sábado, 12 de dezembro de 2015


Uma vergonha


Vasco Pulido Valente, Público, 11 de Dezembro de 2015

Se o dr. Nóvoa tiver mais do que um voto (o dele) os portugueses que se envergonhem e que não se queixem.

Dizem que, no fim da vida, Lenine lamentava a falta de «cultura» dos russos. E, se foi esse o caso, tinha razão: o comunismo não foi mais do que uma máscara do império dos czares. É evidente que a Frente Nacional de Le Pen tem uma longa história, que vai da Restauração ao «caso» Dreyfus e do «caso» Dreyfus a Vichy e ao general de Gaulle. As raízes da maioria de Costa também já estavam no arcaísmo do Partido Comunista, no espectáculo político e na insubstancialidade do Bloco e na amálgama da Maçonaria e da classe média bem-pensante, donde nasceu o PS. Não admira que dessa confusão sentimental, treinada na intriga e sem ideias, tivesse saído um candidato à Presidência da República, chamado António Sampaio da Nóvoa. Ontem esse misterioso indivíduo apareceu na televisão.

Num português impreciso e vago, tentou apresentar a sua indistinta pessoa aos portugueses. Infelizmente para ele, continuou a ser um cabide velho em que a esquerda pendurou alguns lugares-comuns, que começam por não fazer sentido e acabam por não convencer ninguém. O dr. Nóvoa apresenta como a sua maior credencial o facto de Ramalho Eanes, Mário Soares e Jorge Sampaio lhe darem a sua bênção e o seu apoio. Mas nenhum dos três se explicou ainda a esse respeito e o país continua sem saber o que eles, com a sua suposta clarividência, viram naquela tristíssima personagem. Além disto, que não é nada, o dr. Nóvoa tentou tomar um arzinho de Estado, coisa que lhe saiu postiça e aprendida de cor: ele nunca tomou uma única decisão de Estado, nem nunca decidiu sobre nada de verdadeiramente importante.


A título de recomendação pessoal, o dr. Nóvoa garantiu que a sua «imparcialidade» resistiria a tudo, que amava a liberdade extremadamente e que não se candidatava «em nome de tricas políticas». Há milhões de portugueses que podiam com a mesma cara garantir o mesmo. Só que o dr. Nóvoa quer «abrir agora um novo ciclo», embora não explicasse exactamente do que se tratava, e acha que Marcelo representa a «austeridade» e o «antigamente». Melhor: se o elegerem Presidente, ele abrirá uma «discussão pública» sobre «três pontos de interesse nacional»: a «qualidade da democracia», a importância do conhecimento e da cultura e, calculem, sobre a «Europa». A Pátria agradece, porque sem ele não lhe ocorreria falar sobre assuntos tão originais. Com estas e com outras, o dr. Nóvoa tem 13,2 por cento nas sondagens. Mas se tiver mais do que um voto (o dele) os portugueses que se envergonhem e que não se queixem.





quarta-feira, 9 de dezembro de 2015


Quem tem medo da austeridade?


Rogério Costa

Nas décadas de 80 e 90 do século passado, exerci cargos de CFO e CEO em duas empresas multinacionais, uma francesa e uma alemã, respectivamente, ambas líderes europeias, à data, nas suas áreas de actividade. Habituei-me então a horários de trabalho sem relógio, como então dizia, com uma média de mais de 10 horas por dia, consumindo 20 dias por mês nos reports de gestão habituais em unidades daquela dimensão. Qualquer semelhança entre alemães e franceses é pura coincidência. Contudo, em termos de gestão, são muito similares e coincidem em dois pontos basilares: a austeridade e o rigor necessários a qualquer organização. Em Portugal, em termos gerais e nessas matérias, continuamos a tentar sair do século XIX.

Vem isto a propósito do governo Passos Coelho de 2011-2015. Nunca tendo eu pertencido a qualquer governo, as exigências que a troika impôs e que esse governo herdou do anterior fez-me sempre recordar as minhas experiências profissionais de gestão e de execução operacionais naquelas duas multinacionais. A pressão a que o governo esteve submetido durante 3 dos 4 anos da legislatura, tinha uma base de report que se assemelhava muito à que é comum às empresas multinacionais. Ou seja, passei a encarar a realidade: Portugal foi nesse período uma filial operacional de uma Europa claramente liderada pela Alemanha a cujos ditames de gestão éramos claramente obrigados a obedecer. A culpa não era alemã. Pusemos-nos a jeito gastando sem poder até que os outros se fartaram de nos alimentar com mais dinheiro e exigiram condições para nos resgatar de uma bancarrota iminente.

Durante quatro anos assistimos a um ataque cerrado a todos aqueles que defendessem uma atitude positiva face à austeridade ou o rigor necessários aos organismos do Estado. Os próprios comentadores televisivos fugiram sempre de mencionar estas palavras malditas que encaixam mal na cultura política portuguesa e afastam os desejados votos nas urnas. O que leva à perpetuação do status quo de mendicidade em que vivemos. Trata-se, portanto, de uma questão de atitude. Que persiste quatro anos depois, como o Parlamento o demonstra.

O governo Passos Coelho enfrentou eleições em 2011, como se sabe, mas também em 2013, 2014 e 2015. Ou seja,as condições de governabilidade com tanta eleição tornam-se muito difíceis quando há que arrumar e limpar o lixo espalhado pela casa. Porém, é um facto que me pareceu por demais precipitada a elaboração do programa de austeridade a que Portugal foi obrigado. A urgência de financiamento a que a bancarrota obrigava então não facilitou a sua elaboração e facilitou as imposições dos credores. Normal. Mas a renegociação formal do programa de austeridade deveria ter sido levado a cabo de imediato, ainda em 2011, de forma discreta e convincente para os credores.

Economicamente, num país de economia aberta como o nosso, em que o consumo gera empregos nos países terceiros nossos fornecedores (veja-se o que aconteceu em 2015 com o aumento do consumo, elevando de imediato as importações) as políticas keynesianas não surtem o efeito que possuíam nos anos da primeira metade do século XX, quando existiam fronteiras, moedas próprias e políticas monetárias independentes dos «mercados» ainda incipientes e domésticos.

Travar o consumo era evidentemente um must, em 2011, mas onde o governo Passos Coelho não actuou suficientemente, foi no lançamento imediato, após a tomada de posse, na restruturação e reforma do Estado central e local. Sabe-se que tentou, mas o governo estava entregue ao aperto e ao timing do tecnocrata Vítor Gaspar. A necessidade de dinheiro conduziu a um aumento de impostos que atingiu o sector privado. Com menor liquidez, este teve que continuar a pagar o sector público defendido por velhos privilégios e pelo Tribunal Constitucional. Uma boa reforma do Estado, uma reforma inteligente e independente, uma planificação orçamental de base zero do Estado, reduziria natural e eficientemente o consumo, diminuindo a pressão fiscal. Tenho que levar em conta que os credores não estavam interessados em planos de longo ou mesmo médio prazos e tinham pressa em ver resultados que confirmassem as suas teorias. Por outro lado, nem o PS nem o TC estariam interessados na Reforma do Estado que urgia e continua a urgir. Tudo se conjugou, dentro e fora do país, para que a oportunidade de reformas fosse gorada e restasse apenas uma austeridade limitada aos interesses financeiros.

Embora rigor e austeridade andem de mãos dadas e sejam comummente definidos como conceitos similares, podemos distingui-los, definindo austeridade no campo das opções e o rigor no atendimento dessas opções e na respectiva prestação de contas.

O sector privado vive, por definição, em austeridade. Em contrapartida, o Estado deveria viver sempre em austeridade, como uma condição normal de gestão pública. O empresário responsável vive a cortar gorduras e a planear da forma mais rigorosa os seus investimentos e o respectivo pay back para criação de riqueza. Porém, o Estado não cria riqueza, consome-a. É básico que o Estado não possa consumir mais riqueza do que aquela que é produzida. A análise tem que ser geral e os dois sectores não podem viver de costas voltadas e vendas nos olhos. As práticas têm que ser coincidentes e encontrarem o seu break even point algures.

Transportar a austeridade a que o Estado deveria estar submetido para o sector privado foi um erro para toda a economia.  A atitude negativa que o TC assumiu, obrigando o Governo a colocar a ventoinha da austeridade sobre o sector privado, foi danosa para a economia com consequências para as receitas do Estado. A curva de Gauss explica que existe um limite para o lançamento de impostos. O TC demonstrou desconhecer isso ou ignorou-o deliberadamente. O que é grave.

Existe um princípio básico imperialmente ignorado: o dinheiro do Estado não lhe pertence, foi-lhe confiado pelos contribuintes para a melhor aplicação no interesse geral. E ninguém diz isto ao povo. Ou seja, cada centavo veio do bolso de um cidadão contribuinte e não pode ser malbaratado. O dinheiro dos contribuintes é, portanto, um empréstimo que os cidadãos fazem ao Estado, esperando receber em troca bens e serviços providenciados por esse mesmo Estado. Recebem? Não. Aliás, como fiel depositário do dinheiro dos contribuintes, o Estado deveria prestar periodicamente contas simples e transparentes da forma como gasta o dinheiro dos contribuintes, da mesma forma que exige cada vez mais dos contribuintes que lhe prestem contas dos seus negócios para efeito de colecta de impostos.