(Condensado
de artigo de Olímpia Mairos para a RR)
Alcançou
a fama quando, na Batalha de La Lys, se bateu sozinho contra uma avassaladora ofensiva
alemã. Sozinho, Aníbal Augusto Milhais permitiu a retirada de parte das forças
portuguesas e escocesas.
A história é contada na primeira pessoa.
«Eu já sabia de uns abrigos, em baixo, em Huit Maisons, e
aí foi onde eu fui recolher. Foi onde eu então estive a dar fogo no dia 9 de
Abril [de 1918]. Entrei para o abrigo, não vi ninguém. Só via fogo em roda de
mim...»
Quem a conta é Aníbal Augusto Milhais. Em 1967, contou
para uma velha máquina de bobinas a história da guerra em que participou e que
fez dele um herói. Fê-lo a pedido e por insistência da filha Leonida Milhões.
A voz de Aníbal apresenta-se trémula, acusa já algum
cansaço. A história é contada pausadamente.
«Mais tarde começaram então eles a avançar. Aí é que eu
conheci que eram alemães. Foi então que eu lhes abri fogo. Medi-os à cinta e
pronto. Essa invasão caiu toda. Passado uma hora ou isso, veio outra igual.
Fiz-lhe fogo antes de chegar ao mesmo sítio dos outros. Mas mais tarde veio
outra… – Cortei-a também. Foi aí que eu já não vi e não tornei mais a ver
alemães».
Assim relatava Augusto Milhais, em 23 de Novembro de
1967, o feito que o tornou herói nacional. A gravação permanece na família.
É guardada
como se de um tesouro se tratasse.
As origens
Aníbal
Augusto Milhais nasceu em 1895, numa família pobre. Era o mais
novo de três irmãos que ficaram órfãos bastante cedo e foram acolhidos por
parentes mais próximos.
Ainda
criança começou a trabalhar a troco de alimentação e de um abrigo, em casa das
pessoas mais remediadas de Valongo, aldeia no concelho de Murça (desde
1924, Valongo de Milhais, em sua homenagem).
Nunca foi à
escola. Começou a vida como «moço de recados», depois guardou rebanhos e bois e
fazia «todo o tipo de trabalho agrícola», conta o neto, Eduardo Milhões
Pinheiro, à Renascença. Os irmãos, João e Maria Rosa, emigraram cedo para o
Brasil.
Aníbal
permaneceu na aldeia a trabalhar como jornaleiro.
Em 1915 é
apurado para a tropa. No ano seguinte, a 13 de Maio, assenta praça no Regimento
de Infantaria (RI) n.º 30, de Bragança.
Segundo o
neto, esta teria sido «a primeira vez que saiu da sua terra e do seu concelho».
No mês
seguinte é transferido para o RI 19, de Chaves. Meses depois, parte para a
guerra. Especialidade: «atirador especial».
A milhares de kms de casa
Já em
França, Aníbal Milhais especializa-se em metralhadoras Lewis e é integrado no
BI 15, de Tomar, como n.º 1 de uma das guarnições de metralhadoras ligeiras.
Rezam as
crónicas que, a 9 de Abril, uma força portuguesa se viu atacada pelos alemães.
A força chegou a ser destroçada, a situação era «a pior possível». Muitos
portugueses foram mortos e os sobreviventes obrigados a retirar.
Como enganar alemães
Segundo
Eduardo Milhões Pinheiro, o seu avô, «de forma voluntária, disponibilizou-se
para ficar e cobrir a retirada de todos os seus companheiros».
«Ficou com a
sua metralhadora no posto dele e foi criando a ilusão, nas tropas alemãs, que a
posição estava a ser guardada por várias unidades do seu batalhão, porque ele
fazia fogo de vários pontos distintos».
«Assim
conseguiu empatar a ofensiva alemã durante tempo suficiente que permitiu a
todos os seus companheiros recuar para linhas mais resguardadas, em segurança,
sendo que a maior parte deles terá conseguido sobreviver», conta Eduardo Pinheiro.
Milhais,
esse, continuou sozinho, a vaguear pelos campos. Tinha apenas «amêndoas doces»
para comer.
Quatro dias
depois da batalha, terá encontrado «um médico escocês a quem salvou de morrer
afogado num pântano. Esse mesmo médico terá dado conta ao exército aliado dos
feitos» do soldado transmontano.
«Vales milhões»
E foi assim,
em plena I Guerra Mundial que o soldado português alcançou a fama, na Batalha
de La Lys, em Abril de 1918.
A bravura do
franzino e pequeno Aníbal, com pouco mais de um metro e meio de altura,
valeu-lhe a Torre e Espada – a mais alta condecoração militar portuguesa –
entre outras distinções.
O epíteto
«Milhões» nasceu com um elogio do seu comandante, Ferreira do Amaral: «Tu és
Milhais, mas vales milhões».
«Ele terá sido condecorado pelo que fez, mas também de forma simbólica como
reconhecimento a todos os soldados que combateram, e sobretudo àqueles que
tombaram na I Guerra Mundial», acredita Eduardo Pinheiro.
O regresso à terra
Em 1919,
Aníbal regressa a Valongo, em Murça, compra uma parcela de terra que cultiva,
casa e tem filhos. Vive com dificuldades e luta pela sobrevivência,
dedicando-se aos trabalhos agrícolas.
António
Milhões, 81 anos, filho do soldado Milhões, lembra-se bem dos primeiros tempos
de criança, tempos difíceis e de muito sacrifício.
«Eram tempos
muito duros. O meu pai trabalhou muito no campo, para criar os filhos», conta António, revelando que a família viveu períodos de fome, tempos em
que «uma sardinha era dividida por três».
Orgulhoso do
pai, António recorda-se dele como «um
homem simples, bem-disposto e muito trabalhador». Lembra-se bem que o pai, a quem
acompanhava nas tarefas do campo, começou por ganhar a vida com bois ao ganho:
alimentava, tratava e utilizava os animais que outra pessoa com mais dinheiro
comprara; quando eram revendidos, dividia-se o lucro.
«Era um
mestre nas enxertias e na matança dos porcos e praticamente todas as pessoas da
aldeia o chamavam, quando era necessário realizar esses trabalhos».
A vergonha de um herói emigrante
Do percurso
de vida do soldado-herói há ainda a registar uma incursão pelo Brasil, em 1928.
Milhões
teria trabalho assegurado numa fábrica do Rio de Janeiro, mas os compatriotas
de Murça não aceitaram a vergonha de um herói emigrante.
«Fizeram uma
colecta de forma a pagarem-lhe a viagem de regresso, dizendo-lhe que um herói
da pátria não deve estar emigrado e, muito menos, fazer os trabalhos que lhe
aparecessem. Deveria estar no seu país, como símbolo, como reserva de um
conjunto de valores», conta Eduardo.
Não falar da guerra
De regresso
à terra, o soldado Milhões retoma a actividade agrícola para sustentar os
filhos. Teve dez, mas só oito chegaram à idade adulta. Dificilmente falava da
guerra e sempre que o fazia era porque lhe pediam. Nunca deu grandes
pormenores.
Mariana Rosa,
74 anos, conviveu de perto com o sogro, mas poucas vezes o ouviu falar da
guerra. «Ele dizia que aquele tempo foi um tempo de tristeza e que só pedia a
Nossa Senhora do Vale de Veigas que o deixasse regressar à terra.»
Eduardo
Pinheiro realça que o avô até «mudava de conversa» quando alguém lhe puxava
pelo assunto da guerra, mas refere que «ele falava muito de um seu
companheiro», do qual só conhecemos a alcunha de «Malha-vacas» que ele viu
morrer ao seu lado («despedaçado por um morteiro», no dia 9 de Abril).
«Essas
marcas ficam para sempre e explicarão a resistência do meu avô em falar da
guerra», conclui o neto.
O
reconhecimento material da nação resumiu-se a uma pensão que se manteve nos 15
escudos por mês, pelo menos até o seu quinto filho ir à inspecção militar, no
início dos anos 50.
Quando
morreu, a 3 de Junho de 1970, aos 75 anos, as suas medalhas conquistadas no
campo da glória valiam-lhe pouco mais de mil escudos mensais.
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