sábado, 27 de dezembro de 2014


Isto é só para se perceber com que «lapsos»

o Estado e nós, pagantes, somos roubados...


A ocasião em que o embaixador percebeu que não há almoços grátis

Público31 Agosto 2014

Advogados cobram 1 080 euros ao Estado por terem ido almoçar...

Embaixador Pedro Catarino, presidente da Comissão Permanente de Contrapartidas, cessou contrato com a Sérvulo Correia & Associados, depois de lhe ter sido cobrada a presença de três advogados num almoço e a resposta a uma carta

Pedro Catarino, presidente da CPC, invocou «quebra de confiança» para cessar o contracto com o escritório Sérvulo Correia & Associados. A razão: duas contestadas facturas de honorários

                                                                                                     Paulo Pena


Sérvulo Correia

No dia 4 de Outubro de 2007, o embaixador Pedro Catarino sentou-se à mesa para um almoço, para o qual tinha sido convidado pelo seu velho conhecido, o advogado Bernardo Ayala, sócio da Sérvulo Correia & Associados. Foram duas horas de «amena cavaqueira», na descrição do embaixador, que contaram com a presença de duas advogadas daquele escritório, Lisa Pinto Ferreira e Mafalda Ferreira.

Catarino presidia, desde Janeiro daquele ano, à Comissão Permanente das Contrapartidas (CPC), a estrutura estatal criada no âmbito dos ministérios da Defesa e da Economia, para acompanhar o desenvolvimento dos contractos que prometiam injectar várias centenas de milhões de euros, e resultavam de negociações entre o Estado e os vendedores de veículos e armamento para as Forças Armadas.

Bernardo Ayala e as suas colegas eram parte da equipa da sociedade de advogados que prestava assessoria à CPC desde 2003, quando começaram as contrapartidas a sério: no ano seguinte seria assinado o contracto dos submarinos, que previa o investimento de cerca de mil milhões de euros na economia nacional. Ayala fora, nessa altura, um dos principais arquitectos dos contractos, trabalhando com o Ministério da Defesa chefiado por Paulo Portas.

Dois meses depois do almoço, veio uma conta. A Sérvulo Correia & Associados enviou, como era prática corrente, as facturas do trimestre, para a entidade que pagava os gastos da CPC, a Direcção-Geral do Armamento e Equipamentos da Defesa (DGA- ED). Em Dezembro de 2007, Catarino foi chamado à direcção-geral para conferir. E não ia disposto a assinar de cruz.

No meio de «centenas de horas» de trabalho cobradas pela sociedade de advogados estava uma factura de «duas horas» vezes «três juristas», com um valor de «1 080 euros + IVA». A data: 4/10/2007. Era a conta do almoço. Da reacção imediata de Pedro Catarino não há registo. Mas uma carta do embaixador, de 9 de Janeiro de 2008, endereçada ao DGAED, almirante Viegas Filipe, sintetiza o que o presidente da CPC pensava sobre aquela factura: «Um abuso e deontologicamente reprovável que a Sérvulo Correia venha pedir honorários pelas duas horas que os três juristas passaram comigo em amena cavaqueira».

O Estado recusou pagar aqueles «1 080 euros + IVA», e disso deu nota ao escritório de advogados. A Sérvulo Correia & Associados reconheceu o «erro». E fê-lo por carta. O problema é que a missiva enviada também tinha um preço: «quarenta e cinco minutos» de honorários pela sua escrita. O que deixou Pedro Catarino exasperado. Desta vez, o embaixador escreveu ao próprio ministro, Nuno Severiano Teixeira, dando conta de que cessara o contracto com a sociedade de advogados. Da substituição da Sérvulo Correia pelo Departamento Jurídico do MDN, no seu entender, «resulta uma considerável poupança para o orçamento do MDN e erário público».

Este episódio tinha ficado encerrado, em Junho de 2008, com uma nova carta, de Catarino para o secretário-geral do Ministério da Defesa, pedindo uma lista detalhada com «os montantes despendidos com Sérvulo Correia por serviços prestados à CPC entre 2003 e 2008».

E se hoje este caso é contado, pela primeira vez, no PÚBLICO, é porque causou alguma curiosidade nos deputados que integram a comissão de inquérito às contrapartidas militares. Há cerca de um mês, depondo na comissão de inquérito, Pedro Catarino revelou aos deputados que a CPC vivia na dependência de «escritórios de advogados», que «tinham os arquivos, escreviam as actas, passavam as cartas para inglês». Nessa ocasião, Catarino revelou que resolveu terminar o contracto com a Sérvulo Correia por «quebra de confiança». Mas pediu aos deputados para que não o obrigassem a detalhar as razões, indicando que o fizera por carta para os responsáveis da Defesa da altura.

A Comissão, a pedido de João Semedo do Bloco de Esquerda, solicitou à Direcção-Geral das Actividades Económicas (que guarda o espólio da extinta CPC) essas cartas. Que chegaram há poucos dias a São Bento e já motivaram algumas reacções, quer do deputado José Magalhães, do PS, quer do próprio presidente da comissão, Telmo Correia.

O PÚBLICO contactou Bernardo Ayala que, prontamente, pediu à Ordem dos Advogados que o libertasse do «dever de sigilo profissional» para comentar este caso, que protagonizou em 2007. Ayala confirma parte da história. E disponibilizou uma carta que enviou ao embaixador Pedro Catarino, no dia 10 de Janeiro de 2008. Aí, o advogado assume: «Tratou-se de um convite pessoal e, muito embora a conversa tenha tido cunho profissional, os interesses em causa eram sobretudo da Sérvulo Correia & Associados».

Ao PÚBLICO, Ayala mantém essa ideia, acrescentando que a factura se tratou de um «lapso». «O almoço teve lugar por minha iniciativa e nesses casos não só não imputo os respectivos custos como não contabilizo o tempo inerente para efeitos de facturação». Era prática da sociedade que as horas laborais dos advogados fossem meticulosamente registadas, cabendo depois aos próprios indicar se não fossem destinadas a ser facturadas aos clientes. Na carta, Ayala esclarece: «Esqueci-me, pura e simplesmente, de passar essa relevante informação ao departamento de contabilidade».

Quanto à segunda factura, o advogado «ignorava em absoluto». E explica: «Saí da Sérvulo Correia & Associados em 31 de Março de 2008. É a primeira vez que tomo conhecimento dessa informação». No entanto, Ayala garante que foi ele quem pôs termo à relação profissional, e não a CPC. É assim, aliás, que termina a sua carta para Catarino: «Entendo que esta carta deve marcar o fim dessa nossa colaboração profissional, pois não tenho qualquer desejo de a manter, tendo em conta as expressões que V. Exª escolheu empregar na sua carta».

Hoje, Pedro Catarino é o representante da República nos Açores, nomeado pelo Presidente da República, Cavaco Silva. Bernardo Ayala é sócio da Uría Menéndez-Proença de Carvalho. Foi, até 2012, arguido num processo relacionado com os submarinos, que o Ministério Público arquivou sem que nada lhe fosse «imputado» e sem que tivesse sido sequer «ouvido». Faz parte da lista de depoentes da comissão de inquérito indicados pelos deputados, mas a Ordem dos Advogados recusou levantar-lhe a obrigação de sigilo profissional. Diz-se, contudo «disponível» e até revela ter «interesse» em comparecer no Parlamento.

Para já, o Bloco de Esquerda repetiu o pedido de Pedro Catarino e quer conhecer as depesas feitas com a Sérvulo Correia & Associados. O pedido foi aprovado pela comissão.


QUEM É SÉRVULO CORREIA

É membro do Tribunal Permanente de Arbitragem, em Haia.

Integrou o Conselho Superior da Ordem dos Advogados, de 2005 a 2007.

Foi um dos primeiros militantes do Partido Social Democrata, depois do 25 de Abril de 1974.

Integrou o VI Governo Provisório, como Secretário de Estado da Emigração, em 1976.

Entre 1976 e 1979 foi deputado à Assembleia da República, onde exerceu funções como Vice-Presidente do Grupo Parlamentar do PSD e Presidente da Comissão Parlamentar de Saúde e Segurança Social.

Foi Secretário-Geral da Comissão Política Nacional do PSD, em 1978.

Em 1979 abandonou o partido, na cisão que deu origem à Acção Social Democrata Independente.

Recebeu em 2008 a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, das mãos de Cavaco.





quarta-feira, 24 de dezembro de 2014


1.º de Dezembro:

Carta a Vasco Pulido Valente


JOSÉ RIBEIRO E CASTROSOFIA GALVÃO e RICARDO SÁ FERNANDES Público

Vasco Pulido Valente (VPV) escreveu na edição do PÚBLICO de domingo dia 7 de Dezembro uma crónica intitulada «Feriados», que é susceptível de induzir o leitor em engano, uma vez que contém erros factuais a respeito do 1.º de Dezembro e do seu feriado.

1. VPV começa por menosprezar a Restauração e o 1.º de Dezembro do ponto de vista histórico, com uma leitura ideológica algo enviesada.

Discordamos, mas não é este o ponto deste texto. A Restauração, período que vai desde o 1.º de Dezembro de 1640 a 13 de Fevereiro de 1668, data de assinatura do Tratado de Lisboa que estabeleceu a paz com Madrid, é objecto de diferentes leituras e interpretações pelos historiadores.

O fundamental é que, a partir daí, a partir do 1.º de Dezembro e da Guerra da Restauração em que saímos vitoriosos, Portugal reganhou a sua independência plena, de novo com soberano próprio – foi posto termo ao domínio filipino e à chamada monarquia dual, em que Portugal estava sujeito a rei espanhol desde 1580, mais exactamente desde as Cortes de Tomar, que, em Abril de 1581, reconheceram Filipe II como soberano também no nosso país (Filipe I de Portugal).

2. Vasco Pulido Valente escreve, a seguir: «Na segunda metade do século [XIX], ninguém se lembrava do '1 de Dezembro' e os críticos do regime, de Ramalho Ortigão aos republicanos, desprezavam e ridicularizavam a «Sociedade 1.º de Dezembro» (que não sei se ainda existe), como centro de propaganda da corte e dos Braganças. Só os criados se metiam nessa fantasia, que o grosso do país letrado não levava a sério.»

Primeiro, uma informação: sim, ainda existe. Nunca se chamou «Sociedade 1.º de Dezembro», mas «Comissão Central 1.º de Dezembro de 1640»; e denomina-se, hoje, Sociedade Histórica da Independência de Portugal, designação que adoptou nos anos '20 do século passado. Celebrou há poucos meses 153 anos de existência e actividade. Hoje, como desde o início, tem sede no Palácio da Independência, o antigo Palácio dos Almadas onde nasceu a revolta dos 40 conjurados de 1640.

Em segundo lugar, as correcções.

A Comissão Central 1.º de Dezembro de 1640 foi o pólo da prolongada movimentação que, mais tarde, depois de décadas de persistente intervenção cívica, levaria à instituição legal do feriado nacional do 1.º de Dezembro. Foi fundada em 24 de Maio de 1861, tendo lançado um Manifesto em 25 de Agosto do mesmo ano, na tal «segunda metade do século, [em que] ninguém se lembrava do 1 de Dezembro», segundo VPV.

Nesta mesma segunda metade do séc. XIX, a Comissão Central desenvolveu vasta actividade pública, por iniciativas sociais, editoriais e culturais, nomeadamente concursos de teatro, récitas, conferências de carácter histórico-cultural e político-institucional e exposições didácticas. E dinamizou campanhas públicas de angariação de fundos de que resultou a edificação de importantes monumentos, de cunho português e patriótico: a estátua a Luís de Camões, em Lisboa (1867); a estátua ao poeta Bocage, em Setúbal (1871); a estátua a Sá da Bandeira, em Lisboa (1884); o Monumento aos Restauradores, também em Lisboa, na actual Praça dos Restauradores (1886); e a estátua a D. Afonso Henriques, em Guimarães (1888). Tudo isto no período em que, segundo VPV, a «Sociedade 1.º de Dezembro» estaria votada ao desprezo e ao ridículo.

Mais interessante é conhecer a lista dos tais «criados», os únicos que, segundo VPV, «se metiam nessa fantasia, que o grosso do país letrado não levava a sério.»

Os fundadores da Comissão Central 1.º de Dezembro e signatários do Manifesto de 1861 foram 40 destacadas figuras da sociedade portuguesa do tempo, incluindo políticos, como Anselmo José Braamcamp (que foi líder do Partido Histórico ou Partido Progressista, um dos dois principais partidos da Regeneração), ou o celebrado tribuno José Estêvão; historiadores, como o grande Alexandre Herculano e Luís Rebelo da Silva; outros escritores, como José da Silva Mendes Leal ou Pedro de Brito Aranha; industriais de renome, como Domingos Ferreira Pinto Basto (da segunda geração da «Vista Alegre») ou António José Pereira Serzedelo Júnior (que muito marcou, tal como seu pai, as primeiras décadas do «Banco de Portugal»); além de ilustres diplomatas, bibliógrafos, jornalistas, publicistas e comerciantes, presidentes da Câmara Municipal de Lisboa e governadores civis. Ditosa Pátria que tais «criados» tem!

É também difícil imaginar que destacadas figuras da «esquerda» liberal portuguesa desse tempo, como José Estêvão e Manuel de Jesus Coelho (ambos antigos combatentes da «Patuleia»), além de Alexandre Herculano, consumissem os seus dias a fazer «propaganda da corte e dos Braganças», como é a ideia transmitida por VPV.

3. Vasco Pulido Valente escreveu ainda: «Os republicanos, logicamente, não continuaram os festejos da dinastia (agora no exílio) e os monárquicos para se poupar a maçadas também não. O próprio Salazar, embora restaurasse o feriado, nunca fez um alarido à volta do caso e deixou a 'Sociedade' agonizar no Rossio com a maior indiferença.»

Nada de mais errado.

O feriado do 1.º de Dezembro foi instituído, em lei, pela 1.ª República (e não por Salazar), logo nos primeiros dias, gesto que marca o pleno sucesso das movimentações cívicas das décadas anteriores. É o primeiro Governo Provisório da República Portuguesa que, por Decreto de 12 de Outubro de 1910, consagra o dia 1 de Dezembro como feriado nacional, então designado como dia da «Autonomia da Pátria Portuguesa» e, pouco depois, «dia da Independência e da Bandeira». Passou, assim, a ser o mais antigo dos feriados civis portugueses, pacificamente celebrado de modo ininterrupto, desde 1910 até à sua infeliz eliminação em 2012.

Os actos centrais das celebrações nacionais, junto ao Monumento aos Restauradores, eram já organizados em parceria da Comissão Central 1.º de Dezembro (hoje, Sociedade Histórica da Independência de Portugal) e da Câmara Municipal de Lisboa, como ainda acontece apesar da abolição do feriado com efeitos desde 2013. Juntamos, para pleno esclarecimento dos leitores, fac simile do Diário do Governo de 13 de Outubro de 1910 e fotografia das primeiras celebrações oficiais do feriado nacional do 1.º de Dezembro, em que se vêem, entre outros, Manuel de Arriaga e Afonso Costa a celebrarem aquele que, segundo VPV, foi o «feriado restaurado por Salazar».

4. A concluir, citamos um trecho de artigo recente de Luís Reis Torgal, um historiador à altura dos seus pergaminhos, com vasta obra publicada nesta matéria dos feriados: «O 1.º de Dezembro é o feriado civil mais antigo: sobreviveu à I República austera em festividades, ao Estado Novo que só recuperou os 'dias santos' em 1952 e à chegada da democracia, que nunca aboliu feriados mas acrescentou vários ao calendário.» O mesmo que criticou há poucos meses: «Terminaram com o feriado da Restauração, um dos mais simbólicos da nossa independência e afirmação. É como se estivesse em causa o nosso sentido de independência, dificilmente conseguido.»

O 1.º de Dezembro não é da República, nem da Monarquia, não é da direita, nem da esquerda. É o dia de Portugal inteiro, o mais nacional de todos os feriados nacionais. É o dia que celebra aquele valor sem o qual não existiríamos sequer: a independência nacional. Fá-lo na circunstância da Restauração, porque foi o momento em que, da última vez que a perdemos, a reconquistámos.

O 1.º de Dezembro celebra o valor fundamental da independência de Portugal, desde sempre e para sempre, como o dia nacional mais importante, à semelhança da generalidade dos países europeus e de muitos outros no mundo. Foi a data que a sociedade portuguesa livremente escolheu para esse efeito e que, mesmo fora das comemorações oficiais, continua a ser festejada em espontâneas evocações populares anuais, não só na raia alentejana e beirã (que mais sofreu a Guerra da Restauração), mas também um pouco por todo o país, em inúmeras localidades. Só não sabe quem não quer saber.





domingo, 21 de dezembro de 2014


As falácias do «inocente» Sócrates

e dos seus amigos


As últimas horas de Sócrates em liberdade

José António Saraiva, Sol, 18 de Dezembro de 2014

Sócrates partiu para Paris na manhã de quarta-feira, dia 19 de Novembro. Tudo indica que, nessa altura, já soubesse que a sua detenção estava iminente.

Na véspera tinha almoçado com o ex-procurador-geral da República, Pinto Monteiro. O almoço fora marcado com urgência, de um dia para o outro. Pinto Monteiro tinha um exame médico nessa manhã e avisou que poderia chegar atrasado. Sócrates não se importou, e disse que esperaria o tempo que fosse preciso. Acabou por esperar uma hora no restaurante.

Basta isto para perceber que não se tratava de um almoço de circunstância, como tentou fazer crer o ex-PGR. O pretexto alegadamente apresentado por Sócrates era oferecer a Pinto Monteiro um exemplar autografado do seu livro. Mas este fora publicado um ano antes e Pinto Monteiro até já o tinha, pois estivera presente no lançamento. Parece, pois, totalmente inverosímil Sócrates marcar um almoço de urgência para esse fim.

Pinto Monteiro disse que nesse almoço falaram de livros e de viagens. É bem possível. Sócrates deve ter-lhe oferecido o livro  e também lhe disse com certeza que iria viajar para Paris no dia seguinte. Ora, sendo quase certo que esperava ser detido a qualquer momento, quereria possivelmente saber se Pinto Monteiro estava a par de alguma coisa e saberia pormenores do processo. Isto explicaria a urgência do almoço.

Como previsto, Sócrates partiu para Paris na quarta-feira e deveria regressar na quinta. Também é difícil acreditar que esta viagem não tivesse qualquer relação com o processo em curso. O que poderia determinar uma viagem-relâmpago de pouco mais de 24 horas? O que iria Sócrates fazer de tão urgente a Paris?

Na capital francesa, o ex-primeiro-ministro encontrou-se com os seus alegados cúmplices Carlos Santos Silva e Gonçalo Trindade Ferreira, que entretanto tinham ido à pressa a Londres. Um e outro eram apresentados como seus testas-de-ferro em vários negócios.

Ainda em Paris, Sócrates conversou com o responsável da Octapharma em Portugal, Joaquim Lalanda de Castro, com o qual tinha um alegado esquema de entregas mensais de dinheiro. Lalanda receberia 12 mil euros por portas travessas que juntaria aos outros 12 mil que a Octapharma pagava a Sócrates. Este receberia assim 24 mil euros mensais, quantia indispensável para fazer face às suas despesas.

Ao contrário do previsto, José Sócrates não viajou para Lisboa na quinta-feira, pois adiou o voo para sexta. E na sexta voltou a adiar, já com o check-in feito, sendo obrigado a trocar o bilhete de classe executiva por turística, pois a outra estava completa.

Este segundo adiamento teve obviamente que ver com os acontecimentos da noite anterior, em que os seus amigos Santos Silva e Trindade Ferreira haviam sido presos à chegada ao aeroporto de Lisboa.

A partir daí, Sócrates sabia que iria ser o próximo detido. Por isso, o seu advogado João Araújo viajou de urgência de Lisboa para Paris e teve com ele uma demorada conversa em que discutiram o que fazer.

Mesmo sabendo que seria detido na Portela, Sócrates não podia deixar de regressar ao país. O mandado de detenção estava passado, e se ele não viesse haveria um mandado de detenção europeu e o ex-primeiro-ministro seria localizado num qualquer país da Europa e extraditado para Portugal. Além disso, a tentativa de fuga seria um reconhecimento de culpa.

José Sócrates tinha, pois, de regressar a Lisboa, inteirar-se dos crimes de que era suspeito e preparar a defesa.

Se saísse em liberdade, só com termo de identidade e residência, poderia viajar para o Brasil, como estava previsto, e aí as coisas seriam diferentes. No Brasil não existiria o perigo de extradição, como na Europa. Sócrates poderia ficar lá por tempo indeterminado, a pretexto de estar a tratar de assuntos da Octapharma, adiando sucessivamente o regresso a Lisboa. Estes eventuais planos seriam, contudo, gorados pela prisão preventiva decretada pelo juiz Carlos Alexandre.

De qualquer modo, antes de ser detido, Sócrates rodeou-se de cuidados. Na noite de 20 para 21 de Novembro (de quinta para sexta-feira), deu instruções à empregada de limpeza no Edifício Heron Castilho para retirar o computador de sua casa e mudá-lo para outro apartamento.

À chegada a Lisboa, Sócrates seria efectivamente preso. Mas antes de embarcar fizera outra coisa insólita: avisara um jornalista no qual depositava confiança da sua vinda e previsível detenção. Deste modo, pretenderia que a sua prisão fosse rodeada de grande aparato mediático – fazendo recordar o episódio Strauss-Kahn –, causando um escândalo de enormes dimensões.

Mas os agentes esperaram-no discretamente à saída da manga, conduziram-no discretamente através de uma zona reservada do aeroporto, e as únicas imagens que existem são de um carro onde não se sabe quem vai, filmado por um telemóvel ou uma câmara de vídeo do sistema de segurança.

Aqui ficam as últimas 80 horas de José Sócrates em liberdade. Deixo ao cuidado do leitor julgar se o seu comportamento foi o de um homem que não tem nada a esconder - ou se, pelo contrário, Sócrates agiu como um suspeito.

Para mim, o encontro em Paris com Santos Silva e Trindade Ferreira indicia que tinham coisas a combinar antes da detenção; o encontro com o homem da Octapharma indicia que tinham de acertar contas para não caírem em contradição; o encontro com o advogado João Araújo indicia a preparação da defesa; e a ordem à empregada para esconder o computador indicia a tentativa de ocultação de provas.