quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017
domingo, 5 de fevereiro de 2017
Uma sociedade que abdica ou uma sociedade que se dedica?
João Paulo Barbosa de Melo, Observador, 31 de Janeiro de 2017
Temos direito a morrer pacificamente, com o mínimo de dor, e a sociedade
deve proporcionar os meios para isso. Mas teremos o direito de pedir (ou de
exigir) que acabem activamente com a nossa vida?
Ninguém (ou quase ninguém) quer morrer. O que queremos é levar uma vida longa e feliz e todos temos direito a ambicioná-lo! Quando se pensa no final da vida, temos medo. Por muita fé e por muita esperança num depois que tenhamos, a morte, em especial a nossa e a dos nossos, assusta-nos. E a morte em sofrimento físico ainda assusta mais.
Partindo do princípio de que ninguém tem a obrigação de morrer em dor física insuportável, qual deve ser a resposta da sociedade perante a probabilidade de isso acontecer?
Os caminhos são fundamentalmente dois. De um lado, a sociedade pode organizar-se para que cada um tenha o máximo auxílio (médico e não só) para reduzir ao mínimo o sofrimento físico na hora de morrer, mesmo que essa intervenção acabe por ter o efeito colateral de encurtar o tempo de vida. Esta é a resposta de uma sociedade que se preocupa, uma sociedade fraterna. No extremo oposto, a sociedade pode oferecer ao que sofre (ou teme vir a sofrer) um meio para acabar com a sua vida quando entender que é chegada a hora. É a resposta de matriz liberal em que o valor preponderante é o da liberdade do indivíduo: se o suicídio é a escolha daquela pessoa, então temos de respeitar a sua vontade – se a pessoa quer acabar com a sua vida, deve poder fazê-lo e a comunidade não tem nada com isso.
Que caminho colectivo queremos trilhar em Portugal? A resposta a esta questão diz muito sobre a sociedade que queremos ser.
O reflexo humano ancestral perante alguém que se tenta suicidar – normalmente no meio de grande sofrimento emocional, psicológico ou físico – é, e sempre foi, salvar aquela pessoa, fazer o possível por demovê-la, tentar perceber o seu problema e dar a mão. Quantas pessoas conhecemos que quiseram acabar com a vida e que, ajudadas, acabaram por se arrepender e viveram vidas felizes e longas? Se virmos alguém a preparar-se para saltar de uma ponte, se nos cruzarmos com alguém que acabou de ingerir uma dose letal de comprimidos ou que ameaça apontar uma arma à cabeça, o que fazemos? O que achamos que devemos fazer? Deixar andar? Ficarmo-nos por considerar que «se foi isso que esta pessoa decidiu em liberdade, então o problema é dela e não meu»?
Ninguém pode ser obrigado a fazer tratamentos e intervenções que prolonguem artificialmente a vida, aumentando o sofrimento físico às portas da morte. Mas também não é fácil a uma família respeitar a vontade do familiar moribundo e recusar manobras encarniçadas só para tentar mais umas horas de vida. E se essas decisões são difíceis e pouco claras para as famílias, não o são menos para os profissionais de saúde. Os médicos defendem primordialmente a vida e nenhum médico tem o direito de obrigar o seu paciente a viver um pouco mais, se for apenas para morrer em maior sofrimento.
Temos direito a morrer pacificamente, com o mínimo de dor física, e a sociedade tem o dever de proporcionar activamente os meios para isso. Mas teremos o direito de pedir (ou de exigir) que acabem activamente com a nossa vida para acabar com o nosso sofrimento? E será que a sociedade tem o dever de acabar com a vida daqueles que não querem mais viver? Se acharmos que sim, em que condições vamos permiti-lo? Com que cautelas e travões? Para que idades? Com que prazos? Para que casos concretos? Com que hipóteses de voltar atrás se nos arrependermos? Há caminhos que, uma vez abertos, não sabemos até onde nos levam.
O tema é muito fundo e merece uma reflexão séria, feita com tempo, que vá para além dos «soundbites» para a praça pública, que ultrapasse as divisões bons-maus ou esquerda-direita, que se liberte da arengada habitual dos «progressistas» e dos «retrógrados» e, já agora, que a Igreja não seja metida nisto. É uma discussão a que todos somos convocados porque define o que queremos que a nossa sociedade seja: uma sociedade que abdica ou uma sociedade que se dedica?
Professor da Universidade de Coimbra
Eutanásia: Quem é que decide afinal?
Afonso Espregueira, Observador, 1 de Fevereiro de 2017
A eutanásia não é uma escolha do doente, antes é uma decisão da
sociedade, que através da lei define quem pode a ela recorrer, e do corpo
clínico, que decide nos casos concretos se estes estão na lei.
A eutanásia é a última expressão da vontade e liberdade do doente. Numa
situação de sofrimento insuportável e doença incurável, o doente deve poder
decidir pôr fim à sua vida e pedir a morte assistida. É um legítimo exercício
da sua autodeterminação, a derradeira manifestação da sua autonomia.
É nesta simples mas poderosa ideia, que coloca a liberdade como o valor
máximo (mesmo acima da vida), que se baseiam os defensores da eutanásia. Mas
será mesmo assim? Será a eutanásia o exercício derradeiro da liberdade?
Julgo que não. Julgo que, na verdade, não está em causa a liberdade do
doente e que a decisão pela eutanásia, em última análise, não é sua, mas de
terceiros. E, como ninguém pode decidir tirar a vida a outrem, a eutanásia não
é admissível.
É importante notar que a eutanásia será sempre enquadrada numa lei, onde
se definirão as situações em que esta é permitida. Podem ser termos mais ou
menos concretos ou subjectivos, mas será sempre o legislador, em representação
da sociedade, a determinar que casos podem ou não ser sujeitos a eutanásia.
Para além disso, haverá um corpo clínico a ajuizar a situação específica do
doente, decidindo se a lei é aplicável ao seu caso e portanto se o pedido de
eutanásia deve ou não ser respeitado.
Quer isto dizer que certas pessoas que requeiram a eutanásia verão o seu
pedido rejeitado e, poder-se-á dizer, à luz do que foi dito acima, a sua
liberdade coarctada. Alguns doentes (de primeira ou de segunda, depende do
ponto de vista) terão a «morte assistida» como querem; outros não.
Mas se assim é, saímos da esfera da liberdade individual. Afinal, a
eutanásia não é uma escolha do doente, antes é uma decisão da sociedade, que
através da lei define quem pode ou não recorrer à eutanásia, e do corpo
clínico, que decide nos casos concretos se estes estão ou não dentro da lei.
Assim, legalizar a eutanásia trata-se, na verdade, de permitir que a
sociedade, personificada na equipa médica, decida quem vive e quem morre, o que
é extremamente perverso.
A menos, claro, que em nome da coerência, os defensores da eutanásia
argumentem que esta é legítima em qualquer situação, que qualquer pessoa a pode
pedir e que o seu pedido será sempre atendido, independentemente do seu estado
de saúde. Porém, aqui já não estamos no campo dos casos extremos de que tanto
nos falam e que a todos enche de compaixão. Estamos, sim, perante uma apologia
do suicídio. E isso não é de todo admissível.
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