quinta-feira, 14 de janeiro de 2016


(Obra da tonta da ministra laranja Teresa Morais)

Fábrica de intolerantes


Helena Matos

O guia para «Acolhimento de refugiados» agora editado pela Direcção-Geral da Saúde é um prémio para os fundamentalistas. Nem as consultas só com mulheres lá faltam.

«Por imperativos de ordem cultural e religiosa, deve ter-se em atenção a escolha dos profissionais e mediadores no relacionamento com certos grupos. Por exemplo, poderão existir restrições de género consubstanciadas na recusa de mulheres serem observadas ou cuidadas por profissionais do sexo masculino. É de extrema importância que estas limitações sejam esclarecidas e respeitadas, para que o apoio tenha a maior qualidade possível.» – Não, não é engano, estamos mesmo a ler: «É de extrema importância que estas limitações sejam esclarecidas e respeitadas, para que o apoio tenha a maior qualidade possível.» E voltemos ao que aqui se designa como «limitações»: «recusa de mulheres serem observadas ou cuidadas por profissionais do sexo masculino».

Em que remoto país serão dadas estas instruções? Que estranho mundo será esse em que as mulheres (ou os homens por elas) podem recusar ser «observadas ou cuidadas por profissionais do sexo masculino»? E em que a essa atitude (que nós sem sombra de dúvida classificamos como discriminação atávica ou intolerável exigência) é aqui docemente colocada ao nível da «restrição» e da «limitação»?

Claro que isto não pode ser Portugal. Pois não pode mas é. E é Portugal agora, em 2015, e não há um século. Estes conselhos fazem parte do recentemente publicado «Acolhimento de refugiados: Alimentação e necessidades nutricionais em situações de emergência», editado pela Direcção-Geral da Saúde, no âmbito do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável (PNPAS).

Este guia, anunciado há dias com pompa e circunstância mediáticas, apresenta-se a si mesmo como um «documento inovador a nível nacional». Do carácter inovador não duvido sequer um segundo pois nem nos mais vetustos documentos editados pelas autoridades de saúde deste país se previa que as mulheres recusassem ser «observadas ou cuidadas por profissionais do sexo masculino». Nem nos nossos maiores delírios imaginámos que algum dia teriamos de organizar os serviços de saúde de modo a prever a «recusa de mulheres serem observadas ou cuidadas por profissionais do sexo masculino.»

A inovação chega assim anexa a algo que sempre vimos como sinal de atraso e de falta de respeito pelos serviços e técnicos de saúde. Não se percebe aliás se estas «restrições de género» se prendem apenas com os cuidados de saúde mais básicos ou se também serão extensíveis às diversas especialidades médicas. O que no limite nos levará ao paradoxo de além de discutirmos se o hospital A deve ter neurocirurgião e o centro de saúde B psiquiatra termos também de fazer essas escolhas em função do sexo dos profissionais de saúde (na era APC – Antes do Politicamente Correcto – isto chamava-se discriminação não era?).

Curiosamente, ou talvez não, este manual recomenda a quem lida com os refugiados: «Fique atento aos seus próprios preconceitos e preferências e coloque-os de lado». Pois, está a contradição desfeita: o que é preconceito é acharmos preconceituoso o comportamento da mulher (ou do seu marido) que rejeitam que ela seja observada por um médico. Complicado? Só na aparência.

Aos ingénuos que neste momento se interrogam sobre a razão de ser deste tipo de recomendações num guia de alimentação, no caso para refugiados, recordo que os totalitarismos sempre tiveram como veículos privilegiados dos seus ditames as recomendações e a legislação produzidas pelas autoridades sanitárias, logo a começar por essa espécie de estrutura ancestral do progressismo totalitário que foi o Comité da Saúde Pública ao qual se devem muitas medidas que instauraram o Terror na Revolução Francesa. E na verdade este manual de «Acolhimento de refugiados: Alimentação e necessidades nutricionais em situações de emergência» vai muito além das questões alimentares e nutricionais propriamente ditas, como bem percebem aqueles que o consultam.


Mas mesmo que este guia tivesse ficado pelas páginas dedicadas à alimentação as suas recomendações colocam questões muito sérias sobre o que se entende por acolher ou receber refugiados, sobretudo quando esses refugiados são muçulmanos.

Primeiro temos as observações óbvias: interdição de bebidas alcoólicas (que também estão presentes, como lembra o guia, em «tempero, em caldos, marinadas e sobremesas») e da carne de porco e seus derivados, a saber fiambre, salsichas, chouriço, presunto, mortadela, paio, salpicão, farinheira, morcela, tripas, fígado, pulmão, banha… (digamos que o porco e seus derivados estão mais ou menos presentes em tudo que nos apetece comprar nesta altura do ano).

Em seguida, lembram-nos os zelosos autores deste guia que também se devem evitar as gelatinas de origem animal e os alimentos com extracto de baunilha por utilizarem álcool na sua composição ou no processo de produção.

Digamos que até aqui será possível atender a tantas restrições, embora os refugiados devessem ser esclarecidos que não sendo Portugal um país muçulmano muitos dos alimentos aqui comercializados contêm gorduras animais ou álcool: uma simples fatia de bolo com passas transforma-se nesta perspectiva num problema de intolerância religiosa caso as passas tenham estado a ganhar sabor em vinho do Porto.

Enfim, uma coisa será não servir entrecosto no churrasco aos refugiados outra bem diversa passa por ter de encontrar bolachas sem baunilha.

Mas passemos adiante porque outros e bem mais sérios problemas são colocados neste guia pelo item dedicado à contaminação cruzada, conceito que no caso nada tem de sanitário mas sim de religioso: «Para a manipulação de produtos de origem suína nas instituições que fornecem e/ou preparam alimentos para os cidadãos deslocados, devem-se aplicar os mesmos processos de segurança alimentar de modo a evitar a contaminação cruzada, ou seja, os equipamentos, superfícies e utensílios que entrem em contacto com produtos de porco devem ser convenientemente lavados e higienizados

Face à logística inerente a lavar e higienizar a cada refeição «os equipamentos, superfícies e utensílios que entrem em contacto com produtos de porco» cabe perguntar como se procederá caso nessas instituições estejam também refugiados para quem o porco seja a base da sua alimentação?

Não se pense que com as outras carnes os problemas são menores: «Relativamente a outros tipos de carne, em algumas culturas e seguindo determinadas correntes do Islão, poderão haver reservas sobre a forma como o animal é abatido, havendo especificidades rituais próprias que terão que ser cumpridas.»

Terão que ser cumpridas? Sempre? Para todos? E alguém interrrogou os refugiados sobre estes assuntos?

Não deixa de ser irónico que fugindo os refugiados sírios de uma guerra causada pelos fundamentalistas islâmicos, aqui chegados esses mesmos refugiados se confrontem com serviços de acolhimento dispostos a satisfazer as exigências das suas correntes radicais. Aliás o mesmo raciocínio tem sido aplicado na questão das caricaturas de Maomé em que de repente o Ocidente dá como verdadeiro que todo o Islão considera ofensiva a representação do profeta, o que é manifestamente falso pois durante séculos e séculos os muçulmanos representaram Maomé.

Ironias e patetices de lado, o que encontramos em muita da linguagem e das estruturas de acolhimento a refugiados e emigrantes são as teses do relativismo, teses essas que exponenciaram os problemas de integração. E que por exemplo, levam regularmente à anulação em França de várias festas escolares pois já não basta haver recipientes separados para alimentos com carne de porco e sem carne de porco: há o problema da partilha das mesas, dos frigoríficos e do espaço (o conceito de contaminação cruzada é uma espécie de caixa de Pandora!) Que levam também a agressões recorrentes nos hospitais porque estes não estão dotados de equipas exclusivamente femininas. Que obrigam a alterações nas aulas de natação…

Ao identificarem-se os valores de quem acolhe com preconceitos e ao assumirem-se como «especificidades rituais próprias que terão que ser cumpridas» e limitações que terão de «ser respeitadas», comportamentos e opções que no país de acolhimento não se toleram está a criar-se uma cultura de exclusão que certamente será terreno fértil para radicalismos de todo o tipo e gerará interessantes oportunidades de emprego a legiões de mediadores culturais e cientistas sociais. Mas à excepção destes grupos ninguém mais sairá beneficiado. Se seguirmos o que está inscrito neste guia de «Acolhimento de refugiados: Alimentação e necessidades nutricionais em situações de emergência» acabaremos com refugiados muito bem alimentados mas duvido que acabemos com cidadãos integrados.