António Justo
PEGIDA é o barómetro do estado de espírito da Nação
Numa sociedade em que o tema sobre estrangeiros
desfruta de um interesse relevante tanto positivo como negativo, organiza-se
uma oposição extraparlamentar que quer manifestar o seu descontentamento com a
política dominante. Desta vez saem regularmente à rua os que não têm
oportunidade de se expressar.
O movimento PEGIDA(1) surge,
do descontentamento de massas, numa época política em que a democracia já não
age em relação aos acometimentos do neocapitalismo e aos problemas
sociais, limitando-se a reagir e a esconder-se por trás de um discurso público
onde sobressai a hipocrisia. O povo
desorientado cada vez se vê mais confrontado com discursos em que falta a
cultura dum debate à luz da dignidade humana que deveria ser a matriz da
religião, da democracia e da discussão. Os políticos não entendem a voz do povo
e o povo sente-se manipulado por interesses que não são os seus.
Causas de insatisfações manifestadas na sociedade
europeia-alemã
Uma maioria silenciosa expressa-se em diversos
grupos que lhe procuram dar voz. Um sistema social, com jovens e idosos pobres,
desesperançados sem perspectivas profissionais, desempregados de longa duração,
carentes sociais dependentes da assistência social sem lóbi, tem o descaramento
de, com medo, difamar um movimento pacífico dos que não têm a chance de se
tornarem visíveis nem oportunidade de dominarem as páginas dos jornais como
outros grupos. A pressão na Alemanha exercida, pelos partidos estabelecidos e
pela sua imprensa, sobre um movimento popular torna-se avassaladora. Quando o
chanceler Kohl exigia maior rigor em relação aos delinquentes estrangeiros até
o SPD esteve de acordo, mas agora que Pegida exige o mesmo, é
considerada «indecente». (Penso que a exigência formulada é problemática, mas
usar dois pesos e duas medidas para estigmatizar um grupo, como se faz hoje nos
media contra a mesma tese, não testemunha a equidade na argumentação). Torna-se
sempre problemático quando uma parte banaliza a problemática e a outra a
singulariza. Tolerância deve valer para todos.
As teses escritas por Pegida soam bem mas os
cartazes das manifestações permitem suspeita de infiltração de forças
fundamentalistas interessadas em fender a sociedade. As teses são aceitáveis
mas «sob uma fachada pode mover-se algo diferente». Medos reais ou difusos de
manifestantes e contramanifestantes procuram encontrar qualquer pretexto para
drenar o seu vapor. A raiva do povo foi crescendo ao observar que por
exigências de muçulmanos (e outros por trás deles), têm sido fórmulas de
juramento alteradas e o crucifixo e certos símbolos cristãos têm saído de
lugares públicos; além disso observam o sistema de excepção com horários em
piscinas públicas para mulheres muçulmanas, isenção de participação em visitas
de estudo e em aulas de ginástica; além disso nomes de feiras tradicionais como
o Mercado de Natal têm cedido o nome para Mercados do Inverno, etc., tudo
incomoda ao não serem verificadas contrapartidas. Aqui junta-se o interesse de
muçulmanos ao de organizações secularistas que não suportam referências
públicas ao cristianismo (assim muita da agressão contra muitos muçulmanos
deveria ser procurada noutros meios que instrumentalizam a religião, como se dá
num radicalismo de extrema-esquerda em torno de Charlie). Tudo isto torna mais
difícil identificar as causas da insatisfação que depois é atirada para as
costas da religião. (Em Portugal também se assiste a uma luta contra a face
pública do cristianismo por parte de um socialismo e de uma maçonaria radicais,
não se podendo culpar os muçulmanos por tal). Os muçulmanos além da sua
situação problemática de comunidade minoritária que se quer afirmar é utilizada
por forças secularistas camufladas radicais (instaladas nos estados e com
grande lóbi na UE) como pretexto para impor interesses que não têm nada a ver
com os religiosos, pelo contrário.
Quem apoia incondicionalmente as caricaturas de
Charlie e critica as manifestações de Pegida julga com duas medidas. As
caricaturas expressam, a seu modo, as suas críticas e as demonstrações
expressam pacificamente, a seu modo, os seus medos colocando perguntas à classe
política dominante e a que esta não responde e adia.
A classe política sente-se insegura e questionada
O fenómeno Pegida e as reacções em torno dela são
típicos da sociedade alemã; através das intervenções dos políticos nos media,
das manifestações e contramanifestações, formam-se consensos que estabilizam o
sistema.
Com Pegida a classe política sente-se especialmente
incomodada porque o movimento parece conseguir expressar não só os rumores do
ventre popular mas também os receios da classe média. O novo partido
AfD já metia medo à actual constelação parlamentar e agora junta-se Pegida,
associação de utilidade pública, com temas problemáticos quentes que poderão
desestabilizar, nas próximas eleições, o partido CDU. O perigo para a
concorrência partidária é real, Merkel (CDU) nunca se expressou tão claramente
como fez agora em relação a Pegida embora este movimento se expresse dentro da
conformidade democrática!
Para a classe política, o importante é trazer o
povo alinhado e neste sentido, não importa a argumentação fundada, quando
muito, a opinião!
Nas ondas do sentimento, longe das raízes dos
factos, surge a provocação de grupos de manifestantes que fomentam conflitos
porque cada qual rebaixa o outro em nome do seu direito à liberdade esquecendo
que a sua liberdade deve conter a liberdade do outro. Em luta todo o pretexto
vale e assim todos se tornam culpados. Pegida tem medo da imigração muçulmana e
os manifestantes contrariadores têm medo de perder o poder ou de movimentos de
centro-direita virem a ocupar parte dos seus nichos na sociedade e na política.
A sociedade encontra-se doente e cheia de preconceitos
tanto nos que motivados pela emoção como, em grande parte, nos que
aparentemente motivados pela razão.
Massas à deriva
Tudo se limita a reagir sem pensar as coisas até ao
fim. Os fundamentalistas servem-se da generalização, dum modelo de pensar a
branco e preto não poupando atributos como «islão terrorista» e «pegida nazi».
Outrora argumentava-se com o comunismo para dividir e ordenar a população, hoje
faz-se o mesmo com a religião e com grupos incómodos ao sistema. A
liberdade de opinião e manifestação deve valer para todos, também num sistema
em que o desprezo do pobre não é considerado racismo nem a extrema diferença
entre pobre e rico é tida como discriminação.
Os caricaturistas sob a bandeira republicana e em
nome da liberdade provocaram muita gente e sentiam-se no direito de
ridicularizar a religião, como se não houvesse outros valores ao lado da
liberdade nem outros valores a defender senão os do estado laico. O outro lado
reage em nome de Deus para calar a voz secular. Os pequenos grupos de
provocadores instrumentalizam politicamente a religião e os estrangeiros para
rasgarem a sociedade. Como quem usa a violência ganha, a curto prazo,
a sociedade tornou-se mais violenta.
A Europa está com medo que a sua fortaleza não
resista à sua preponderância económica e cultural; tem medo de ver os seus
valores ameaçados (Charlie, Pegida, manifestantes e contramanifestantes). Aqui
no centro da Europa, a sociedade ferve; o que impede a explosão é o facto de
ter um alto nível de vida económico e social. Um medo difuso e uma
insatisfação geral provocam um clima de guerrilha entre uns e outros. Há muito
que a Europa não age, apenas reage às investidas do neocapitalismo e aos
problemas sociais. A consequência é uma magnetização política e social fomentadora
duma desconfiança onde, perante a incapacidade da política, cada qual procura
ganhar à custa do outro.
Por vezes a imprensa corre o perigo de apresentar
os terroristas como vítimas; por outro lado transmitem a impressão que
religiões são o instrumento propício, para a origem de guerras, lançando,
além disso, todas as religiões no mesmo pote. O fundamentalista não está
interessado em construir pontes, arrenda a razão e a verdade só para si.
Uns defendem a multicultura outros a intercultura.(2) Precisa-se
de gente que saiba encontrar o ponto de intersecção dos pontos comuns para, a
partir daí, se construir pontes no diálogo social. Tarefa difícil atendendo à
força dos lóbis e ao pensar politicamente correcto em função duma classe
política promiscuída com a oligarquia do capital. Quem não tem lóbis não tem
voz nem risca no sistema.
Gueto contra gueto, generalizações simplistas,
muita lavagem ao cérebro, a má avaliação de uns e outros constituem impedimento
para encarar os assuntos no seu âmago. Precisa-se de mais ironia em relação à
opinião pública e à opinião do outro. Uns media acríticos e acólitos da classe
política falhariam a sua função social se continuassem a ter de esconder factos
também incómodos em relação à realidade social com a desculpa de quererem
impedir argumentos que xenófobos poderiam usar. A focagem deve ser centrada nas
falhas da política e da economia que manifestam um vácuo de acção onde prospera
a dessolidarização da sociedade.
Os muçulmanos têm de esclarecer que os extremismos
de jihadistas e do Estado Islâmico não são consequência do Corão e das Hadith;
Pegida tem de se distanciar de extremismos e a política tem de deixar de se
envergonhar do cidadão. Pegida reage com medo do islamismo e este medo, se
articulado com agressão, leva o muçulmano a encerrar-se em si mesmo com medo de
se manifestar fora. O medo e a luta não ajudam ninguém mas poderiam levar os
mais distantes a ocupar-se a fundo do assunto.
Todo o crente ou ateu que, em nome da ciência ou da
religião, se arroga o monopólio do saber, para condenar ou desqualificar o
outro, segue as pegadas do fundamentalismo, alimentando-se no mesmo húmus que
conduz ao radicalismo das barbáries de Paris e Nigéria. É
fundamentalista um movimento, um partido, uma ciência, uma ideologia ou uma
religião que se considere possuidor da razão e da verdade em relação aos
concorrentes ao querer impô-la. A exclusão e a generalização alimentam
o fanatismo. Todos somos maus, quer sejamos estrangeiros ou alemães, ateus,
cientistas ou religiosos, quando se trata de atacar e julgar o outro! Por isso
toda a afirmação tem apenas um aspecto de luz com muita sombra a acompanhá-la.
(1) PEGIDA é a
sigla que designa em português «Europeus patriotas contra a islamização do
Ocidente»; a associação pretende: migração selectiva, política de lei e ordem
mais estrita, a reconciliação com a Rússia e atitude crítica em relação à UE. O
seu objectivo é «promoção da capacidade de percepção política e a consciência
de responsabilidade política». PEGIDA organiza manifestações às segundas-feiras
desde 20.10.2014 em Dresden, tendo-se associado outras cidades à iniciativa. O
atentado de Paris ajudou a dividir a sociedade civil. Na Alemanha os ânimos da
classe disputante encontram-se muito acesos.
(2) A problemática em
torno da imigração é um sintoma de causas indiferenciadas que se apresenta como
um pretexto para protestar contra a classe política distanciada das
preocupações populares. Esquerda e direita procuram pescar turbando as águas do
outro. Uma sociedade só orientada para o consumo e para a posse torna-se
susceptível de demagogia. Esquece-se a experiência de estrangeiros
descriminados mas também a de jovens alemãs serem muitas vezes apelidadas de
«cadela vadia alemã» ou seja prostituta pelos seus hábitos sociais não
corresponderem a códigos turcos ou árabes. Também a existência de bairros em
cidades alemãs onde se não ouve falar alemão causa medo a muito cidadão
vizinho. Denegrir uns ou outros não serve a democracia. Verifica-se que ao
contrário do que acontece nas manifestações da Pegida, nas manifestações
paralelas contra ela praticam-se actos violentos e ataques contra a polícia mas
os custos de proteger as manifestações são atribuídos aos manifestantes
pacíficos. A imprensa, geralmente mais ao lado da classe política ataca Pegida
e não comenta os ataques violentos de manifestações de grupos de esquerda.