sábado, 28 de fevereiro de 2015


Acabou-se o «conto de crianças»


Maria de Fátima Bonifácio

(extractos)

Em poucos dias desmoronou-se aquilo a que Passos Coelho chamou, com toda a propriedade, «um conto de crianças». Não sei porquê, a expressão causou por aí muita indignação e suscitou manifestações de um pudor institucional inusitado: em suma, não era digna de um Estadista. A deslocada sobranceria de Passos não oferecia mistério: era apenas um torpe subterfúgio para ofuscar a cobardia do próprio governo, que como um servo obediente e agradecido sacrificara desnecessariamente Portugal ao diktat da pérfida Alemanha. O Syrisa daria ao Mundo o exemplo de como se arrasa um «tigre de papel». Passos que olhasse e cobrisse a cara de vergonha.

Durante duas semanas, nós todos olhámos, lemos, ouvimos. Ao que assistimos foi a um espectáculo de arrogância provocadora, seguido, no dia 20 de Fevereiro, de uma sumária capitulação. Ninguém a resumiu melhor do que Manolis Glezos, o lendário patriarca do Syrisa: «Rebaptizar a troika de 'instituições', o memorando de entendimento de 'acordo' e os credores de 'parceiros', em nada altera a situação prévia, tal como trocando o nome de carne pelo de peixe.» O venerando eurodeputado pelo Syrisa declarou que as concessões já feitas tinham passado além dos limites, pois que nem se obtivera a «remoção da austeridade», nem «a abolição da troika e respectivas consequências». Dito isto, pediu desculpa ao povo grego por ter contribuído para a sua «ilusão».

(...)

O problema do Syrisa, e da dupla Tsipras/Varoufakis em particular, é que a maioria dos que votaram neles não são revolucionários. Mais de 70% dos gregos pronunciaram-se repetidamente a favor da permanência no Euro, que lhes proporcionou desafogo, benesses e lazer como nunca tinham gozado. Acreditaram no «conto de crianças» com que Tsipras deliberadamente os enganou a fim de conquistar o poder. Fê-lo convencido, talvez, de que na época pós-modernista (e, portanto, pós-marxista), quando a classe operária ou desapareceu ou se aburguesou e o consumismo se converteu na única paixão universal, a revolução teria de ser feita à revelia do «povo», cuja única e provisória utilidade reside nos votos que concede a troco de promessas falsas e até delirantes.

(...)

Varoufakis, depois das provocações e fanfarronadas iniciais, percebeu que se defrontava com outros 17 países que nem se impressionaram com a sua premeditada informalidade, nem se amedrontaram com a sua variegada chantagem, nem estavam dispostos a contemporizar com as extravagantes e exorbitantes exigências de Atenas (...) As exigências mais lunáticas caíram ainda antes do início das negociações, como simplesmente «não pagar» (lembram-se ?), ou no mínimo mais um perdão parcial da dívida, a pura e simples eliminação da troika, o encerramento do programa de resgate em curso sem prévia avaliação e aprovação pelas «Instituições», e o incondicional «empréstimo-ponte», para aliviar o garrote financeiro e dar tempo a que o governo se orientasse.

À segunda reunião do Eurogrupo, no dia 20, tudo caiu por terra, permitindo que Schäuble tranquilizasse por carta o Bundestag: «A Grécia compromete-se a colaborar com a União Europeia, com o Banco Central Europeu e com o FMI», nomeadamente «nas reformas estruturais que promovam o crescimento económico e a criação de emprego.» Mais: a Grécia «Não poderá implementar unilateralmente qualquer medida que ponha em risco as metas orçamentais definidas, a estabilidade financeira do país e a recuperação económica».

(...)

Sobra a triste figura que nisto tudo fez, e continua a fazer, a esquerda radical portuguesa. Com o seu habitual coração de ouro, acusou o governo e a direita de falta de solidariedade para com a Grécia. Mas que razões tínhamos nós para ser «solidários» em vez de simplesmente colaborantes, como fomos, numa solução consensual que viesse a encontrar-se ? (...)

(...)

O que fez a Grécia que justificasse o tratamento especial que exigia ? Quanto à solidariedade que lhe devemos, estamos conversados: em Março de 1985, a Grécia pura e simplesmente vetou a adesão de Portugal à CEE, com receio da concorrência que o nosso País lhe pudesse fazer na repartição dos dinheiros europeus. E apenas retirou o veto quando obteve de Bruxelas um financiamento adicional ao abrigo dos «Programas Integrados do Mediterrâneo», como aliás já reclamara desde o ano anterior. Ou seja: Bruxelas teve, literalmente, de comprar à Grécia a adesão de Portugal !

Mas isto são rancores meus. A esquerda radical, com a vasta generosidade e elevação de espírito que a caracterizam, aclamou, como tanto lhe convinha, a vitória do Syrisa, em que via o prenúncio do seu próprio sucesso. (...)





quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015


Afinal a NATO teve razão ao alargar-se

ao Leste da Europa


José Milhazes

Até aqui, alguns (entre eles eu) consideravam ter sido um erro o alargamento da Aliança Atlântica ao Leste da Europa. Hoje há muitos motivos para pensar que foi o melhor que esses países fizeram.

A guerra da Ucrânia e o papel de Moscovo nela levam-nos a tirar pelo menos duas conclusões: os países do Leste da Europa tiveram uma decisão sábia ao aderirem à NATO e Kiev cometeu um erro ao entregar as armas nucleares à Rússia em 1994.

Até aqui, alguns (entre eles eu) consideravam ter sido um erro o alargamento da Aliança Atlântica ao Leste da Europa, pois pensavam não haver razões para recear o ressurgimento do imperialismo russo e soviético. Depois da queda da União Soviética, a Rússia estava numa situação económica, política e social tão degradada, que o mais sensato era esperar que os seus dirigentes se concentrassem na recuperação do seu país.

Mas tal não aconteceu. No lugar de modernizar as infraestruturas do país, utilizando os preços altos dos combustíveis nos mercados internacionais, Vladimir Putin, nos já mais de 15 anos em que se encontra no poder, apenas se pode «gabar» de ter um regime tanto ou mais corrupto do que o do seu antecessor, Boris Ieltsin, e ter organizado bem os Jogos Olímpicos de Inverno em Sochi.

O Kremlin não se cansa de falar da «amizade russo-chinesa», mas não lhe faria mal estudar as causas do milagre económico no país vizinho e aprender algo com ele.

Enveredou pela via tradicional, indo ao encontro dos mais baixos instintos de uma parte significativa da sociedade russa, que confunde o significado dos verbos «respeitar» e «ter medo». Quando os actuais dirigentes exigem que se respeite a Rússia, querem dizer que se deve ter medo dela. «Nós vamos mostrar-lhes…», soa o coro dos «patriotas».

Por isso, não há nada de extraordinário no facto de os antigos países do «campo socialista» se terem apressado a aderir à NATO. Segundo alguns analistas, o único erro da NATO foi não ter aberto as portas à Geórgia, Moldávia e Ucrânia.

Quanto à entrega das armas nucleares pela Ucrânia, Bielorrússia e o Cazaquistão à Rússia, se eles não tivessem feito isso, hoje Moscovo não teria a política que tem em relação a esses países. No caso da Ucrânia, as coisas teriam corrido de outra maneira. No que diz respeito ao Cazaquistão, a actual política externa do Kremlin faz tremer o actual dirigente cazaque, Nussultan Nazarbaiev. E até o Presidente bielorrusso, Alexandre Lukachenko, faz forte equilibrismo para se manter no poder.

Quanto aos que afirmam que a NATO está a cercar a Rússia com bases militares, a querer sufocar (tal como a anaconda na geopolítica clássica) o maior país do mundo, apenas os convidaria a olhar para o mapa e a pensar como será possível conseguir isso, tendo em conta, por exemplo, que a Rússia tem um dos maiores arsenais nucleares do mundo, mísseis balísticos intercontinentais, etc., etc.

E deixo ainda mais uma pergunta: haverá algum louco na Europa ou nos Estados Unidos que tencione conquistar a Rússia, como afirmam alguns dirigentes russos e seus aliados no estrangeiro? Como e para quê se, até agora, o chamado Ocidente tem recebido sem guerras aquilo de que precisa desse país: petróleo, gás e milionários?





terça-feira, 24 de fevereiro de 2015


Não há coincidências?


José António Saraiva

Há pessoas que têm o terrível azar de serem constantemente vítimas de coincidências. Acontecem-lhes coisas na vida que, apesar de acidentais, acabam por lançar sobre elas suspeitas infundadas. O engenheiro José Sócrates é uma dessas pessoas.

Começa logo com o seu título de engenheiro. Por infeliz coincidência, um professor que lhe deu passagem em várias cadeiras do curso de engenharia na Universidade Independente, de nome António José Morais, era seu amigo, tendo ambos participado no polémico processo do aterro da Cova da Beira (em que Morais foi arguido). Se não fosse essa amizade com um dos professores mais influentes, não haveria tantas suspeitas à volta da sua licenciatura. É certo que ainda se deu neste caso outra coincidência chata, que ofereceu argumentos aos seus inimigos: o facto de o diploma ter sido passado a um domingo. Mas isso...

Os mamarrachos da Covilhã que Sócrates assinou constituem outro caso pleno de coincidências. Não está em causa a péssima qualidade arquitectónica dos edifícios, alguns assustadores, até porque Sócrates subscreveu-os mas não foi o seu autor. Como técnico da Câmara, não podia assinar projectos para o seu concelho – pelo que assinava-os para outro. Dava-se, entretanto, a azarada coincidência de um técnico desse outro concelho assinar projectos para a Câmara onde Sócrates trabalhava, sugerindo uma (obviamente inexistente) troca de favores.

Para pôr a sua assinatura nos ditos projectos, também era natural que Sócrates recebesse algum dinheiro, tal como os médicos que passam atestados se fazem pagar. Mas quem poderia provar que esses dinheiritos tivessem alguma relação com a assinatura dos projectos? Quem de boa-fé poderia afastar a hipótese de se tratar, apenas, de uma desagradável coincidência?

No Freeport, José Sócrates também só foi suspeito em virtude de uma sucessão de acasos. Doutro modo, ninguém se lembraria de lhe apontar o dedo.

Um deles foi a aprovação do outlet ter ocorrido nos derradeiros dias de vigência do Governo, quando este já estava em gestão. Outra coincidência aborrecida foi o aparecimento de um tio de Sócrates no caso, sabe-se lá porquê. E, já agora, haver um vídeo onde se falava de luvas para um ministro, que por coincidência era depois referido textualmente na gravação como «Sócrates». E de o montante dessas luvas, ainda segundo o vídeo, ter sido estipulado (num encontro num hotel) por um indivíduo que, por outra irritante coincidência, disse ser primo de Sócrates. Enfim, uma chatice!

A tentativa de compra da TVI pela PT, exactamente quando Sócrates andava a querer afastar Manuela Moura Guedes daquela estação televisiva, foi também um acaso bem aborrecido. Tal como a ida a Espanha, para fechar o negócio, de um quadro da PT chamado Rui Pedro Soares, que mais tarde apareceria ligado a uns negócios onde surgia associado o nome de Sócrates.

E que dizer da diligência feita pelo BCP para fechar o SOL, no período em que este investigava os casos Freeport e Face Oculta? E logo por coincidência quem coordenou a operação pelo lado do BCP foi – imagine-se – Armando Vara, vice-presidente daquele banco e velho amigo de Sócrates.

Outro negócio dessa época cheia de acasos fantásticos foi a venda, pela Portugal Telecom, da rede Vivo, que tinha um enorme valor, e a compra da Oi, que não valia nada. Este negócio teve como padrinho, por infelicidade, José Sócrates – e quem parece ter gostado bastante dele foi o seu amigo Lula, que, por coincidência, apresentaria anos depois em Lisboa o livro de Sócrates sobre a tortura. Outro efeito da venda da Vivo foi ter proporcionado a mais um amigo de Sócrates, Ricardo Salgado, uma autêntica fortuna, numa altura em que, por coincidência, o Grupo Espírito Santo estava a precisar loucamente de dinheiro.

E que dizer da incrível coincidência de Sócrates ter tomado um pequeno-almoço com Luís Figo, no Altis-Belém, nas vésperas das legislativas de 2009, no mesmo dia em que Luís Figo assinou um importante contracto com entidades públicas, que permitiu à sua fundação receber umas centenas de milhares de euros?

Foi também por acaso, como é óbvio, que a Octapharma, um laboratório que mantinha relações com o Estado português, contratou Sócrates depois de este sair do Governo.

Mas coincidência ainda maior, reconheça-se, foi o facto de o seu amigo Carlos Santos Silva ter estreitas ligações ao Grupo Lena – grupo que ganhara muitos concursos públicos no tempo em que Sócrates era primeiro-ministro. A propósito destas ligações, deram-se outros curiosos acasos, como Sócrates ter ido aos Estados Unidos na precisa altura em que lá foi o vice-presidente de Angola, Manuel Vicente, e – pasme-se – uma delegação do Grupo Lena. E, por coincidência, encontraram-se todos no consulado de Angola em Nova Iorque!

Continuando a falar de acasos desagradáveis, não foi nada bom existir uma conta bancária em nome de Carlos Santos Silva que, por coincidência, só servia para pagar as despesas de Sócrates – fossem as relativas à sua vida corrente, fossem despesas maiores, como a compra de apartamentos ou propriedades (também, por coincidência, onde a família de Sócrates aparecia envolvida).

E como classificar a chatíssima coincidência de Carlos Santos Silva emprestar dinheiro a Sócrates sempre através de envelopes com dinheiro e nunca por transferência bancária, apesar das elevadas quantias envolvidas?

Infelicíssima coincidência foi ainda Carlos Santos Silva ter tentado criar um fundo imobiliário só com casas que se supunha serem de José Sócrates. E neste assunto ainda se verificou outro facto bizarro: Carlos Santos Silva não ter jeito nenhum para a decoração e pedir a Sócrates e à ex-mulher deste, Sofia Fava, que escolhessem diversos acabamentos para o seu andar em Paris. Andar no qual, por coincidência, Sócrates vivera uns tempos.

Mas os azares não se ficaram por aqui.

Nas vésperas de embarcar para Paris, quando já sabia estar na iminência de ser preso, Sócrates almoçou, por coincidência, com o ex-procurador-geral da República, Pinto Monteiro.

E depois, quando Sócrates já estava em Paris e soube que Carlos Santos Silva e o seu motorista João Perna tinham sido detidos, deu-se outro espantoso acaso: uma empregada de limpeza retirou o computador do seu apartamento e levou-o para outro. É difícil acreditar como coincidências destas acontecem. Mas acontecem!

A maior de todas ocorreu, porém, quando Sócrates, ainda primeiro-ministro, fez uma lei para facilitar o regresso de capitais ao país pagando um mínimo de imposto – lei de que ele próprio, perdão, o seu amigo Carlos Santos Silva, viria a beneficiar para trazer 20 milhões para Portugal! Esta foi mesmo uma coincidência… das Arábias!

Foram todas estas coincidências – e mais algumas que se venham a descobrir – que, agitadas por espíritos malévolos, perversos e doentios, lançaram infundadas suspeitas sobre o engenheiro José Sócrates, infernizando-lhe a vida.

A verdade, contudo, há-de vir ao de cima. E os algozes do ex-primeiro-ministro pagarão por isso – como justamente tem ameaçado o Dr. Mário Soares.




domingo, 22 de fevereiro de 2015


A jangada de pedra do Syriza


Rui Ramos

A encenação de negociações serviria só para culpar os alemães, aliás já devidamente demonizados por todas as dificuldades futuras, tal como a ditadura plebiscitária da Venezuela culpa os americanos.

Há semanas que somos convidados a venerar a democracia na Grécia, como se a Grécia estivesse outra vez perante os Persas, e não perante os seus outros 18 parceiros do euro, onde os governos também são eleitos e os cidadãos manifestam livremente a sua vontade – nomeadamente a de não darem mais dinheiro à Grécia, como se viu nas eleições regionais de Hamburgo no passado fim de semana.

É tempo de perguntar quem é que põe em causa a democracia na Grécia? Os seus 18 parceiros da zona Euro, que requerem as garantias do programa de assistência para lhe emprestarem mais dinheiro, ou o Syriza e a extrema-direita, que estão a arrastar para fora da moeda única um país onde 81% da população quer o Euro e apenas 30% admite negociar até à ruptura?

Sim, a Grécia tem um regime democrático, a começar por um sistema eleitoral que produz resultados aceites como genuínos. Mas esses sistemas podem ser manipulados, sobretudo num ambiente como o gerado no Ocidente pela crise de 2008, que comprometeu expectativas e situações dadas por adquiridas. Na Grécia, tudo foi pior, porque a oligarquia política e as suas clientelas viviam de capturar fundos externos, os quais lhe permitiam poupar fiscalmente o resto da população. O ajustamento não limitou apenas a distribuição de rendas pelo Estado, mas forçou a oligarquia a enfrentar a necessidade de mudar. Não conseguiu, não quis. O Pasok desfez-se, a Nova Democracia falhou, e subitamente uma série de pequenos grupos de extrema-esquerda viram a porta aberta.

Sem a construção imprevidente da zona Euro e sem a irresponsabilidade dos velhos partidos de governo, a extrema-esquerda não teria tido a oportunidade que teve na Grécia. Mas a verdade é que também estava preparada para a agarrar. O facto de, ao contrário de Portugal, não haver um PCP, deu aos maoístas e trotskistas gregos uma margem de manobra que, por exemplo, o BE nunca teve. Puderam assim subir ao palco como uma nova classe de tecnocratas oriundos das universidades e dos media. Sem gravatas, mas com títulos académicos. A foto de grupo incluía até economistas, do género «banqueiro anarquista», como Varoufakis, marxista não-praticante. Falaram de um «novo consenso», e não de «revolução». Ofereceram soluções para a dívida e receitas para o crescimento, com as devidas fórmulas matemáticas e notas de rodapé. Por um lado, explicaram que não vinham para «alternar», mas para «mudar»; por outro, deram a entender que a «mudança» seria apenas a preservação do velho estatismo contra uma suposta agressão «neo-liberal». Assim tentaram e conseguirem participar e liderar uma maioria «anti-austeridade» e «anti-dívida». Entretanto, a imprensa ajudava lembrando o PT brasileiro como prova da disponibilidade da «esquerda radical» para substituir a corrupção da velha oligarquia pela corrupção de uma nova oligarquia.

O Syriza fez mais: persuadiu os eleitores de que seria possível arrancar ainda mais concessões à UE, devido ao medo que a todos inspiraria a reversibilidade da zona euro (a teoria do «castelo de cartas» de Varoufakis). Durante a campanha eleitoral, Tsipras chegou a insinuar na televisão que Merkel já teria aceite a ideia de um novo pacto de assistência, faltando apenas um sinal da Grécia. Muitos gregos acreditaram, e começaram logo a deixar de pagar impostos: em Janeiro, a perspectiva de vitória do Syriza inspirou uma queda de 40% da receita fiscal prevista. Outros, com menos fé, trataram de extrair o seu dinheiro da Grécia, num movimento de capitais equivalentes a 4% do PIB só em Dezembro.

O Syriza não tem mandato para tirar a Grécia do euro. Levará a chantagem até esse ponto? A questão é a de saber qual o verdadeiro projecto do Syriza. É substituir a social-democracia como parceiro de alternância num país da UE? Ou é provocar a saída do euro, num país em que ninguém quer sair? O «plano secreto» de abandono da moeda única foi um tema do debate eleitoral, inspirando negações veementes ao Syriza. Mas o Syriza também nunca mencionou a aliança com a extrema-direita, falando sempre de outras forças de esquerda como seus aliados preferenciais. É muito provável que nem toda a gente que votou ou que foi eleita pelo Syriza saiba ou perceba o que a extrema-esquerda, que constitui a única força organizada dentro do Syriza, verdadeiramente pretende.

Consideremos a hipótese de saída do euro. Significaria, como muita gente já explicou, desvalorização, inflação e falências. Para um Syriza que aspire a suceder ao Pasok como alternativa à Nova Democracia, seria um desastre e justificaria muitas concessões, embora o risco de descrédito fosse grande depois das promessas eleitorais. Mas para um Syriza determinado em fazer uma revolução na Grécia contra o «capitalismo» e a «democracia burguesa», faz todo o sentido: mesmo depois de todos os anos de austeridade, continuava a não haver sovietes na Grécia e quase toda a gente preferia continuar na zona Euro; terá sido, portanto, necessário envolver os gregos com propostas aparentemente «moderadas», mas apenas para, uma vez dentro das instituições, iniciar um processo de radicalização. O objectivo fundamental não seria isentar o poder em Atenas dos constrangimentos orçamentais europeus, mas romper com o enquadramento ocidental da Grécia. A encenação de negociações serviria apenas para culpar os alemães, aliás já devidamente demonizados, por todas as dificuldades futuras, tal como a ditadura plebiscitária da Venezuela culpa os americanos.

Na Europa do sul, especialmente nos países que emergiram de ditaduras na década de 1970, como Portugal, a Grécia e a Espanha, a democracia foi sempre pensada segundo os modelos da Europa ocidental e, enquanto tal, dependente da integração europeia. Os partidos democráticos de esquerda e de direita propuseram a integração europeia, e a extrema-esquerda e a extrema-direita sempre a contrariaram, por verem na integração europeia uma redução do leque das possibilidades políticas. Por isso, extrema-esquerda e extrema-direita sonharam sempre com «jangadas de pedra» (romance de José Saramago publicado no ano da adesão de Portugal à então CEE). A crise da Grécia na zona euro é, desse ponto de vista, uma ocasião única para a extrema-esquerda cortar as amarras europeias do país. Os 81% de gregos que querem o euro estão assim sujeitos a descobrir um destes dias que, ao serem convidados a rejeitar a «austeridade», foram afinal levados, sem saber, a renunciar a muito mais.