Maria de Fátima Bonifácio
Em poucos dias desmoronou-se aquilo a que Passos
Coelho chamou, com toda a propriedade, «um conto de crianças». Não sei porquê,
a expressão causou por aí muita indignação e suscitou manifestações de um pudor
institucional inusitado: em suma, não era digna de um Estadista. A deslocada
sobranceria de Passos não oferecia mistério: era apenas um torpe subterfúgio
para ofuscar a cobardia do próprio governo, que como um servo obediente e agradecido
sacrificara desnecessariamente Portugal ao diktat da pérfida
Alemanha. O Syrisa daria ao Mundo o exemplo de como se arrasa um «tigre de
papel». Passos que olhasse e cobrisse a cara de vergonha.
Durante duas semanas, nós todos olhámos, lemos,
ouvimos. Ao que assistimos foi a um espectáculo de arrogância provocadora,
seguido, no dia 20 de Fevereiro, de uma sumária capitulação. Ninguém a resumiu
melhor do que Manolis Glezos, o lendário patriarca do Syrisa: «Rebaptizar a
troika de 'instituições', o memorando de entendimento de 'acordo' e os credores
de 'parceiros', em nada altera a situação prévia, tal como trocando o nome de
carne pelo de peixe.» O venerando eurodeputado pelo Syrisa declarou que as
concessões já feitas tinham passado além dos limites, pois que nem se obtivera
a «remoção da austeridade», nem «a abolição da troika e respectivas
consequências». Dito isto, pediu desculpa ao povo grego por ter contribuído
para a sua «ilusão».
(...)
O problema do Syrisa, e da dupla Tsipras/Varoufakis
em particular, é que a maioria dos que votaram neles não são revolucionários.
Mais de 70% dos gregos pronunciaram-se repetidamente a favor da permanência no
Euro, que lhes proporcionou desafogo, benesses e lazer como nunca tinham
gozado. Acreditaram no «conto de crianças» com que Tsipras deliberadamente os
enganou a fim de conquistar o poder. Fê-lo convencido, talvez, de que na época
pós-modernista (e, portanto, pós-marxista), quando a classe operária ou
desapareceu ou se aburguesou e o consumismo se converteu na única paixão
universal, a revolução teria de ser feita à revelia do «povo», cuja única e
provisória utilidade reside nos votos que concede a troco de promessas falsas e
até delirantes.
(...)
Varoufakis, depois das provocações e fanfarronadas
iniciais, percebeu que se defrontava com outros 17 países que nem se
impressionaram com a sua premeditada informalidade, nem se amedrontaram com a
sua variegada chantagem, nem estavam dispostos a contemporizar com as
extravagantes e exorbitantes exigências de Atenas (...) As exigências mais
lunáticas caíram ainda antes do início das negociações, como simplesmente «não
pagar» (lembram-se ?), ou no mínimo mais um perdão parcial da dívida, a pura e
simples eliminação da troika, o encerramento do programa de resgate em curso
sem prévia avaliação e aprovação pelas «Instituições», e o incondicional
«empréstimo-ponte», para aliviar o garrote financeiro e dar tempo a que o
governo se orientasse.
À segunda reunião do Eurogrupo, no dia 20, tudo
caiu por terra, permitindo que Schäuble tranquilizasse por carta o Bundestag:
«A Grécia compromete-se a colaborar com a União Europeia, com o Banco Central
Europeu e com o FMI», nomeadamente «nas reformas estruturais que promovam o
crescimento económico e a criação de emprego.» Mais: a Grécia «Não poderá
implementar unilateralmente qualquer medida que ponha em risco as metas
orçamentais definidas, a estabilidade financeira do país e a recuperação
económica».
(...)
Sobra a triste figura que nisto tudo fez, e
continua a fazer, a esquerda radical portuguesa. Com o seu habitual coração de
ouro, acusou o governo e a direita de falta de solidariedade para com a Grécia.
Mas que razões tínhamos nós para ser «solidários» em vez de simplesmente
colaborantes, como fomos, numa solução consensual que viesse a encontrar-se ? (...)
(...)
O que fez a Grécia que justificasse o tratamento
especial que exigia ? Quanto à solidariedade que lhe devemos, estamos
conversados: em Março de 1985, a Grécia pura e simplesmente vetou a adesão de
Portugal à CEE, com receio da concorrência que o nosso País lhe pudesse fazer
na repartição dos dinheiros europeus. E apenas retirou o veto quando obteve de
Bruxelas um financiamento adicional ao abrigo dos «Programas Integrados do
Mediterrâneo», como aliás já reclamara desde o ano anterior. Ou seja: Bruxelas
teve, literalmente, de comprar à Grécia a adesão de Portugal !