segunda-feira, 23 de maio de 2016


E se fosse connosco?


Alberto Gonçalves, Diário de Notícias, 22 de Maio de 2016

Parece que a SIC exibe regularmente um programa chamado E Se Fosse Consigo?, que segundo os autores «testa a capacidade de intervenção dos portugueses na defesa do outro, a partir de situações ficcionadas». O problema é que nem todas as situações até agora ficcionadas exigem intervenção alheia, de portugueses ou de quem calha. Que eu visse — e não vi tudo dado passar imenso tempo à procura do «outro» para defender —não há simulação de terramotos, guerras, terrorismo islâmico, Rock in Rio ou calamidades afins. Há, ao que pude espreitar no site da estação, o tipo de comportamentos patetas que inspiram as almas sensíveis a fomentar a denúncia ao Estado, o Estado a produzir leis, as leis a legitimar um observatório e duas comissões de protecção (ou metade de um ministério).


Trata-se, claro, da «agenda» própria da época, que segrega bem segregadinhos os «oprimidos» (mulheres, gays, minorias étnicas, pobres, obesos, etc.) e os «opressores» (machos brancos, de preferência endinheirados) por categorias rígidas, num processo de simplificação que oscila entre o atraso mental e o puro preconceito. E, algures no meio, os tiros nos pés: parafraseando a Helena Matos, quantas apresentadoras da SIC são gordas, aborígenes, lésbicas e habitam um T2 de renda técnica em Chelas?

Num dos «casos» transmitidos, sobre o (atenção: aproximação de linguagem «especializada») bullying, três crianças aliviam a mochila de uma quarta e, enquanto lhe chamam «princesa», atiram-lhe os cadernos ao chão. Desde Treblinka que não se via semelhante drama humano. A SIC, porém, entende que tamanha irrelevância é de uma gravidade extrema, ou pelo menos a suficiente para que cada transeunte «consciente» (os restantes são uns bandalhos) ajude a vítima, a qual, se não for completamente choninhas, acabará ainda mais enxovalhada. Noutro «caso», uma senhora reclama, sem grande convicção (os «actores» não foram exactamente recrutados na Julliard), das intimidades de um casal homossexual na paragem de autocarro.

Mas o episódio de que se fala tenta exemplificar, evidentemente sem o conseguir, a violência no namoro. Num parque, um casal heterossexual (os homossexuais não têm desavenças) discute a propósito de um telemóvel. O rapaz encarrega-se do berreiro (as raparigas nunca levantam a voz) e das agressões, cujo alvo é um banco de jardim. A cena é tão ridícula e mal interpretada (?) que, naturalmente, leva quase todos os transeuntes a passar ao largo, com receio de interferirem nas filmagens de Morangos com Açúcar. Uma senhora, porém, atira-se de cabeça para o vórtice da discussão: coincidência das coincidências, é a dona Catarina do Bloco de Esquerda, que oferece ajuda à rapariga (o banco só se salvaria pela nacionalização imediata) e descarrega um sermão em cima do rapaz. O rapaz, com auricular e vontade de rir, olha para a dona Catarina. A dona Catarina olha para a câmara e dá o aval à coisa. A SIC exibe-a. O país descobre uma heroína.

Não pretendo insinuar que a SIC manipula o entretenimento de modo a favorecer políticos da sua simpatia, e que a dona Catarina participou na encenação. Pela seriedade com que engole as cabeludas patranhas que lhe põem à frente, apenas verifico que a credulidade dela em matérias políticas, económicas e sociais se estende aos pormenores do quotidiano. Subiu na minha consideração, perdão, comiseração.

De resto, na melhor das hipóteses, E Se Fosse Consigo? é uma alternativa particularmente infantil aos velhos «apanhados» de Joaquim Letria, e uma promoção da bisbilhotice, virtude que dispensaria incentivos. Na pior, procura consagrar o rol de «causas» admissíveis, e assim depreciar problemas autênticos ou complexos ou inconvenientes. Duvido, por exemplo, que venha a haver um episódio dedicado às vítimas do socialismo, os infelizes que, espezinhados pela prepotência dos poderes públicos, começam a ver o caso (sem aspas) malparado. São muitos, esperam alguém que os ajude e sabem que não será a dona Catarina. E se fosse consigo? É connosco.