sexta-feira, 25 de março de 2016


Je suis já nem sei o quê


Maria João Marques, Observador, 23 de Março de 2016

Enquanto diligentemente não afirmarmos com contundência que os valores europeus são incompatíveis com o estatuto das mulheres no islão, estaremos a apimentar o caldo onde se desenvolve o terrorismo.

Em 2009 fui a Bruxelas numa viagem de bloggers. Num dos dias almoçamos com Maria da Graça Carvalho, então conselheira de Durão Barroso. Perguntei-lhe que respostas, se algumas, tinha a Comissão Europeia para os abusos dos direitos humanos que as mulheres muçulmanas residentes na União Europeia sofriam nas suas comunidades. (Sim, já nessa altura estes assuntos me agitavam.)

Os casamentos forçados enquanto adolescente com homens desconhecidos dos países de origem dos pais. A violência doméstica sobre mulheres (que quantas vezes nem sabem falar e escrever na língua do país de acolhimento) e filhas e irmãs caso estas não se cubram como deviam e não fujam dos hábitos namoradeiros das devassas raparigas ocidentais. Os crimes ditos de honra sobre as mulheres – que não estão só nas zonas tribais do Paquistão. A adopção de quadros legais como a sharia no meio dos supostamente igualitários países europeus. A proibição de mulheres e filhas e irmãs de estudarem e trabalharem, privando-as assim da possibilidade de obter um trabalho que lhes garanta uma alternativa de sobrevivência – e de escape à opressão familiar. E… e… e…

A nossa interlocutora deixou a questão para o fim, reputou-a de muito difícil e muito importante, mas reconheceu a impotência. Recebi dias depois umas informações da Comissão sobre ajudas a vítimas de violência doméstica, nada sobre o que eu havia inquirido. De resto percebeu-se que não havia resposta nem, sequer, um esboço de tentativa. O que havia era a esperança que este caldo periclitante não explodisse depressa, que a UE nunca tivesse de confrontar a realidade feia que as comunidades islâmicas cá residentes criaram – com a conivência dos fracos políticos europeus que morrem de medo de usar um discurso a que os excitadinhos irresponsáveis possam dar o epíteto de xenófobo e islamofóbico.

Mas o caldo explodiu e agora de poucos meses em poucos meses temos de regressar ao assunto. Por mim, confesso que estou muito saturada do mantra que, paradoxalmente, se instalou depois de 2011 e que reza que o islão é uma religião de paz, nada a ver com atentados terroristas (apesar do número considerável de clérigos islâmicos que na Europa e no resto do mundo usam a sua influência e poder para radicalizarem os jovens muçulmanos e os encaminharem para os meandros terroristas), enfim, que o islão é só flores e bombons de gente que nunca pensaria usar a violência para com outros. O atroz tratamento que os islâmicos oferecem às mulheres é invenção de mal intencionados e xenófobos (comigo aos saltinhos na primeira fila), mas felizmente as provocações desta má rés são ignoradas pela gente de bem e esclarecida que dedica ao assunto o que ele merece: silêncio.

Confesso que tenho saudades de poder falar destes assuntos quando as mentes tolerantes não dedicavam maior ferocidade a quem aponta as evidentes falhas do islão, e o seu apoio oficial ou oficioso ao terrorismo, do que aos que festejam cada atentado terrorista. Ou, como nos últimos meses, aos que protegem o cérebro dos atentados de Paris no meio de um bairro de Bruxelas e nada de o denunciar à polícia ou aos serviços de informações. São escolhas e eu não respeito essa escolha.

Há muitos anos o filme Not Without My Daughter, com Sally Field, contava a história real de uma mulher americana que casou com um iraniano. O marido era atencioso e normal enquanto viveram nos Estados Unidos, mas quando se mudaram para o Irão tornou-se violento e despótico. A mulher fugiu com a filha, abandonando o marido brutal no Irão. Ora este filme, de 1991, actualmente já não seria realizado. Lembremos a chuva de escândalo que caiu em cima de Dom José Policarpo quando afirmou que muitas mulheres que casavam com muçulmanos se viam de seguida com graves problemas conjugais. Já não se faz criticar o islão. Não se aceita nos salões cosmopolitas. É de mau tom.

Dizer que o desrespeito pelas mulheres é norma para o muçulmano médio é um desvario a raiar o racismo do KKK. Chamar a atenção que para os muçulmanos uma mulher que não use lenço na cabeça é, no mínimo, invisível e, no máximo, merece ser violada porque não se deu ao respeito é uma heresia. Afirmar que é um tremendo risco ter uma parte crescente da população europeia com estas ideias encantadoras sobre a condição feminina é ousadia que deve ser recompensada com insultos sonoros.

Mas esta desculpabilização do islão vem com um preço: damos rédea livre para que o pior do islão decorra no meio das cidades europeias. Há uns tempos li um texto muito curioso da Vogue sobre as raparigas britânicas que fogem da família para casarem com combatentes do ISIS. Geralmente vêm de famílias muçulmanas conservadoras, com todos os passos controlados, sem contacto com rapazes e com interacção limitada com amigas, sem experiência de vida que não a vida familiar, cobertas desde antes da adolescência. A fuga para o ISIS é uma libertação e a possibilidade de aventura que lhes é negada pela draconiana moral familiar.

Os rapazes, como é sabido, vêem com enlevo tornarem-se terroristas. Mesmo aqueles perfeitamente integrados nas comunidades (como em Londres) ou bons alunos de escolas católicas (como em Paris, versão de Novembro). Ou que usaram dos benefícios dos generosos estados sociais europeus mas continuam a reclamar.

Não tenho soluções para o terrorismo. Mas sei que enquanto diligentemente fizermos por ignorar este mal sob o Sol que cresce nas comunidades muçulmanas residentes na Europa, enquanto não afirmarmos com contundência (inclusive judicial e penal) que os valores europeus são incompatíveis com o estatuto das mulheres no islão (um exemplo), estaremos a apimentar o caldo periclitante. O primeiro passo para resolver um problema costuma ser perceber onde está e qual é.