
caso das últimas, e ainda recentes, campanhas ultramarinas em que a Nação
Portuguesa esteve envolvida entre 1954 e 1975.
E
assim é, apesar do espaço temporal ser curto; haver muita gente viva que foi
protagonista nos eventos; ampla documentação e excesso de meios de comunicação
social.
Entre
os multifacetados aspectos que este longo conflito encerra, ganhou especial
preponderância o teatro de operações da Guiné e, dentro deste, as operações que
se desenrolaram no 1.º semestre de 1973, em que se assistiu à maior operação da
guerrilha, em toda a guerra. Esta ofensiva foi desencadeada pelo PAIGC e planeada
e coordenada por instrutores soviéticos e cubanos e destinava-se a fazer «ajoelhar»
militarmente, as forças portuguesas.
Naturalmente
o facto de o MFA ter nascido na Guiné; o protagonismo que o General Spínola –
que acabou por ser o principal responsável pelo abaixamento do moral das NT, na
Província – veio a ter em todos os eventos ligados ao 25/4 e posteriores; e ao mito
que se veio a criar que a guerra na Guiné estava perdida são, seguramente,
responsáveis por tal facto.
No
meio da ofensiva referida veio a ter destaque, pelas piores razões, o
abandono do quartel e povoação de Guileje, no dia 22 de Maio.
Piores
razões, porque marca uma página negra da História Militar Portuguesa, dado que
uma guarnição que estando longe de estar batida, quebrou o dever militar, ao
abandonar a sua área de operações sem ordem para o fazer e sem razão que o
justificasse. A única que o fez em 13 anos de combates.
O
responsável directo por esta retirada foi preso em Bissau, ficando a aguardar
julgamento em tribunal militar.
Desse
julgamento, livrou-o o Golpe de Estado de 25 de Abril e o desnorte que se lhe
seguiu, acabando o arguido amnistiado em tal processo. Ou seja, juridicamente a
responsabilidade penal deixou de existir.
O
oficial em causa continuou a sua carreira militar e chegou a coronel.
Depois
de abandonar o serviço activo, escreveu um livro, profere conferências e entra
em debates, no sentido de descrever o que se passou, explicar as razões por que
tomou a decisão que tomou e insurgindo-se contra o processo de que foi alvo.
Antes
de entrar nesta última parte é mister fazer um brevíssimo enquadramento da situação
ocorrida em Guileje.
No dia
20 de Janeiro de 1973, o líder do PAIGC, Amílcar Cabral, um mestiço
politicamente moderado (vagamente marxista), de cultura lusíada, foi
assassinado em Conackri, por três elementos do mesmo partido.
Na
sequência foram eliminados numerosos guerrilheiros e, até hoje, nunca se soube
oficialmente os verdadeiros contornos da trama, tendo-se atirado para cima da
PIDE/DGS a hipótese inverosímil, de estar por detrás desta morte.
A
seguir foi congeminado um plano – seguramente com a ajuda de conselheiros
cubanos e soviéticos – para se conseguir uma decisão militar, que viria a ser
explorada politicamente (como acabou por ser, em diferido), com a declaração
unilateral de independência, no Boé, a 24/9/73.
Esta
ofensiva teve algumas inovações: procurou-se utilizar o princípio da
concentração de forças e atacar simultaneamente, numa espécie de tenaz, dois
objectivos; as forças que atacavam seriam protegidas por uma nova arma anti-aérea,
o míssil terra-ar «Strella», o que permitiria anular a supremacia aérea
nacional e, desse modo, fazer pender o potencial relativo de combate, a favor
da guerrilha.
O
primeiro míssil foi disparado a 20 de Março, sem consequências. Porém a 25, um
outro disparo abateu um Fiat, salvando-se o piloto por ejecção e posterior
recolha no chão.
Nas
duas semanas seguintes foram abatidas mais quatro aeronaves tendo morrido
quatro pilotos e cinco outros militares o que, naturalmente, abalou o moral das
tripulações e passou a afectar o cumprimento de algumas missões, sobretudo por
não se saber qual a arma e suas características, com que se defrontavam.
Os
objectivos escolhidos para serem atacados, isolados e, eventualmente, tomados,
foram as povoações de Guidage, na fronteira Norte, e Guileje, na fronteira Sul.
Estas
povoações estavam defendidas com unidades tipo companhia, reforçados com outros
(escassos) meios.
Foram
escolhidos pois estavam mesmo junto à fronteira, o que facilitava o ataque e o
apoio logístico, além de que as equipas de misseis também não se deviam
internar muito em território nacional, por imposição dos soviéticos que temiam
que alguma destas armas caísse em mãos portuguesas.
Guidaje
começou a ser atacada em 8 de Maio e esteve cercada e debaixo de fogo,
constante, durante um mês.
Foram
organizadas várias colunas de reabastecimento que foram duramente atacadas e,
finalmente conseguiu-se reforçar a guarnição com uma companhia de
paraquedistas. Entretanto montou-se uma grande operação que envolveu a
totalidade dos efectivos do Batalhão de Comandos Africanos, sobre a base de
Cumbamori, que apoiava as forças do PAIGC.
Durante
este período as NT sofreram 47 mortos e mais de uma centena de feridos.
No
meio desta ofensiva séria, foi atacado o aquartelamento de Guilege, no dia 18
de Maio, possivelmente como diversão, para obrigar a retirar forças que estavam
a auxiliar Guidage.
A
guarnição do Comando Operacional 5 sofreu um morto e dois feridos. O Comandante,
|
Major Coutinho e Lima |
Major Coutinho e Lima, decidiu ir a
Bissau expor a situação. Regressou no dia seguinte e tomou a decisão de
abandonar o quartel, levando consigo toda a população para Gadamael-Porto, uma
povoação a poucos quilómetros.
Entretanto
a FA, numa acção notável, conseguiu descobrir as características do míssil e
adoptou um conjunto de procedimentos e tácticas que permitiram continuar a
cumprir todas as missões, com constrangimentos vários.
A FA
perdeu, de facto, a Supremacia Aérea, mas não perdeu a Superioridade Aérea. E
nunca mais nos abateram qualquer aeronave, à excepção de um Fiat, em 30 de
Janeiro de 74, por incumprimento de uma regra de segurança. Estima-se que foram
disparados mais de 40 mísseis.
Que se
terá passado então, para que o Comandante de Guileje tivesse apenas resistido
quatro dias – com mais meios do que o seu camarada de Guidage – o Tenente-Coronel Correia
de Campos, que se
veio a revelar um valoroso Comandante – que chegou a estar no limite das munições e
dos víveres?
Aqui
parecem entrar o que se designa por factores imponderáveis da guerra, tão ou
mais importantes que os outros…
Do que
se sabe o General Spínola tratou mal o major e não lhe explicou nada. Podia
ter-lhe dito qualquer coisa do género «a preservação da sua posição é
fundamental para a defesa da fronteira Sul, eu agora não lhe posso valer pois
tenho todas as minhas reservas empenhadas (o que era verdade), volte para lá,
aguente-se, que logo que possa envio-lhe auxílio».
Em vez
disto tratou-o nos moldes em que os que o conhecem sabem, quando não gostava de
alguém. A agravar as coisas, o oficial em causa, não era oriundo de Cavalaria
nem frequentara o Colégio Militar…
E
quando se despediu dele humilhou-o dizendo-lhe «regressa a Guileje e daqui a um
ou dois dias irá lá ter o Coronel Durão e você passa a adjunto dele». Ou seja
passou-lhe um atestado de incompetência.
O Comandante
do Comando Operacional 5 voltou ao quartel apenas para saber pelos seus
subordinados – em quem segundo o «jornal da caserna» não tinha grande
comandamento – que o último ataque sofrido tinha destruído o posto de rádio e
parte da artilharia.
A
retirada fez-se nessa noite, sendo feita em boa ordem de marcha e com todos os
cerca de 500 elementos da população, o que prova três coisas:
– Que
o quartel não estava cercado (se estivesse a saída das tropas e população
poderia ter sido um desastre!);
– Que
a população estava toda do nosso lado;
– Que
o PAIGC estava ainda longe de querer assaltar a povoação, já que só deu pela
evacuação três dias depois (entrando quase todos em coma alcoólico depois de
terem esgotado o stock de bebidas existente…).
Mas
prova ainda outra coisa: que a retirada já teria sido preparada anteriormente,
pois era praticamente impossível organizar tal operação na hora. Será que
estariam à espera que Spínola autorizasse a saída? Até que ponto haveria acção
subversiva feita por eventuais infiltrados simpatizantes, idos da Metrópole?
Eis duas questões que seria interessante dilucidar.
Resta
ainda acrescentar que o quartel tinha uma pista; a FA garantia apoio pelo fogo
de dia, com os «Fiat» e de noite com um «C-47» modificado, em bombardeamento de
área; Guileje era o único quartel em toda a Guiné, que tinha abrigos em betão.
Sofreu
bombardeamentos com precisão (cerca de 36), porque o tiro era regulado por
guerrilheiros infiltrados até perto do quartel, pois estes tinham liberdade de
movimentos, por as
forças lá aquarteladas não fazerem batidas fora do arame farpado (como, aliás,
estava determinado e era do mais elementar senso táctico).
Guileje
tinha, porém, um ponto fraco: não tinha um poço artesiano, que lhe fornecesse
água potável, a qual tinha que ser obtida a cerca de 2 Km, o que permitia
emboscadas às colunas encarregues dessa missão. As evacuações de helicóptero
tinham, ainda, que ser feitas a partir de Cacine, pois a ida dos Alouette III a
Guileje e Gadamael estava, temporariamente, suspensa por razões operacionais.
Considera-se
que as forças que defendiam Guileje não estiveram sequer perto, de não se
puderem defender e nada justificava o seu abandono tão prematuro, que veio a
causar algum pânico em Gadamael-Porto e poderia ter feito colapsar – por efeito
de dominó – todo o dispositivo junto à fronteira Sul.
As
forças do PAIGC reagruparam-se então em torno de Gadamael e atacaram-na
fortemente, tendo a situação sido resolvida rapidamente por tropas
paraquedistas, enviadas de reforço.
Sem
embargo de se gostar mais ou menos da atitude do Comandante-Chefe, ele era o
responsável por toda a Guiné e era ele que tinha a visão global de todo o
teatro de operações. E tinha a autoridade para tomar as decisões que tomou,
sendo-lhe ainda lícito, sacrificar a guarnição de Guilege caso isso fosse
importante para a salvaguarda do todo.
Como a
consciência é o nosso último juiz, cabe sempre a cada comandante – e cada caso
é um caso – face às circunstâncias, decidir o que, em última instância a sua
consciência lhe diz, mas tem que, a seguir, se sujeitar às consequências dessa
decisão.
E não
tem que levar a mal que, no caso vertente, se lhe tenha dado ordem de prisão e
levantado um processo.
O
Dever e a Disciplina Militar assim o exigiam e só se deve lamentar que o
julgamento não tenha ocorrido. E, nesse âmbito, só existe uma razão de queixa:
contra quem o amnistiou.
Ora
este caso que devia ser, sem sombra de dúvidas, tratado em termos académicos,
em fóruns próprios, a fim de reverter em ensinamentos para o futuro, tem sido
transformado pelo seu protagonista – que ninguém tem maltratado nem acusado de
nada – numa tentativa contumaz, não só de branqueamento da sua acção como a de
que seja aceite o seu bom propósito e valor.
Será
que um dia destes vai requerer louvor e condecoração?
As
coisas estão, até, a entrar no campo do delírio, como se pôde constatar numa «mesa
redonda», que decorreu em Coimbra, no passado dia 23 de Maio, e para a qual se
convidaram quatro coronéis do Exército, um ex-membro das «Brigadas
Revolucionárias» e dois ex-guerrilheiros do PAIGC.
|
Coronel Coutinho e Lima |
Um dos
oradores foi, justamente, o antigo Comandante do Comando Operacional 5, que
antes de falar se vestiu com um traje típico de indígena da Guiné –
provavelmente o mesmo com que o agraciaram há uns anos atrás, quando foi a
Guilege fazer «um frete» ao PAIGC – e não foi o único – que para ali «convocara»
um «Simpósio Internacional»!
O «nosso»
coronel apenas seguiu, todavia, o exemplo da organização daquela «mesa sem
bicos», a qual no folheto de propaganda do evento, não encontrou nada melhor
para pôr em fundo, do que a bandeira do PAIGC (quero recordar que o evento se
passa em Coimbra – terra onde está sepultado o D. Afonso Henriques…) e uma foto
de Amílcar Cabral que, em termos simples, não passa de um traidor português.
No dia
anterior a esta redonda mesa, tinha estado previsto um colóquio promovido pela
quase extinta Polícia Judiciária Militar, onde o caso de Guileje era tema, com
direito a debate, e lá estava o nosso ex-comandante inscrito para o mesmo.
Tem
ainda participado em várias conferências, apresentações de livros, discussões,
etc., onde raramente é contestado e escreveu um livro com a sua versão dos
eventos, que teve o prefácio de um general de quatro estrelas e conseguiu o
significativo feito, de o mesmo ser apresentado por um outro general de igual
posto, num local que tem o nome de Academia Militar.
Escola
que, lembro, tem a peculiar missão de formar os futuros oficiais do Exército e
da GNR.
Parece
que ninguém se deu conta do que se estava a passar…
Há
precisamente 39 anos que se passou a fazer o elogio da cobardia, em detrimento
da coragem; promoveram-se desertores e traidores e depreciou-se (quando não se
ridicularizou), heróis e patriotas; A corrupção passou a ser tolerada e a
achar-se que era coisa de espertos; incentivou-se o vício e casquinhou-se a
virtude; tem-se sido de uma compreensão dadivosa para com os «desvios», ao
mesmo tempo que se desdenha a «normalidade»; encolhe-se os ombros
aos trapaceiros e fustiga-se o mérito, enfim, os exemplos são extensos e são
todos maus.
Chegou-se
ao ponto de incentivar a morte e depreciar a vida, em troca do egoísmo,
hedonismo e outros «ismos», todos muito «progressistas» e modernaços…
Não
admira, pois, que estejamos mergulhados numa crise moral, política e social
medonha, e á beira do desaparecimento genético (!), e que quase toda a gente
confunde com uma crise económica e financeira, e apenas porque lhes estão a ir
ao bolso!
Fica-nos,
contudo, e no meio disto tudo, uma dúvida existencial, que é a seguinte: Face
ao descrito, o que se andará a ensinar aos cadetes e aos comandantes das
actuais Forças Nacionais Destacadas?
O Quartel de Copá, no Nordeste da Guiné, também
foi abandonado, em 30/1/73, por metade da guarnição, mas a mesma foi obrigada a
regressar, pela notável acção do Comandante do Batalhão, Tenente-Coronel Jorge Matias.
[2] O
militar ficou preso cerca de um ano, o que se estima ser um exagero – mesmo
tendo em conta a situação da altura – para se instruir o processo e levá-lo a
julgamento. E, possivelmente, não deveria ter sido o único a quem devia ter
sido dado ordem de prisão…
Amílcar
Cabral foi, sem dúvida, o mais capaz líder guerrilheiro de todos os que
combateram contra Portugal.
O que,
a ser verdade – convenhamos – seria mais do que legítima…
Foram
abatidos um Fiat, um T-6 e dois DO-27. Só a 8 de Abril se teve a certeza de que
a nova arma era o SAM-7. Outros disparos foram efectuados, mas não se considera
relevante a sua discriminação.
O Comando Operacional 5 dispunha de uma
companhia de caçadores; um pelotão de milícias; um pelotão de artilharia, com
peças de 11,4 e algumas autometralhadoras «Fox».
É
importante referir que o Comandante do Comando Operacional 5, foi lá colocado,
também, com a missão de disciplinar e levantar o Moral a uma tropa considerada
fraca e desmotivada.
Além
disso a saída de Guileje não foi coordenada com Gadamael e esta povoação e
respectivo quartel, não tinham condições mínimas para albergar tão elevado
número de «fugitivos». E não se sabe, exactamente, porque é que Guileje não foi
reocupado, o que não favoreceu as nossas cores.
No fim
da ofensiva, nós ganhámos e o PAIGC perdeu, é bom que se diga. Mas o que se
passou em Guileje causou um abalo muito grande no moral do conjunto das tropas
e comandos. E pode ter contribuído fortemente para o início do MFA, na Guiné.
Se assim foi, a vitória táctica portuguesa, resultou numa derrota estratégica,
a prazo.
Foi
organizada pelo «Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da
Universidade de Coimbra», criado em 1998. O moderador foi o Prof. Dr. Luís R.
Torgal, que tinha a missão impossível de dar a palavra, numa tarde, a sete
oradores e promover o debate…
O tema
era a ofensiva sobre Guileje de que trata este escrito e decorreu de 1 a 7 de
Março de 2008, promovido pela «Universidade Colinas do Boé» e pelo INED, uma
das ONGs que por lá pululam.
Amílcar
Cabral tinha a nacionalidade portuguesa. Veja-se artigos do Código Penal de
então e de agora…