quarta-feira, 14 de outubro de 2015
O usurpador
Maria João Avillez, Observador, 14 de Outubro de 2015
Mesmo sabendo que na política há mais surpresas do que na vida, o mal está feito: António Costa não terá, face ao país ou face a mim mesma, segunda oportunidade para se redimir deste assalto ao poder.
1. De longe o mais extraordinário que está a acontecer em Portugal é que é tudo verdade: não é um sonho, uma ficção, uma mentira, um equívoco, uma ambiguidade, um pesadelo do qual se acorda com indizível alívio apesar do estômago colado às costas e da garganta seca.
Podendo ser isso tudo, a coisa mais forte porém é que é verdade. O último acto desta nunca entre nós estreada peça pode vir a ter como epílogo um governo socialista acolitado de estalinistas e anti-europeístas radicais. Algo totalmente fora deste tempo e deste espaço, mas sobretudo fora das regras eleitorais do Estado de Direito onde vivemos desde há quatro décadas; fora da Europa onde pertencemos; fora do Ocidente de onde somos (ou pode-se porventura arrumar a Nato num qualquer temporário entre-parêntesis ou encaixar a pertença à moeda única numa questão que se pode ou não, tanto faz, «deixar estar» ou « deixar cair»?).
Sim, uma estreia absoluta em Portugal mas, hélas, fornecida por uma realidade, que embora enviezada e politicamente ilegítima é concreta, de carne e osso. Razões: nenhumas a não ser o pior da natureza humana. Eis o que não estava no nosso programa de vida, nem na agenda do país. Não estava de todo. Não me confundam por favor: não se trata de achar que o PS e o seu líder não têm direito a governar com quem quiserem. Têm, desde que antes disso, tenham ganho eleições ou se se provar que quem as ganhou não encontra condições de navegabilidade.
Também não é – seria demasiado imbecil – questão de não gostar de governos de esquerda. Trata-se de os achar politicamente ilegítimos quando, como é o caso, seriam fundados – e escorados – numa usurpação: o PS chegou à meta em segundo lugar e não em primeiro e pronuncia-se, age e comporta-se em festa e frenesim, como se os socialistas tivessem vencido. Ou como se tivesse sido experimentada uma nova governação da coligação que tivesse já derrapado mil vezes.
O País sabe que se trataria de uma usurpação, a Europa também, o mundo também. E last but not least, os portugueses também sabem. Mesmo que fazendo deles parvos-parvíssimos se evoque «a Constituição» como fonte legitimadora de um governo eleitoralmente anormal.
2. Talvez ninguém tenha sintetizado tão certeiramente a frenética, envenenada valsa de António Costa, como Viriato Soromenho Marques quando sobre ele escreve (DN) que «(…) correndo ainda o risco de ser visto como o único caso da III República de um secretário-geral que, em vez de se tornar primeiro-ministro depois de ganhar as eleições, quer ser primeiro-ministro para se manter como secretário-geral, mesmo depois de as ter perdido».
É de tal maneira assim que o veneno da valsa contaminará antes de tudo o próprio Costa, mas sobretudo o PS que eventualmente passará a dois partidos, fruto de uma cisão, mesmo que talvez numericamente menos expressiva. Tornando as coisas claras: o PS, um dos pilares da democracia erguido há mais de quarenta anos e eixo maior da governabilidade do país desde então, iria ao ar em dois segundos, transformando-se numa irreconhecível força política. Disputando taco a taco o espaço do BE e do PCP que chegaram primeiro e já lá têm lugar cativo. Nunca mais se contaria com eles para coisas sérias.
3. Ao contrário, o espaço à direita do PS, sairá, não se duvide, ileso de tudo isto. Enganado mas incólume. Se vierem a desaguar na oposição, PSD e CDS serão implacáveis. Mais unidos que nunca, quando falam do país sabem o que dizem e do que falam. Estão serenos como um lago suíço e, ao contrário de António Costa, não estão desesperados, nem têm pressa. Sabem que o tempo corre a seu favor. Têm agido com responsabilidade e inteligência política. Não foi devido a eles que as bolsas já hoje se inquietaram e ainda a procissão não saiu da Igreja.
À hora a que escrevo não começou a segunda reunião entre o quinteto socialista e o friso da coligação mas já se conhece aquilo que mais importa e que habilitará o país a julgar da boa fé dos protagonistas políticos. Refiro-me à pertinência do trabalho politico feito pelo PSD e pelo CDS sobre o guião de António Costa. Há quem veja na atitude do PSD e do CDS destes últimos dias uma anemia, um excesso de placidez, uma desistência. Puro engano. Ninguém dançou valsas em falso, apresentaram trabalho político e com ele encostaram ainda mais António Costa ao seu próprio limite. Tudo ficou à vista de todos.
4. Quando há já bem mais de um ano escrevi aqui um texto de opinião em que deixava vir à tona das palavras a minha simpatia pessoal por António Costa (e sim, sempre foi pessoal e nada política, o que de resto só piora hoje as coisas), um bom amigo alertou-me: «vais pagar caro esse artigo, e lembra-te disto quando daqui a uns tempos ele te for seriamente cobrado».
Pois bem, já está a ser. A factura é caríssima, a responsabilidade é minha e não tenho idade nem para dizer que me enganei, nem para fingir que não é «bem assim». É muito pior que «bem assim». Sucede que assumir um engano (o meu) desta natureza não o torna automaticamente mais explicável, mais compreendível ou compreensível e é por isso que, – repito – é preciso ir buscar a chave deste alarmante comportamento de António Costa ao pior que pode haver dentro de alguém. E mesmo sabendo nós que na política há ainda mais surpresas do que na vida, o mal está feito: haja ou não haja estreia da peça, António Costa não terá, face ao país ou face a mim mesma, uma segunda oportunidade para se redimir deste seu assalto ao poder.
Isto pode não acabar bem
Rui Ramos, Observador, 13 de Outubro de 2015
No caso de Costa insistir no governo de esquerda, a direita terá de exigir novas eleições em que seja dado ao povo o direito de escolher entre duas coligações, a do PSD-CDS e a do PS-PCP-BE.
Em Junho de 2004, o primeiro-ministro Durão Barroso aceitou o convite para presidente da comissão europeia. O PSD escolheu Santana Lopes para lhe suceder. O governo era então apoiado por uma maioria absoluta do PSD e do CDS. No entanto, o PS, o PCP e o BE reagiram violentamente. Foi explicado que as eleições legislativas eram essencialmente um plebiscito aos candidatos a primeiro-ministro, e que Santana, sem eleições, seria um chefe de governo «ilegítimo». Houve manifestações em frente ao palácio de Belém a exigir eleições antecipadas. A 9 de Julho, quando o presidente optou por dar posse a Santana, o secretário-geral do PS demitiu-se. A dramatização resultou: em Novembro, o presidente acabou por dissolver a assembleia, apesar de o governo nunca ter perdido a maioria absoluta no parlamento.
Estas eram as regras, segundo o PS: o primeiro-ministro só podia ser o líder do partido que ganhasse as eleições com mais votos do que os outros partidos. Como explicou António Costa, em Setembro de 2009: «os portugueses conquistaram um direito a que não podem nem devem renunciar: o direito a que os governos não sejam formados pelos jogos partidários, mas que resultem da vontade expressa, maioritária, clara e inequívoca de todos os portugueses.» Eram ainda as regras a 4 de Outubro deste ano. Já não eram no dia seguinte.
O avanço estratégico do BE e do PCP
Vamos falar então de «jogos partidários», que é donde agora saem os governos. Para António Costa, o jogo é óbvio: só como primeiro-ministro pode voltar ao Largo do Rato sem correr o risco de ser pendurado numa árvore. Para o BE e o PCP, também: é o jogo de sempre. Ao contrário do que se diz, não foram eles que mudaram, foi Costa. O PCP e o BE estiveram sempre dispostos a apoiar um governo do PS: bastaria que o PS rompesse com a «direita». A expressão «maioria de esquerda» foi aliás inventada pelo PCP em 1976. Em 1987, o PCP esteve pronto, com o PRD, a juntar-se no governo ao PS. Em todas as ocasiões, foi o PS – ou, mais precisamente, Mário Soares — , que recusou misturar-se com o PCP.
O PCP e o BE não querem por enquanto tirar Portugal da NATO ou do Euro. O PCP e o BE são partidos leninistas, e os leninistas aprenderam a actuar por «etapas». Nesta «etapa» inicial, têm dois objectivos: comprometer e condicionar o PS, e aceder aos recursos do Estado (o «queijo Limiano» também é vermelho). A declaração de Catarina Martins ontem, ao abolir o governo PSD-CDS após uma conversa com Costa, revela o jogo: o BE e o PCP estão resolvidos a um «recuo programático», se isso corresponder a um «avanço estratégico», que deixe o PS à sua mercê.
A redução do PS
Vigora ainda a tese de que esta é a ocasião de o PS comprometer no governo o PCP e o BE, de modo a absorver os seus eleitores. Talvez sim, mas talvez não. O PS, no caso de Costa realizar o seu «governo de esquerda», corre dois riscos. O primeiro é ajudar a fixar, a partir do Estado, o eleitorado até agora volátil do BE. Nunca mais o PS se livraria da concorrência bloquista, como ao fim de 40 anos ainda não se livrou do PCP, devido ao poder que os comunistas adquiriram nas autarquias e nos sindicatos.
O segundo risco é o PS perder os seus eleitores «moderados». A partir do momento em que o PS fizesse parte de um bloco com dois partidos que, mesmo sem conspirarem nos quartéis, não acreditam na democracia pluralista nem na economia de mercado, muitos cidadãos que acreditam nessas coisas hesitarão em votar PS. Ou seja, o resultado do jogo de António Costa poderia ser uma redução do voto do PS, e a consolidação eleitoral do BE, ao lado do PCP. Nesse cenário, a esquerda passaria a consistir em três partidos, a valer 10% – 15% de votos cada um, e a valerem todos em conjunto menos do que valem agora. Seria o fim do PS como grande partido de governo e também, por isso, o fim da «maioria de esquerda» em Portugal. E logo que isso fique claro, a aliança PS-PCP-BE tornar-se-á mais instável do que um saco de gatos.
A oportunidade da direita
E é aqui que convém entrar em linha de conta com a direita. Quase toda a gente parece pressupor que a direita ficaria sentadinha e caladinha enquanto Costa invade São Bento com o PCP e o BE. Não esperem tanta abnegação. A direita não pode ficar quieta, a não ser que queira desaparecer numa nuvem de irrisão. Imaginem-se no lugar do PSD e do CDS. Primeiro, tiveram de executar um ajustamento negociado pelo PS, apenas para verem Costa renegar todas as responsabilidades e deixar-lhes o odioso. Depois, ganharam as eleições segundo as regras antigas, apenas para verem Costa mudar as regras e roubar-lhes o governo.
A conformarem-se sem luta com mais esta golpada de Costa, os líderes do PSD e do CDS acabariam desacreditados. Também eles, por uma questão de sobrevivência, serão obrigados a subir a parada. Em 2004, a enorme pressão criada pelas esquerdas levou Sampaio à dissolução, apesar da maioria de direita no parlamento. Desta vez, caberia à direita ajudar o próximo presidente a concluir que o País precisa de uma clarificação eleitoral, apesar da maioria de esquerda. A direita terá de vir para as redes sociais e para a rua. Terá de mostrar-se «indignada» com a «ilegitimidade» de um governo de derrotados nas eleições. Terá de exigir que seja dado ao povo, em Maio ou Junho, logo que seja possível, o direito de votar numas eleições em que se defrontem claramente duas coligações, a do PSD-CDS e a do PS-PCP-BE. Será essa, aliás, a única maneira de evitar maior crise.
Depois de quatro anos de austeridade, a resistência à «Frente Popular» será para o PSD e o CDS a grande oportunidade de se reconciliarem com o seu eleitorado e, sobretudo, de recuperarem de vez para uma maioria de direita os eleitores do PS que acreditam na democracia pluralista e na economia de mercado. Nunca, por isso, o PSD e o CDS aceitarão o governo Costa-PCP-BE como «normal» antes de novas eleições.
Uma nova polarização política
É também natural que a «Frente Popular» tente aproveitar a resistência do centro-direita. Acusará o PSD e o CDS de «radicalização», como aliás já está a fazer. Há-de inventar conspirações «fascistas» e conjuras do «imperialismo alemão». Fará comícios com Varoufakis e Pablo Iglesias, com toda a gente a gritar «não passarão». Radicalizar-se-á mais do que Costa e até o PCP e o BE têm previsto.
Ficaremos outra vez entre «fachos» e «comunas» como em 1975, para grande confusão das gerações que nasceram depois e que não gostam de se «enervar» com a política. É verdade que desde vez não há COPCON. Nem por isso deveremos deixar de recear algum tipo de ruptura política que, num país meio falido e numa democracia agora sem regras, terá custos e demorará anos a sarar. E tudo isto para quê? Para António Costa não se demitir de secretário-geral do PS. A grande história é, por vezes, feita de pequenas coisas.
Costa no seu labirinto
Maria de Fátima Bonifácio, Observador, 11 de Outubro de 2015
«Costistas» no PS são todos aqueles que se servem
de António Costa para que usurpe o poder contra o eleitorado e lhes devolva a
«importância», os «lugares», as prebendas e o acesso ao «spoils
system».
Parto para a análise da intrincadíssima situação em
que o País mergulhou, pela mão traiçoeira de Costa, de quatro dados que ou têm
sido omitidos ou pouco valorizados. São, para mim, dados essenciais e
decisivos. Essenciais significa essenciais. Decisivos significa que
determinaram tudo até agora e continuarão a determinar no futuro. Apenas não
sei qual é o limite temporal deste futuro, nem qual será o seu desfecho. Esses
dados são:
1.º Costa é um homem absolutamente desesperado.
2.º Costa já não tem nada, mas mesmo nada de nada a
perder.
3.º Tudo o que não seja chegar a primeiro-ministro
não basta para o salvar.
4.º Costa não tem carácter, não é homem de palavra,
não olha a meios.
O desespero é mau conselheiro
em todas as circunstâncias. No caso de Costa, em que o desespero ainda por cima
se conjuga com o vexame pessoal, a primeiríssima prioridade do ex-Messias é
salvar a sua pele, custe o que custar, doa a quem doer, pague quem pagar. País,
partido, eleitores e simpatizantes foram banidos do perímetro das suas
preocupações, no interior do qual ele esbraveja como um náufrago para se
salvar. Está disposto a tudo, a renegar tudo, a arrasar tudo, desde que ele se
erga dos escombros – e escombros já há – e possa anunciar: venci todos, ganhei
tudo! Da plateia do seu palco imaginário, o PCP e o Bloco soltarão uma sonora
gargalhada. O triunfo anunciado por Costa repousa por inteiro nas mãos deles.
No momento propício e oportuno para cada um destes dois adversários entre si,
cada um deles lhe puxará o tapete para que todos possam ver que «o rei vai nu».
Costa já não tem nada a perder. Jogou tudo, apostou
tudo naquele fatídico dia em que escarneceu da vitória «poucochinha» por que
Seguro ganhara as europeias à Coligação. Ficou obrigatoriamente comprometido
com o imperativo irrevogável de lhe contrapor um triunfo esmagador nas
legislativas de 2015. Durante um ano andou levado em ombros, empunhando a taça
dos vencedores, muito antes de ter vencido e de a batalha começar. Perdeu
abjectamente. A muito ténue esperança que lhe restava (ou já nem isso?) a
poucos dias do 4 de Outubro transmutou-se num ápice numa tormenta. O vexame era
insuportável. De uma penada, perdia um curriculum de décadas, o sonho de uma
vida, um presente triunfal, e diante de si abria-se um futuro vazio. É formado
em Direito, mas não é jurista, e teria de recomeçar a advocacia por um segundo
estágio. Não exerce profissão para que se possa virar. Aos cinquenta e quatro
anos já não se pode começar nada. Sem um passado sobre o qual se continue a
construir para a frente, o resto da vida não passará de um frustrante remedeio.
Ou seja, não é vida. A solução para este desastre pessoal surgiu rápida: não
vencera as eleições, mas ainda podia vencer o eleitorado.
Nos dias que se seguiram ao tétrico veredicto das
urnas, Costa entrou na sua, muito dele, «espiral labiríntica». Em abono da
verdade, já antes dera sinais: anunciara que chumbaria qualquer Orçamento de
Estado que a Coligação apresentasse, no caso, enunciado como mera hipótese
académica, de o «seu» PS não vencer com a maioria absoluta que diariamente
implorava aos portugueses. Na noite televisiva, Costa apresentou-se amarelado e
com ar grave. Declarou que não faria «coligações negativas», das que servem só
para bota-abaixo. Mas não tardou a ser ele mesmo: com sorriso aberto e ar
galhofeiro, garantiu à audiência que não se demitiria… Percebeu-se que se
extinguira nele qualquer vestígio, ténue ou remoto, da mais elementar
dignidade. E logo a partir de 5 de Outubro percebeu-se também, à medida que
muitos socialistas começavam a rosnar, que em seu entender havia uma única
coisa que o poderia ainda salvar: chegar, efectivamente, a primeiro-ministro de
Portugal. Tudo o que fosse um milímetro menos disto não bastava, não dava para
as necessidades (já direi quais eram). Tornar-se o mero líder de uma bancada
comprometida com um «entendimento» com o governo Passos Coelho/Paulo Portas?
Nem pensar.
Vamos então pôr mãos à obra e vencer o eleitorado.
Um político honrado não faz uma coisa tão feia? Mas Costa já fizera coisas
feíssimas! Como acontece com qualquer droga, o pior é começar: o vício
entranha-se e naturaliza-se imediatamente. Em Fevereiro de 2013 assinara com
Seguro o Documento de Coimbra, «Portugal Primeiro», para o qual disse que tinha
contribuído e no qual também disse que se revia. Deu «os parabéns» a Seguro
pelo «entendimento» a que se chegara e desistiu da sua candidatura a
secretário-geral. Este documento de orientação estratégica, assinado por Costa
e Seguro, foi aprovado pela Comissão Política do PS e serviria de base à moção
de estratégia aprovada no Congresso do PS de 26-28 de Abril. Costa discursou:
«Estamos aqui juntos, juntos somos fortes, juntos somos imbatíveis, juntos
venceremos tudo: autárquicas, europeias e legislativas.»
Oito meses depois, em Janeiro de 2014, Costa rasga
o Documento de Coimbra assinado por si, renuncia ao mandato de Presidente da
CML que jurara cumprir até ao fim. E o resto já toda a gente sabe: ganhou por
margem albanesa as primárias e defenestrou Seguro do Rato. Calçou os patins e
durante algum tempo encontrou piso liso e desembaraçado. Ao primeiro teste à
sua envergadura, falhou logo. António Nóvoa saiu-lhe ao caminho com muita
poesia, candura e total abertura: outro homem disposto a tudo para chegar a
Belém, com poucos escrúpulos (não sabia se era crente, nem se gostava mais do
PS ou do PC), muitíssima ambição disfarçada de modéstia, e completa abertura:
venha um governo de esquerda, acabe-se com esse aberrante «arco da governação».
Problema: Nóvoa dividia o PS. Solução: um dia sim, outro dia não. Nóvoa ficou a
cozer em lume brando para o que desse e viesse. E ainda hoje não se fartou de
servir de roda sobresselente; outro homem de carácter.
Costa contratou Centeno para lhe dar números que
ele não percebia. Who cares? Tinha números, tratava as coisas a
sério. O generoso programa assente em tão claros números era sólido. Provavam
matematicamente que a austeridade era dispensável sem com isso comprometer as
obrigações para com a Europa, o Euro e o Tratado Orçamental. Mas a esquerda
dentro do PS logo descobriu, sob o fresco verniz socialista de Centeno, um
economista neo-liberal. Disto mesmo se queixava o Bloco, e também o PC: Costa
não tinha a coragem de «cortar com as políticas de direita» com que o PS desde
sempre andara amancebado. Costa encheu-se de mais coragem. A poucos dias do fim
da campanha eleitoral deu uma valente guinada para a extrema-esquerda. E no dia
seguinte às eleições perdidas, encheu-se da coragem toda: declarou guerra
contra os eleitores.
Tenho-o visto como os grandes campeões de xadrez
que se deslocam de mesa em mesa jogando com vários parceiros ao mesmo tempo.
Mas Costa não é campeão de nada (com a possível excepção de um sórdido
tacticismo). Transformou-se num pedinte que mendiga apoio para um governo seu.
Renega a Tradição do PS como fronteira da liberdade e arrasta o partido pelo
chão até às moradas dos seus piores inimigos. Nada disto o envergonha. E,
espantosamente, não lhe ocorre que o feitiço se possa virar contra o
feiticeiro. A primeira porta a que bateu foi a do PC, catedrático da astúcia
estalinista. Jerónimo, aconselhado pelo ainda mais indefectível Francisco
Lopes, mostrou-se afável, tolerante, aberto, com a singela condição de que o PS
«corte com as políticas de direita» que ao longo das décadas têm feito dele um
servo do Capital. Costa saiu satisfeito, a reunião foi «muito positiva». Ou
seja, muito naturalmente, da noite para o dia, o PCP fizera uma transfusão de
sangue e eliminara Cunhal, a Tradição e Toda a Tralha Estalinista. Costa
meteu-se pela boca do lobo dentro e pediu o Diabo em casamento. Mas necessita
de bigamia, porque os deputados comunistas não bastam. Amanhã, segunda, ainda
terá de levar o PS a rastejar até à morada do Bloco.
Disse que já havia escombros. O PS sempre foi um
partido com uma ala mais centrista e uma ala mais a puxar à esquerda. Sócrates
deixou lá dentro uma facção própria que complicou esta antiga arrumação a que
todos estavam habituados. Mas com António Costa, o Partido Socialista está
inextricavelmente balcanizado: são os socratistas, os alegristas, os
seguristas, os galambistas, os soaristas de Mário e de João Soares, alguma
«tralha guterrista», e, surpresa das surpresas, os novíssimos «nunistas». Sim,
nunistas, uma seita ruidosa cujo representante máximo, um tal Pedro Nuno
Santos, Costa leva sempre consigo na augusta delegação socialista que peregrina
pelas outras sedes partidárias. Galamba há muito que se celebrizou por ser
sempre uma espinha cravada da garganta de qualquer moderado. De Nuno Santos só
me lembro do momento em que berrou no Parlamento, com hercúlea coragem, «Quero
lá saber da Troika ou da Europa!» Pelos vistos, singrou. Finalmente, há pelo
menos ainda um grupo de «costistas». Mas quem são, afinal, os costistas?
Indaguei junto dos meus amigos socialistas (que são a maioria). Ninguém me
soube dizer ao certo. Concluí, portanto, por minha conta e risco. «Costistas»
são todos aqueles que se servem de António Costa para que ele usurpe o poder
contra o eleitorado e lhes devolva a «importância», os «lugares», as prebendas
e o acesso ao «spoils system» a que já se tinham habituado. Uma excepção
honrosa cumpre desde já destacar: Sérgio Sousa Pinto não teve estômago para
semelhante caldeirada. Demitiu-se ontem do secretariado do PS.
segunda-feira, 12 de outubro de 2015
Campanha de promoção da Deco
origina numerosas queixas de sócios
José António Cerejo,
Público, 11 de Outubro de 2015
Tablets prometidos
em troca da inscrição dos sócios demoram meses a chegar e suscitam críticas.
Muitos dos novos sócios desistem após receberem a oferta. Associação diz que o
assunto não tem interesse público.
A grande maioria das queixas prende-se com os
atrasos na entrega de tablets prometidos a novos aderentes.
O site da Deco, o Portal da Queixa e algumas
páginas do Facebook, incluindo a da própria Deco, apresentam desde há meses
centenas de reclamações de sócios daquela associação de consumidores que protestam
contra o alegado incumprimento das obrigações por ela assumidas nas suas
campanhas de angariação de membros.
A grande maioria das queixas prende-se com os
atrasos na entrega dos tablets sem marca prometidos pela Deco
aos novos sócios desde Outubro do ano passado. Mas há muitas outras que se
dirigem genericamente àquilo que os seus autores designam de «publicidade
enganosa» por parte da associação, nesta e noutras campanhas em que são
prometidos brindes aos aderentes.
A direcção da associação de consumidores reconhece
a existência de atrasos na entrega dos tablets, que atribui à
«incapacidade do fornecedor dar resposta ao número de pedidos», muito superior
ao esperado, mas recusa-se a responder às perguntas concretas que lhe foram
dirigidas pelo PÚBLICO.
Apesar de a Deco se fazer notar há muitos anos por
um estilo promocional muitas vezes classificado como agressivo, a campanha que
está em curso até 31 de Janeiro deixou muitos consumidores estupefactos. «Um tablet por
2 euros? Não pode ser verdade!» Comentários como este encheram as redes sociais
logo que as baterias de marketing da Deco levaram a mensagem a quem anseia por
uma pechincha, e também a quem está farto de ser incomodado, por telefone,
carta e email, com as campanhas.
A oferta da maior associação de consumidores
portugueses aos novos sócios consiste no envio gratuito de quatro das suas
revistas, no acesso às restantes vantagens atribuídas aos sócios e, finalmente,
conforme se lê no seu site, na entrega de «um presente de boas-vindas: um fantástico tablet».
Em contrapartida, os interessados tinham
inicialmente de pagar apenas dois euros, através de uma autorização de débito
directa na sua conta bancária. Este valor correspondia a dois meses de
subscrição, preço que subia para 6,75 euros nos dez meses seguintes e —
percebia quem lesse a totalidade dos materiais promocionais — para o custo
normal da subscrição ao fim de um ano: 13,60 euros mensais.
Entretanto o preço inicial de dois euros por dois
meses subiu para cinco euros, sem que a Deco explique o motivo, nem sequer
confirme a data em que isso aconteceu, provavelmente no início do Verão. Os
«termos e condições da oferta» avisam, contudo, que «qualquer aumento no preço
das subscrições será anunciado com antecedência [nas publicações da
organização] e, em seguida, aplicado automaticamente».
De acordo com as «condições gerais» da oferta, os
novos subscritores (é assim que a Deco se refere normalmente aos associados)
recebem as revistas três semanas depois da recepção do pedido de adesão. Logo a
seguir, sem se comprometer claramente com qualquer prazo, a associação diz que,
«após o primeiro pagamento», recebem o «presente de boas-vindas» com uma
garantia de dois anos.
Atraso ou expediente?
Particularmente atractiva para muitos dos alvos da
campanha é a cláusula que fixa a possibilidade de cancelamento da subscrição em
qualquer momento, sem qualquer explicação e ficando o ex-sócio «com o que já
recebeu», neste caso o tablet e as revistas.
Foi graças a ela que um número indeterminado de
candidatos ao tablet se fizeram sócios, desistindo logo após a
recepção do «presente». A acreditar no que muitos escrevem nas redes sociais, o
único objectivo que tinham era receber a «máquina», havendo quem confesse que
se voltou a inscrever logo a seguir, para receber outro tablet —
facto que as respostas da Deco a algumas reclamações acessíveis no seu site
confirmam. Outros houve que inscreveram a família toda com o mesmo fim,
cancelando de imediato as inscrições.
A enxurrada de novos sócios explica, segundo a
Deco, a ruptura dos stocks de tablets, e os atrasos de meses na
entrega dos mesmos. Alguns dos que aderiram à campanha e agora se queixam
acusam no entanto a associação de atrasar as entregas como expediente para
receber mais dinheiro, uma vez que a partir do segundo mês o valor mensal
cobrado é de 6,75 euros.
A grande maioria das reclamações e protestos tem a
ver com a demora dos tablets, sendo que muitas delas assumem
erradamente que havia um compromisso de entrega no prazo de três semanas (o
qual respeitava apenas às revistas). Muitas outras, porém, visam a alegada
fraca qualidade e deficiência de funcionamento dos tablets. Com
frequência, os queixosos perguntam então: e agora a quem é que os consumidores
se vão queixar da Deco?
Contactada pelo PÚBLICO, a associação recusou-se a
prestar qualquer informação concreta sobre temas como o número de pessoas que
aderiram à campanha, o número de tablets já entregues, o
número de cancelamentos de subscrições por parte dos novos sócios, o número de
reclamações recebidas e respondidas, ou o investimento global feito com a
campanha.
Em resposta, o novo director de edições da
organização, Nuno Fortes (que entrou em funções no mês passado e não faz parte
dos órgãos sociais da associação), diz que «a maioria dos dados» solicitados
«fazem parte da estratégia de gestão» da Deco. «Embora [esses dados] sejam
escrutináveis através dos relatórios que anualmente publicamos, não são
partilháveis a priori, quando, no nosso ajuizamento, não está
sequer em causa qualquer actuação menos lícita nem um tema de interesse
público», escreve Nuno Fortes.
O Relatório de Actividades e Contas da Deco
relativo a 2014 não faz, todavia, qualquer referência à campanha dos tablets,
nem a qualquer outra do género. De acordo com esse relatório, a associação teve
no ano passado um lucro de 289.931 euros, dos quais 271.597 respeitam a 25% dos
lucros da Deco Proteste Editores Lda, a empresa proprietária da Proteste e das
outras revistas distribuídas pela organização.
O capital da Deco Proteste Editores é partilhado
pela empresa luxemburguesa Euroconsumers SA, que detém 75% das acções, e pela
Deco, com 25%. As quotizações pagas pelos cerca de 400 mil sócios da associação
somaram três milhões e quarenta mil euros.
No email enviado ao PÚBLICO, Nuno
Fortes afirma que os problemas surgidos com a campanha dos tablets têm
origem na «incapacidade do fornecedor em dar resposta ao número de pedidos,
embora tenha acelerado a produção de novos aparelhos». A adesão de novos
subscritores tem estado acima das «melhores expectativas» da Deco, acrescenta,
garantindo que os atrasos de quatro e cinco meses referidos nalgumas
reclamações respeitam, «na sua esmagadora maioria», a «casos excepcionais de
novos associados que forneceram contactos errados e/ou insuficientes».
Em todo o caso, salienta Nuno Fortes, «o número de
desistências/cancelamentos é ínfimo e incomparável com a entrada de novos
associados». Para «minorar o impacto negativo» do atraso na entrega dos
equipamentos, a associação assegura que tem tido o cuidado de informar «através
de comunicação específica todos os novos associados desta demora e do seu
fundamento, o que não é sinónimo de que todos estejam disponíveis para
compreender o motivo alegado ou que não dêem conta do seu descontentamento
publicamente».
Queixas idênticas noutros países
Tal como em Portugal, também nos outros três países
europeus em que existem associações de consumidores ligadas à sociedade
Euroconsumers SA surgiram inúmeros protestos relacionados com a campanha dos tablets.
Isto porque a OCU (Organización de Consumidores Y Usuarios), de Espanha, a Test
Achats belga e a Altroconsumo italiana têm no terreno campanhas idênticas às da
Deco, em que são oferecidos os mesmos tablets aos novos
sócios.
O conceito é exactamente o mesmo e os materiais
promocionais utilizados são muito semelhantes, o mesmo acontecendo com os sites
das associações e com as revistas publicadas. As diferenças mais notórias
prendem-se com o preço da subscrição e com os prazos de entrega dos aparelhos.
Enquanto que a Deco e a OCU começaram por pedir
dois euros para que os novos sócios pudessem receber o «presente» e depois
subiram para cinco euros, a Test Achats e a Altroconsumo mantêm-se nos dois
euros. Quanto aos prazos, ao contrário da Deco que não indica um prazo limite
para a entrega, a OCU garante que ele será entregue no prazo máximo de dois
meses, a Test Achats indica três meses e a Altroconsumo seis meses.
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