sábado, 3 de março de 2012

Onde para o acento?


Nuno Pacheco, Público








Não estranhem o título. Se não lhe encontram sentido, saibam que, «agora», é assim que se escreve. No tal «bom português» que por aí se vende como sabonetes. Um exemplo recente: na edição dos contos de juventude de John Cheever ( Fall River e outros contos dispersos, Sextante, 2011), a mesma editora que dera à estampa os fulgurantes Contos Completos , em dois volumes e num português decente, cedeu à tentação da novilíngua. E o pobre Cheever é posto a «escrever» frases como esta (Pág. 134): «Oh, para com isso, Charles! - disse a Srª. Dexter, impaciente.» Para com isso... fazer o quê, alguém explica? Cheever não pode, que já morreu. O tradutor também não, porque «é a lei» e ele não tem culpa nenhuma. A editora dirá o mesmo. E, como a vida não «para», temos que aturar isto.

Temos? Não é assim tão certo. A aplicação do acordo tem vindo a fazer-se, não por qualquer lógica ou aprendizagem mas por métodos mecânicos. Escreve-se um texto, enfia-se no Lince e já está. O Lince é uma espécie de Bimby para as letras, só que, em lugar de fazer bons cozinhados, produz péssimas mistelas. Há quem não se importe. O próprio José Saramago, em Junho de 2008, numa entrevista ao programa Diga Lá Excelência (do PÚBLICO, Rádio Renascença e RTP2), dizia: «Vou continuar a escrever como escrevo hoje. Não vou querer estar a ir constantemente ao dicionário ver se se escreve com "c" ou não. Os revisores encarregam-se disso.» Mas aceitava o acordo como uma fatalidade: «Creio que temos de embarcar nesse comboio, mesmo que não gostemos muito. Não há outro remédio.» Haver havia, mas tanto insensato encolher de ombros ajudou a que não houvesse. Agora o negócio não «para», como se vê.

Na sua regular crónica na revista «Atual» (sic) do Expresso , Pedro Mexia, um dos vários que ali (e bem) escrevem «de acordo com a antiga ortografia», veio na edição de 14 de Janeiro defender-se desse epíteto, dizendo que admiti-lo será "como se a língua que a maioria dos portugueses ainda usa se tornasse por simples decreto «antiga": antiquada, decrépita, morta.»E, a dado passo, também ele assinala «os imparáveis espalhanços de um ‘’pára’’ do verbo »para" que perde o acento e talvez o assento." Já alguém lembrou, ajuizadamente, que a aplicação da nova norma a certas frases daria disparate pela certa. Por exemplo, em lugar de «greve geral pára o país», ficaria «greve geral para o país». Totalmente diferente, não? E como ficaria o título de uma das mais recentes crónicas de Miguel Esteves Cardoso, «Alto e pára o baile»? «Alto e para o baile»? A primeira manda parar de dançar; a segunda apela a que se dance. Que idiota terá sancionado isto?

Talvez todos. Talvez nenhum. O certo é que já se admite que, sim, talvez haja correcções ao acordo, não se sabe quando, mas esta poderá até ser uma delas. E o que sucederá depois, não nos dizem? Venderão os acentos à parte, avulsos, em bolsinhas de plástico, para colarmos nos livros antes assassinados por tamanha displicência? Pedirão desculpa? Indemnizarão os leitores? Serão presos? Nada disso sucederá, porque a estupidez, e não só em Portugal, não é crime. É um modo de vida. E em geral lucrativo.


Cristóvão Colombo: cidadão português?


No próximo dia 10 de Março, pelas 15h00, o Arquivo Municipal de Loulé recebe uma conferência intitulada «Cristóvão Colombo: cidadão português?», proferida por Idália de Sousa Martins Pires.

A entrada é livre.

Faz 520 anos a 12 de Outubro deste ano que Cristóvão Colombo descobriu a América e não é de somenos importância, que recordemos este grande navegador tão intimamente ligado à História de Portugal.

Foi com surpresa que vi um documentário no Canal História sobre o célebre navegador e como se encaixavam facilmente todas as peças de um puzzle sobre a sua vida e, com grande espanto da minha parte, o referido documentário não fazia a mais leve alusão a Portugal. Intrigou-me o facto e perguntei-me se a omissão teria sido fruto de ignorância ou intencional. (...) perfilho da convicção de Mascarenhas Barreto, Manuel Luciano da Silva e outros investigadores de que Cristóvão Colombo era português .

Proponho-me nesta conferência refutar algumas afirmações pouco consistentes do referido documentário e, ao mesmo tempo, falar do que foi omitido por ignorância ou por quaisquer outras razões pouco claras.

Idália Pires nasceu em Loulé, a 23 de Junho de 1935. Diplomada pela Escola do Magistério de Faro no ano lectivo 1954/55 foi-lhe atribuído o prémio D. Ermelinda Aboim pela Câmara Municipal de Loulé. Leccionou 1º ciclo do Ensino Básico nas escolas Primárias de Vale Judeu, Areeiro, Vale Telheiro, Quarteira e Loulé. Licenciada em História pela Faculdade de Letras de Lisboa no ano lectivo 1979/80, leccionou na Escola C+S de Quarteira e na Escola Secundária de Loulé até 1997, data em que se aposentou.

Actualmente lecciona História do Algarve, em regime de voluntariado, na Universidade Sénior de Loulé.

É autora de um dos «Cadernos do Arquivo», o nº 4, cujo tema é: «Um olhar crítico sobre uma poderosa família nos alvores da Idade Moderna: a Família de Avis – 55ª anos após a morte do Infante D. Henrique».

sexta-feira, 2 de março de 2012

Questões do Estado de Direito


Vasco Graça Moura









O que é que haverá de comum entre personalidades tão diferentes como Pedro Santana Lopes, Jorge Bacelar Gouveia, José António Saraiva e Henrique Monteiro? Face aos jornais das últimas semanas, a resposta é muito simples: todos defendem o Acordo Ortográfico, todos discordam das posições que tenho sustentado, todos, pelos vistos, entraram em alerta vermelho com os textos publicados no Jornal de Angola, e todos evitam tomar posição sobre questões que são essenciais.

A primeira dessas questões é a da entrada em vigor do AO. Toda a gente sabe que, não tendo sido ratificado pelas Repúblicas Populares de Angola e de Moçambique, ele não entrou em vigor.

A ratificação é o acto pelo qual um estado adverte a comunidade internacional de que se considera obrigado nos termos do tratado que subscreveu juntamente com outros estados. No que a este caso interessa, o tratado entra em vigor na ordem jurídica internacional logo que ratificado por todos os estados signatários. A partir do momento em que entre em vigor na ordem jurídica internacional, essa convenção será recebida na ordem jurídica interna do estado signatário. Antes, não pode sê-lo.

Não estando em vigor na ordem jurídica internacional, nem ele nem, por identidade de razão, o bizarro segundo protocolo modificativo, uma vez que também não foi ratificado por aqueles estados, o AO não está nem pode estar em vigor na ordem jurídica portuguesa.

Nenhuma das individualidades referidas toma posição quanto a este ponto.

Ora, sem o AO estar em vigor, a solução é muito simples: continua a vigorar a ortografia que se pretendia alterar. Como estamos num estado de Direito, a solução é só essa e mais nenhuma. E a lei deve ser cumprida por todos.

A segunda questão prende-se com a exigência, feita pelo próprio AO (art.º 2.º), de um vocabulário ortográfico comum, elaborado com a participação de instituições e órgãos competentes dos estados signatários. Não existe. Qualquer outro vocabulário que se pretenda adoptar, seja ele qual for, será uma fraude grosseira ao próprio acordo...

A resolução do Conselho de Ministros do Governo Sócrates (n.º 8/2011, de 25 de Janeiro) raia os contornos de um caso de polícia correccional: produz uma distorção ignóbil da verdade ao afirmar, no preâmbulo, que adopta «o Vocabulário Ortográfico do Português, produzido em conformidade com o Acordo Ortográfico». É falso.

Nenhuma das individualidades referidas toma posição quanto a este ponto.

Mesmo que entendessem que o AO está em vigor, uma coisa é certa: nenhum entendimento, nenhum diploma, nenhum sofisma político ou jurídico pode dar existência àquilo que não existe.

Sendo assim, e não se podendo aplicar o AO por falta de um pressuposto essencial à sua aplicabilidade, continua em vigor a ortografia que se pretendia alterar por via dele. Como estamos num estado de Direito, a solução é só essa e mais nenhuma. E a lei deve ser cumprida por todos.

O grande problema é portanto o de que cumprir o Acordo Ortográfico, no presente estado de coisas do nosso estado de Direito, implica não o aplicar! Ou, dizendo por outras palavras, fazer de conta que se aplica o AO é violá-lo pura e simplesmente, na sua letra e no seu espírito...

Nenhuma das individualidades referidas toma posição quanto a esta situação paradoxal de que, certamente, tiveram a argúcia de se aperceber.

De resto, há muitas outras questões que têm sido levantadas, mas que as mesmas individualidades se dispensam de considerar, mostrando uma suficiência assaz discutível em relação a assuntos que não estudaram e de que, pelos vistos, percebem pouco. Não as abordaremos para já, mas elas não perdem pela demora. Diga-se apenas que nem mesmo o Brasil aceita a carnavalização da grafia que está a ser praticada em Portugal!

Acrescento que estou um tanto ou quanto farto de ter de voltar a estas coisas com alguma frequência. Mas tenho mais apego à minha língua do que a muitos outros interesses pessoais. E voltarei ao assunto as vezes que for preciso.

Para já, trata-se de instar quatro pessoas que considero e com quem tenho uma relação cordial, a que respondam aos pontos que levantei e aproveitem para ponderar as judiciosas considerações que sobre o assunto o Jornal de Angola tem publicado. Não perdem nada com o exercício.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Enquadramento Geopolítico e Geoestratégico
das Campanhas Ultramarinas VI (1954-1974)


João José Brandão Ferreira









Conclusão

«A guerra é de facto uma coisa má. Mas existe algo ainda pior do que a guerra: é perdê-la»
Do autor

Portugal sofreu entre 1954 e 1974 o maior ataque à escala mundial – o que implicou uma estratégia global de resposta - como já não assistia desde a Guerra da Restauração (que agora querem apagar da memória colectiva ao proporem o fim do feriado no 1.º de Dezembro…).

Tal ataque nada teve a ver com questões de Regime Político ou de situação político-social em Portugal.

A Nação portuguesa combateu vitoriosamente em três teatros de operações distintos; a milhares de km da sua base logística principal, que era a Metrópole, apenas com as suas forças, sem alianças militares, sem generais ou almirantes importados - o que já não acontecia desde Alcácer Quibir.

E isto sem alteração de ordem pública, disrupção das actividades económicas ou sociais, ao passo que se obtinha um crescimento económico na Metrópole como em nenhuma outra época e se fez mais no Ultramar do que nos quatro séculos anteriores.

Foi a melhor campanha que os portugueses fizeram desde os tempos do grande Afonso de Albuquerque e nós em vez de nos orgulharmos disso, apoucamo-nos!

Só não conseguimos fazer frente à força bruta da União Indiana, pela desproporção dos meios em presença e pelo pouco empenhamento dos nossos aliados. Tal configurou uma agressão militar execrável, que a Moral, o Direito e a convivência entre os povos condena.

Mas o direito da força não conferia a força do Direito, que nós alienámos em 1975, quando um governo português, numa acção que nada justificava, reconheceu «de jure», aquela ocupação manu militari. De qualquer modo Portugal conseguiu resistir a todas as malfeitorias indianas durante cerca de 14 anos. Não foi coisa de somenos!

Os governos portugueses que enfrentaram a guerrilha actuaram com uma competência insuspeita, no âmbito político, diplomático, económico/financeiro/social, militar e até psicológico, nas frentes de combate. Cometeram, porém, um erro: esqueceram-se duma outra «frente» e isso foi-nos fatal. Estou a referir-me à retaguarda, isto é, a Metrópole. E deixou de actuar aqui, sobretudo no âmbito psicológico o que permitiu a extensão da subversão que chegou a consubstanciar-se em dezena e meia de acções de sabotagem violenta.

A parte mais atingida foi, sem dúvida, a Universidade, parte da chamada intelectualidade, poucas franjas do operariado e alguns sectores da própria Igreja Católica.

Esta acção subversiva, constante e alargada no tempo, veio a ter sucesso num cada vez maior conjunto de portugueses que resultaram na expansão de vários mitos que agrupei em oito:

– A guerra era insustentável e impedia o desenvolvimento do país;
– Portugal estava «orgulhosamente só» e posicionava-se contra os «ventos da História»;
– A guerra durava há muito tempo;
– Portugal ia perder a guerra militarmente;
– Portugal estava em contra ciclo com a História e devia ter descolonizado mais cedo;
 – A população dos territórios ultramarinos queria ser independente;
– A guerra era injusta e actuávamos contra o Direito Internacional;
– A solução para a guerra era Política e não Militar.

Estes mitos – e, sendo mitos, eram falsos, passaram a ser percepcionados como verdadeiros e hoje são assumidos como verdade oficial e nos compêndios da História.
No meu entendimento tudo isto está errado mas isso seria outra conferência.

Síntese final

«A primeira lição que a História e a vida nos ensinou é a da transitoriedade dos mitos, dos regimes e sistemas»
Jaime Cortesão

O modo como a nossa diáspora ultramarina – que é um dos maiores feitos da Humanidade – acabou, não nos dignifica e resultou mal para todas as partes. As responsabilidades ainda estão para ser atribuídas devidamente, o que não tenho a certeza que alguma vez se fará. A Nação dos portugueses vai ter que viver com isto para todo o sempre. Há apenas que aprender com os erros e os acertos do passado para melhor construir o futuro. E o futuro, o nosso futuro, irá seguramente passar pelo entendimento que conseguirmos com todos os povos e terras que, em tempos, Portugal já foram.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Enquadramento Geopolítico e Geoestratégico
das Campanhas Ultramarinas V (1954-1974)


João José Brandão Ferreira









Moçambique

«Foram-se mais de três partes do Império de Além-Mar e Deus sabe que dolorosas surpresas nos reserva o futuro…»
Mouzinho de Albuquerque
in carta ao Príncipe D. Luís Filipe de Bragança


Moçambique era um território cerca de oito vezes maior que a Metrópole, com 784 961 km2, tinha uma fronteira terrestre de 4330 km e 2000 km de costa. Contava com 6 600 000 habitantes (8h/km2) sendo 97% negros (com 86 etnias e dez grupos étnico-linguísticos).

Dos países fronteiros só a Zâmbia e a Tanzânia eram hostis a Portugal, mas o Malawi não conseguia impedir o trânsito da guerrilha pelo seu território.

De Lisboa à Beira (onde estava localizado o principal aeroporto da Província) era necessário percorrer 10 300 km.

O número de combatentes, no fim da guerra contabilizava cerca de 57 000 homens, incluindo o recrutamento local, enquanto que os guerrilheiros não passariam dos 7000 (mais uns 2000 milícias).

Deve realçar-se, ainda, que os órgãos principais de comando e da logística, de início, se situavam em Lourenço Marques, a 2000Km do terreno onde se desenvolvia a guerrilha e que o Niassa distava 800 km da costa, o que tinha efeitos diversos no desenrolar das operações. O mesmo se podendo dizer do facto da esmagadora maioria da população branca se encontrava estabelecida entre a capital e a Beira, ou seja nunca sentiu a guerra. Além do que estavam muito influenciados pelos regimes da RAS e da Rodésia. Esta situação era muito diferente da que se passava em Angola.

Tal como sucedeu com angolanos e guineenses, também alguns moçambicanos emigrados em territórios vizinhos, não resistiram à tentação de criar movimentos independentistas, logo que a ocasião lhes pareceu favorável.

O primeiro a surgir foi a Associação Nacional Africana do Moatize, em 1959, no distrito de Tete, outros se lhe seguiram, que seria ocioso enumerar.

Da evolução de todos surgiu a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) em 1962, cuja presidência foi ocupada por Eduardo Mondlane, funcionário da ONU, formado numa universidade americana e casado com uma cidadã branca (de origem sueca), daquele país. Este movimento passou a receber apoio quer do bloco comunista, quer de organizações americanas, quer ainda de países nórdicos, com a Suécia à cabeça. Mais tarde veio a receber auxílio da China, via Tanzânia. À semelhança de todos os outros movimentos independentistas que lutaram contra a presença política de Portugal em África, também a Frelimo sofreu de graves convulsões internas, que vieram a resultar entre muitos outros, no assassinato de Mondlane, em 3 de Fevereiro de 1969.

A sede da Frelimo situava-se em Dar-es-Salam, capital da Tanzânia e dispunha de delegações em vários países como a Argélia, o Egipto e a Zâmbia.

O outro partido que conseguiu desenvolver alguma actividade de guerrilha em Moçambique, foi a COREMO (Comité Revolucionário de Moçambique), entre 1965 e 1967, no noroeste do distrito de Tete.

A partir de 1961, Moçambique passou a tomar medidas preventivas antecipando o início da subversão. Deste modo foi reforçado o dispositivo militar, a instrução das tropas, desenvolveu-se o serviço de informações e a acção psicológica e começou a organizar-se aldeamentos em autodefesa.

A subversão violenta ficou marcada pelo ataque da Frelimo ao posto do Chai (norte do distrito de Cabo Delgado), a 25 de Setembro de 1974.

Foi, aliás neste distrito e no do Niassa que a subversão se espalhou inicialmente, tirando partido do terreno acidentado e da fraca densidade populacional, afectando sobretudo a etnia Maconde. Só com o anúncio da construção da Barragem de Cabora-Bassa, em 1968, o esforço da guerrilha passou a incidir sobre o distrito de Tete, sobretudo a partir de 1970.

Porque a guerra se travava no Norte, o Comando Militar foi transferido para Nampula de onde todas as operações passaram a ser controladas.

Como na Guiné também em Moçambique se podem considerar dois grandes períodos: aquele em que foi comandante-chefe o General Augusto dos Santos (entre 1962 e 1969), e o período do General Kaúlza de Arriaga (entre 21 de Junho de 1969 e 9 de Junho de 1973).

O primeiro destes chefes militares tentou interditar os eixos de infiltração da guerrilha em Cabo Delgado e no Niassa; tentou manter o nível das operações no mais baixo nível de violência possível. Valorizou a acção socio-económica junto das populações e a sua agregação em aldeamentos, com a cooperação das autoridades civis.

A acção do General Kaúlza de Arriaga, homem de forte personalidade, sem ter posto em causa a acção psicológica junto das populações, impôs um maior pendor militar de que resultaram as grandes operações «Nó Górdio» e «Fronteira», esta última numa tentativa de interditar a fronteira norte.

Estas operações são ainda hoje objecto de controvérsia, sobretudo a primeira, (que envolveu cerca de 8000 homens), já que se trataram mais de operações em termos de guerra clássica do que na de guerrilha. Conseguiu poucos resultados em termos de baixas no inimigo e em armamento capturado mas, por outro lado, conseguiu desarticular toda a estrutura logística e operacional da Frelimo, no Norte.

Em simultâneo a Frelimo deslocou o seu esforço para Tete por causa da Barragem de Cabora-Bassa, ao passo que tentava ultrapassar o rio Zambeze para operar no «Corredor da Beira» a fim de tentar cortar Moçambique ao meio.

Esta manobra teve profundas consequências em ambas as partes. O comando português viu-se na contingência de proteger a barragem e, o que era igualmente fundamental, os itinerários pelos quais a mesma era abastecida de tudo o que fazia falta. Tudo isto estendeu o teatro de operações e as linhas de comunicação, muitíssimo, tanto para nós como para a Frelimo.

Como não tínhamos tropas suficientes para fazer face a estas emergências, apostou-se no recrutamento local, o que veio a dar excelentes resultados.

Porém a região tinha mais população e os diferentes alvos estavam no meio dela e os guerrilheiros também aproveitaram para se misturarem no seu meio, sempre que possível, o que fez aumentar o número de «baixas colaterais». É neste âmbito que se deve enquadrar o muito badalado caso de Wiriamu.
A Frelimo nunca conseguiu, contudo, molestar os trabalhos da barragem, que prosseguiram sempre a bom ritmo, o que se tem de considerar uma das acções mais espantosas dos portugueses nos 600 anos em que se espalharam pelo mundo.

A ultrapassagem do Zambeze resultou em poucos incidentes que, não tendo significado militar, tiveram consequências psicológicas (logo sociais e políticas), graves. Sobretudo na população branca da Província.

Em 1974 ambas as partes sofriam a usura da guerra, mas a parte portuguesa estava menos afectada do que a Frelimo, restando acrescentar que a nossa cooperação com a RAS e a Rodésia estava a aumentar muito, tanto em Moçambique como em Angola.

                                                   *****

Quando as operações militares terminaram as forças portuguesas tinham sofrido um total de 8831 mortos, 8290 do Exército, 346 da FA e 195 da Armada. Feridos e mutilados registaram-se 27 919.

Dos mortos, 261 são naturais do Algarve. Não devem ser esquecidos.

Não existem números quanto a guerrilheiros abatidos, feridos ou capturados.

A União Indiana nunca até hoje revelou as suas baixas durante a invasão do Estado da Índia, acção que vitimou 25 portugueses.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Antiga Ortografia


Pedro Mexia, Expresso










Fulano escreve «de acordo com a antiga ortografia», diz o aviso que acompanha estas crónicas. Eu agradeço que o «Expresso» me permita a objecção de consciência face ao chamado Acordo Ortográfico, e percebo que indique quem segue ou não as novas regras, para evitar confusões; mas suspeito que esta fórmula foi inventada por alguém que pretende colar aos dissidentes o vocábulo «antiga», como se nós escrevêssemos em galaico-português. Como se a língua que a maioria dos portugueses ainda usa se tornasse por simples decreto «antiga»: antiquada, decrépita, morta.

Eu não sou pela «antiga ortografia» por caturrice. Estou contra o «acordo» porque me parece uma decisão meramente política e económica, sem verdadeiro fundamento cultural. Os legisladores impuseram aos falantes uma «ortografia unificada», que, dizem, garante a «expansão da língua» e o seu «prestígio internacional». Mas a expansão da língua passa por uma política da língua, que Portugal, por exemplo, não tem tido, ocupados que estamos em fechar leitorados no estrangeiro, em aplicar uma abominável terminologia linguística nas escolas, em publicar um lamentável Dicionário da Academia, em expulsar Camilo dos currículos enquanto o substituímos por diálogos das novelas. Quanto ao prestígio internacional, lamento informar que foi o sucesso económico, e não a «língua de Camões», que transformou o Brasil numa potência.

Não é este «acordo» que vai trazer expansão e prestígio ao português. Contenta uns «acadêmicos espertos e parlamentares obtusos», como escreveu um colunista brasileiro, e alguns editores, que têm bom dinheiro a ganhar com esta negociata. Mas é difícil imaginar que alguém acredite que vem aí uma «unificação da língua» só porque se legislou uma «unificação da grafia». Um brasileiro continuará a falar uma língua muitíssimo diferente do português de Portugal, diferente em termos de léxico, de sintaxe, de fonética. Um português, com um exemplar do Acordo debaixo do braço, bem pode perorar em Iraguaçu, que alguém lhe continuará a perguntar «oi?», pois não percebeu metade. E isso não tem problema algum, a «lusofonia» não vale pela unidade mas pela diversidade, pelo facto de haver um português europeu, africano, americano e asiático. E ninguém é dono da língua: nem os brasileiros por serem mais, nem os portugueses por andarem cá há mais tempo, muito menos uns académicos pascácios que dicionarizaram «bué» e «guterrismo».

É significativo que o próprio «acordo» reconheça o fracasso do projecto de «unificação da língua». Dadas as flagrantes diferenças entre o português e o brasileiro, os sábios são obrigados a admitir a existência de duplas grafias, uma cá, outra lá [África, para estes iluministas, é paisagem]. Pior ainda, introduzem uma “grafia facultativa” que estabelece como termos lícitos tanto «electrónica» como «eletrónica», «electrônica» ou «eletrónica». O linguista António Emiliano deu-se ao trabalho de enumerar em livro os erros, contradições, imprecisões e dislates desta lei iníqua. Leiam-no. E não digam que ninguém avisou.

A minha recusa deste «acordo» não é casuísta nem temperamental. Não se trata apenas de não gostar de ver os espectadores transformados em bandarilheiros «espetadores»; de não perceber como é que os habitantes do «Egito» não são «egícios»; de ficar estupefacto com o «cor-de-rosa» com hífen e o «cor de laranja» sem hífen; de prever os imparáveis espalhanços de um «para» do verbo «parar» que perde o acento e talvez o assento. É isso mas é mais que isso: eu discordo veementemente do critério fundamental do «acordo»: a primazia da fonética sobre a ortografia.

É verdade que todos falamos antes de sabermos ler e escrever, mas quando aprendemos essas competências sofisticadas interiorizamos uma língua diferente da falada, que nalguns casos nem tem exacta correspondência fonética mas que se liga a uma memória histórica e cultural. Quando aprendemos a ler, fixamos a forma gráfica das palavras, uma forma que memorizamos e que nos acompanha a vida toda, de modo que nunca mais lemos letra a letra, mas reconhecemos de imediato uma grafia aprendida há muito, «antiga», sim, muito antiga. A ortografia não é uma transcrição fonética, nem podia ser, dadas as variantes do português falado. Ou nas pronúncias regionais. Como escreveu Emiliano, não vamos criar uma «ortografia do Alto Minho» só porque a pronúncia de Caminha é diferente da pronúncia de Cascais. Ou de Curitiba.

E não me digam que são pouquíssimas as palavras alteradas: procure quantas vezes neste jornal aparece ação, ator, atual, coleção, coletivo, diretor, fato, letivo, ótimo, e repare que são algumas das mais usadas. É por isso que o cavalo de Tróia das “consoantes mudas” deve ser denunciado. Em primeiro lugar porque não são mudas coisíssima nenhuma: abrem as vogais precedentes, e numa língua danada por fechar vogais. Depois, porque não são inúteis, ajudam a distinguir termos homógrafos e indicam a etimologia de palavras afins. Fazem sentido, ao contrário do «acordo».

Dizem os acordistas que a nova ortografia «simplifica» e «facilita a aprendizagem». Toda a gente sabe o que significa «facilitar a aprendizagem», e os resultados que isso deu no ensino. E se a intenção é «simplificar», que tal escrevermos todos em linguagem de telemóvel? Por mim, continuarei antigo.

As verdades que nunca nos dirão


Pedro Santos Guerreiro








E se correr mesmo tudo bem? E se os cépticos, os abstémios e os infelizes errarem nas possibilidades de desvio? E se Vítor Gaspar estiver certo, naquela candura académica de quem acredita mesmo nos seus modelos, e o dinheiro chegar, o desequilíbrio contrair, a economia crescer, o euro fluir -- e Portugal respirar depois da submersão?

E se correr mesmo tudo bem? E se os cépticos, os abstémios e os infelizes errarem nas possibilidades de desvio? E se Vítor Gaspar estiver certo, naquela candura académica de quem acredita mesmo nos seus modelos, e o dinheiro chegar, o desequilíbrio contrair, a economia crescer, o euro fluir -- e Portugal respirar depois da submersão? E se escrevêssemos um texto muito ingénuo, crédulo, e respeitássemos, por uma página que fosse, que toda a maldade pode mesmo resultar em algo de bom?

Afinal, quem nos representa?


Pedro Afonso




Portugal mudou muito nos últimos anos. Uma dessas mudanças foi realizada através da aprovação da lei que legalizou o aborto até às dez semanas, na altura suportada por uma ideologia política auto-intitulada de progressista. Entretanto houve eleições e muitos esperavam que algumas destas questões ideológicas fossem discutidas novamente por um governo que se deveria diferenciar do anterior não apenas no plano das políticas económicas, mas também na visão do mundo. Enganaram-se, pois, aqueles que julgavam que a alternância política levaria a que fosse discutida a estrutura legislativa entretanto criada sobre esta matéria. O desapontamento tem sido maior quando vários dos actuais ministros assumiram publicamente a sua fé católica; portanto, assumindo-se pró-vida.

Na verdade, nada mudou. Enquanto Espanha, com o novo governo de Rajoy, já deu sinais claros de que iria alterar a lei do aborto, assumindo corajosamente que defender a vida é uma medida verdadeiramente progressista, entre nós absolutizam-se os números e venera-se a troika, como se de um bezerro de ouro se tratasse. Neste contexto, a troika serve como cortina de fumo para que um grupo político prossiga de forma imparável com a sua pacotilha legislativa extremista. A recente lei sobre barrigas de aluguer mostra bem a sua actividade fervilhante e o desejo insaciável de prosseguir com experimentalismos sociais no campo da família e da vida humana.

Entretanto o PSD e o CDS andam a reboque desta agenda frenética, sem assumirem posições claras, numa vacuidade de ideias ordenadas, recorrendo a argumentos sinuosos e ambíguos, defraudando expectativas e sem capacidade para representarem muitos milhares dos seus eleitores. Ou seja, enquanto a esquerda revolucionária vai fazendo a sua guerra munida de um paiol inesgotável de munições ideológicas, a direita complexada parece apenas aspirar manter-se no “palácio do poder”, saboreando uma influência ilusória e renunciando negligentemente propor uma sociedade alternativa. Conclui-se, portanto, que este políticos creem erradamente que aquilo que mobiliza um povo não são os princípios e a ideologia, mas apenas os números e a criação de riqueza. Ora, ninguém morre por um negocio, mas há quem ofereça a sua vida por um ideal.

Muitos daqueles que outrora combatiam pela defesa da vida no seio do activismo da sociedade civil, uma vez integrados nos partidos e ocupando agora altos cargos no Estado, parece que se esqueceram das suas convicções; caíram num estranho silêncio, transformando-se aparentemente nuns tecnocratas, iguais a tantos outros. Os partidos políticos não podem mostrar desprezo pelas convicções de muitos milhares dos seus eleitores, aos quais convenientemente em tempo de eleições lhes solicitam o voto para depois não lhes dar nada em troca. O descontentamento aumenta em círculos restritos, e vai-se alargando aos poucos, pois muitos vão compreendendo que é chegado o tempo de os eleitores exigirem representatividade aos políticos. E este ressentimento é imparável.