quarta-feira, 5 de outubro de 2016


Uma fraude e um perigo chamados Sócrates


João Marques de Almeida, Observador, 2 de Outubro de 2016

Sei que muita gente está convencida que Sócrates jamais regressará ao primeiro plano da política, mas a verdade é que o tempo de crise e de populismo em que vivemos é perfeito para alguém como ele.

Sócrates é simultaneamente a maior fraude e o homem mais perigoso da política portuguesa. E ninguém julgue que abandonou a política. Nunca o fará. Nunca fez outra coisa e não sabe fazer mais nada. Comecemos pela fraude. Nas recentes aparições, Sócrates anunciou que iria publicar um novo livro. Chama-se, aparentemente, Carisma. Sócrates e os livros remete-nos para uma das maiores fraudes da vida literária nacional durante os últimos anos, o seu primeiro livro, A Confiança no Mundo. Segundo relatos públicos, nunca desmentidos, não terá sido escrito por Sócrates. Aliás, gostaria que um jornalista investigasse se Sócrates chegou a acabar o mestrado. Terá Sócrates o grau de mestre? Ou será um mestre como era engenheiro?

Mas pior do que as dúvidas sobre a autoria do livro, foi o episódio bizarro e vergonhoso de distribuir dinheiro por colaboradores para comprarem centenas de cópias de uma só vez para colocar o livro nos tops das vendas. Um homem que pensa e executa uma fraude destas é capaz de quase tudo. Quando o novo livro for publicado, como poderemos estar certos que o autor é mesmo Sócrates? E se não for Sócrates, quem será o verdadeiro autor? E se é um livro de colaboração entre dois autores, inteiramente legítimo, por que não assinam os dois? Parece que Sócrates tem necessidade de viver permanentemente na mentira, de construir uma personagem que não existe na realidade. Quis parecer mais rico do que é, vivendo com luxos claramente acima do que os rendimentos declarados permitiriam. Ele próprio admitiu que durante anos viveu com ajudas financeiras de um amigo, o que não é habitual nem, na minha opinião, digno no caso de um homem adulto com responsabilidades públicas. Agora parece ter necessidade de passar uma imagem de intelectual e de académico, igualmente falsa. Na vida de Sócrates, tudo parece estranho e postiço. Depois dos envelopes do amigo, vieram os livros de outro amigo. Tudo isto é fraudulento. E não estamos a falar de uma cidadão comum, mas de um antigo ministro e primeiro-ministro.

Passemos agora ao perigo. Ao contrário de muitos, li o livro de José António Saraiva. Para mim, a revelação mais significativa do livro, e sobre a qual não vi ainda qualquer referência, é o facto de Proença de Carvalho e de Pinto Monteiro almoçarem frequentemente a dois. Numa altura em que Sócrates estava a ser investigado, o facto do seu advogado e do Procurador-Geral da República encontrarem-se com regularidade parece-me grave. De duas uma, é mentira e os visados já deveriam ter desmentido Saraiva. Se não desmentem, assumo que será verdade. Se for verdade, é mais um elemento para confirmar a teia de poder que Sócrates construiu durante os seus anos de São Bento.

Mas também li o livro de Fernando Lima, Na Sombra da Presidência. Lendo o livro e recordando o período entre 2005 e 2011, a estratégia de poder de Sócrates foi impressionante. Para ele, não havia limites. Tudo valia. A sua estratégia de poder consistia em controlar o sistema de informações, a justiça, a banca e a comunicação social. O controlo dos quatro pilares centrais da sociedade moderna dar-lhe-ia um poder quase absoluto.

Sócrates criou um sistema de informações a partir do seu gabinete, sem qualquer controlo democrático. Usava, sem escrúpulos, o seu poder de nomeação para controlar a justiça. A imagem de Pinto Monteiro e de Noronha Nascimento no lançamento do seu primeiro livro constitui um dos momentos mais embaraçosos da vida pública nacional. Até nas faces dos próprios se via o embaraço. Na banca, controlava a Caixa Geral de Depósitos – e hoje os portugueses ainda estão a pagar por isso –, aliou-se a Ricardo Salgado e conquistou o BCP; ou seja, os três maiores bancos portugueses. Na comunicação social, usou uma empresa controlada pelo Estado, a PT (a qual ajudou a destruir mais tarde com o negócio ruinoso da fusão com a Oi), para tentar comprar o canal de televisão que mais o criticava, a TVI.

Tudo isto revela um homem sem escrúpulos que não hesita em usar os meios ao seu dispor para aumentar o seu poder de um modo ilimitado. Mostra um político que não sabe lidar com as críticas e com o pluralismo. Evidencia um tipo paranoico para o qual a vida pública se reduz a uma luta sem quartel contra os seus inimigos. Sócrates olha para a política como Hobbes e Carl Schmidt. Uma pessoa destas no poder constitui um perigo para a liberdade e para a democracia portuguesa.

Ora, este é o homem que tem um plano para regressar ao poder politico. A tentativa de transformar o caso judicial num ataque politico mostra que Sócrates nunca deixou a política. Se não for condenado, voltará em força e será de novo perigoso. O seu objectivo é Belém e a presidencialização do regime. Por isso, os seus grandes adversários são Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa. Não foi por acaso que atacou os dois nas suas intervenções públicas recentes. Sei que muita gente está convencida que Sócrates jamais regressará ao primeiro plano da vida política. Mas o tempo de crise e de populismo em que vivemos é perfeito para alguém como Sócrates. Há pouco mais de um ano, todos diziam que Trump nunca seria o candidato republicano. Não só é, como pode ser Presidente. Os tempos estão perigosos e, por isso, bons para os homens perigosos.






Os ricos, nossos amigos


Helena Matos, Observador, 2 de Outubro de 2016

Criar ricos é muito mais fácil do que criar riqueza. Basta alterar por decreto o valor do património que faz de cada um de nós um rico. Não duvido que dentro de pouco tempo seremos todos ricos.

Os ricos são muito nossos amigos e muito úteis. Sem os ricos não se pode governar porque são os ricos quem tem o dinheiro que os governos dão aos pobrezinhos, aos remediados, à classe média e também aos ricos seus amigos.

Os ricos têm, no banco, o dinheiro que permite aumentar as pensões de miséria e são donos das casas que devem pagar mais impostos para acabar com a privatização dos transportes e de caminho com as obras no Palácio da Ajuda. Os ricos fazem muita falta. Temos até de construir estufas para produzir mais ricos porque cada vez precisamos mais deles. Afinal sem ricos não há dinheiro e sem dinheiro não há políticas para virar a página da austeridade.

Se cada rico depois de pagar os seus impostos ainda pagar mais dez euros para aumentar as pensões e mais dez para ficarmos com os Mirós e mais dez para termos medicamentos nos hospitais e mais dez para os artistas fazerem cultura e mais dez para que as florestas não morram e mais dez para o direito à habitação e mais dez para que os carros sejam eléctricos e mais dez para que aumente o número de professores sem turma e mais dez para que o que for preciso, libertamo-nos de vez do problema da falta de crescimento da economia. Basta ir buscar dinheiro aos ricos.

Tal como no passado possuir uma vaca afiançava a sobrevivência do agricultor, agora ter um rico guardadinho só para si não no estábulo mas na Autoridade Tributária garante a cada um de nós a manutenção dos direitos atribuídos pelos nossos governos quando pensam em eleições. Os governos que não são nossos amigos pretendiam que o dinheiro viria do investimento e da economia. Mas depois deu-se esta revolução que tudo mudou: se cada um de nós domesticar um rico tem garantida a sua sobrevivência e a libertação da selva dos mercados. Claro que um rico dá para mais do que uma pessoa (desde que o nosso concidadão José Sócrates não entre nesta aritmética!) mas é precisamente para isso que existe o Governo: para repartir com justiça a riqueza de cada rico.

A domesticação dos ricos é por isso o passo mais importante nas nossas vidas desde a domesticação dos animais feita pelos nossos antepassados. Obviamente que tal como no Neolítico os animais resistiam à domesticação também os ricos nem sempre aceitam a mudança. Os mais difíceis de domesticar são mesmo aqueles que se obstinam em dizer que não são ricos, que trabalham e poupam… Enfim, arcaísmos! Importante, importante é saber a cada momento se estamos diante de um muito rico, um rico ou apenas um bocadinho rico. Quem sabe um dia teremos um ricómetro ou seja uma geringonça que no próprio instante determina o nosso grau de riqueza!

Mas seja qual for o grau de riqueza, um rico que em 2016 em Portugal não mostra o que tem, é como uma vaca que no século passado, depois de em vida ter dado leite, se recusasse, depois de morta, a dar a carne para comermos, a pele para a indústria dos curtumes, os chifres para os pentes e cabos de talheres sem esquecer os tendões que também serviam para qualquer coisa que agora não me lembra mas que a dona Maria que regia a primeira e a segunda classes garantia ser muito importante: «na vaca tudo se aproveita» – dizia a dona Maria e nós, aprendizes das primeira letras, repetíamos-lhe a lição com rigores de magarefe.

Felizmente que no novo tempo as criancinha só fazem redacções sobre as vantagens do comércio justo da quinoa e as vacas passaram a seres sencientes, a saber criaturas com os direitos dos humanos mas sem os seus deveres nomeadamente os fiscais o que pode levar a que vários ricos, manhosos como é seu hábito, invoquem sentir-se animais unicamente para não pagarem taxas. A possibilidade de vermos aparecer transgender fiscais desde já deve merecer a atenção do senhor Ralha «vale tudo para cobrar mais impostos» pois não se vê como podendo uma pessoa mudar de sexo unicamente porque lhe apetece não há-de passar de homem para cão quando lhe der fiscalmente na gana.

Mas continuando, a domesticação dos animais é hoje uma recordação de um passado em que aos animais estava reservado um papel submisso. Civilizados como somos agora só bebemos leite de soja – donde não nos podemos esquecer de pedir mais dez euros aos ricos para que os produtores de leite de vaca deixem o leite para os bezerros e também mais dez euros para reconverter os produtores de carne de vaca em produtores de trevos de quatro folhas para alimentar os animais salvos dos matadouros. Mais cedo ou mais tarde teremos de pedir desculpa aos animais por todos os assados, costeletas e guisados s em que os transformámos. Por todas as cargas que carregaram. Por todos os campos que lavraram… E pensar que tanto sofrimento foi inútil! O segredo da riqueza estava ali ao alcance da nossa mão. Bastava ter imaginação. Bastava sonhar. Bastava ousar… Domesticam-se os ricos, dá-se um rico a cada cem pobres (mais uma vez, não esquecer que José Sócrates não pode entrar nestas contas porque elas ainda não contemplam fatinhos em Rodeo Drive) e está resolvido o problema.

Àqueles desmancha-sonhos que se estão a perguntar como resolver o problema da reposição de ricos para continuar a garantir que nunca faltarão contas bancárias onde ir buscar o dinheiro para sustentar esta nova economia, chamo a atenção que a reposição de stocks, ou se quisemos o problemas das prateleiras vazias (de medicamentos ou de ricos é o mesmo) sempre foi uma marca do socialismo e não foi por causa desse por assim dizer somenos que o socialismo deixou de se apresentar como uma alternativa política válida e para mais humanista. De qualquer modo essas angústias só assistem a quem ignora as potencialidades do Diário da República. Afinal é mais fácil criar ricos do que abastecer supermercados na Venezuela, garantir em Portugal material no SNS até ao final deste ano e sobretudo é muito mais fácil criar ricos do que riqueza. Basta alterar por decreto o valor do património que faz de cada um de nós um rico. Não duvido que dentro de pouco tempo seremos ricos a partir dos mil euros no banco.

Portugal acabará com onze milhões de ricos. E naturalmente com António Costa de sorriso estampado no rosto a congratular-se pelo seu sucesso no combate à pobreza.