sábado, 25 de abril de 2015


Petição entrega de Olivença a Portugal



http://peticaopublica.com/pview.aspx?pi=Olivenca

Para: Só permitido a cidadãos Portugueses

PETIÇÃO

Petição usando a internet.

O nome e o número do Bilhete de identidade ou Cartão de cidadão são obrigatórios.

Só podem assinar esta petição cidadãos Portugueses.

São necessários 4 000 assinaturas válidas.

Petição ao Governo da Republica Portuguesa.

Em particular, «ao Senhor Primeiro-Ministro e ao Senhor Ministro dos Negócios Estrangeiros».

Objecto da petição: entrega de Olivença a Portugal.

Esta petição tem como base o artigo 5 da Constituição da República Portuguesa no seu n.º 3, – preceitua – «O Estado não aliena qualquer parte do território português ou dos direitos de soberania que sobre ele exerce, sem prejuízo da rectificação de fronteiras.»

Esta petição respeita o que está disposto na Lei n.º 43/90 de 10 de Agosto – Exercício do Direito de Petição, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 6/93, de 1 de Março e Lei n.º 15/2003, de 4 de Junho e Lei n.º 45/2007, de 24 de Agosto.

A Vila de Olivença foi conquistada pelos portugueses aos mouros, pela primeira vez em 1166. A sua posse definitiva foi reconhecida em 1297, no Tratado de Alcanices, quando foram fixadas as fronteiras entre Portugal e Castela. Durante mais de 600 anos a sua população bateu-se contra as investidas de Castela e depois da Espanha (a partir de 1492) para preservar a sua identidade nacional.

No dia 20 de Maio de 1801, o exército espanhol, tomou o Concelho de Olivença, usurpando 750 km2 do território de Portugal, incluindo uma das suas vilas mais importantes.

Esta usurpação ocorreu num momento particularmente dramático para Portugal, dado que vivia sob a ameaça de uma invasão pelo exército francês. A Espanha aproveitou-se desta fragilidade de Portugal, e declarou-lhe guerra pela força das armas, ocupando, em violação do direito internacional, um território que não lhe pertencia, subjugando uma população indefesa.

Em 1815, após inúmeras manobras negociais, a Espanha compromete-se a devolver aquilo que havia roubado a Portugal, mas acabou por nunca o fazer. Pelo contrário, iniciaram uma sistemática política de genocídio cultural de uma parte do povo português e de ocultação das marcas de um crime.

Em 1817 a Espanha reconheceu a soberania portuguesa subscrevendo o Congresso de Viena de 1815, comprometendo-se à retrocessão do território o mais prontamente possível. Porém, até aos dias de hoje, tal ainda não aconteceu.

Para tentar provar que Olivença não é Portuguesa, recentemente a Igreja de Santa Maria Madalena, Manuelina, foi eleita por Espanha Monumento Espanhol. Mas o seu estilo, a sua arquitectura, as armas que ostenta, são indubitavelmente Portuguesas.

Exigimos a entrega imediata de Olivença a Portugal pela potência invasora.

Apoie esta Petição. Assine e divulgue. O seu apoio é muito importante.

http://peticaopublica.com/pview.aspx?pi=Olivenca





quinta-feira, 23 de abril de 2015


Escrevo como aprendi,

porque aprendi com quem sabia


Nuno Fradique Vieira, Público, 27 de Março de 2015

Para a dra. Maria Alice não existia «um erro sem importância» — um erro era um erro e a dra. Maria Alice não tolerava erros.

1. A dra. Maria Alice era o terror do meu colégio. Quando a dra. Maria Alice assomava ao fundo do corredor, que o vagar do seu passo fazia interminável, a algazarra tornava-se murmúrio, o rebuliço serenidade fingida e ia-se a esperança de que aquele fosse enfim o dia da sua primeira «falta».

Na ponta oposta do corredor ficava a sala 1. A dra. Maria Alice dava aulas na sala 1 – mais ninguém dava aulas na sala 1 e ela não dava aulas em nenhuma outra. A sala 1 era «a sala da dra. Maria Alice» e a dra. Maria Alice era «a professora de Português».

A dra. Maria Alice era severa e carrancuda. As únicas paixões que lhe conheci foram o ensino, o rigor e a Língua Portuguesa. Para a dra. Maria Alice não existia «um erro sem importância» – um erro era um erro e a dra. Maria Alice não tolerava erros. Quando algum se apresentava, a punição imediata fazia com que não tornasse. Mas os bons resultados eram premiados com presentinhos – livros, claro – pagos pelo bolso próprio. Ainda guardo um.

Nos «pontos», a dra. Maria Alice usava uma escala de classificações peculiar que incluía «Óptimo», «Péssimo» e «Recuso-me a ler isto». Nas aulas, a dra. Maria Alice não se limitava a dizer «é assim» – a Dra. Maria Alice explicava porque é que era assim, ensinando-nos a génese de cada palavra a partir da sua raiz latina ou grega; e mais tarde isso facilitou sobremaneira a nossa aprendizagem de outras línguas. Ensinou-nos, também, que «parvo» vem do Latim, «ParvusParvaParvum», e significa – quem o diria! – pequeno. «Pequeno de espírito», costumava ela repetir pensando certamente em alguém, «pequeno de espírito».

A dra. Maria Alice não tinha idade; acho que foi sempre velha. Era velha quando me tornei seu aluno, assim ficou enquanto minha professora e velha permaneceu até morrer. A dra. Maria Alice nunca se casou e, como Brás Cubas, não teve filhos, não transmitiu a nenhuma criatura o legado da nossa miséria. O que a dra. Maria Alice alcançou foi ensinar Português correcto a incontáveis gerações. Essa foi a sua herança.

2. Em prol da memória da dra. Maria Alice, agradeço ao PÚBLICO por não enveredar pelo caminho do «menor esforço» que está a conduzir à destruição da Língua Portuguesa e ao aumento da iliteracia – criando situações deploráveis onde escritores consagrados por um Nobel celebram «patos» com o diabo e sinais de trânsito proíbem a passagem «exeto» para (ironia das ironias) acesso à Faculdade de Letras e à Faculdade de Ciências.


Escusando-se a adoptar o «Acordo Ortográfico» de 1990, que não é «Acordo» (porque um acordo pressupõe a concordância de todas as partes) e não é «Ortográfico» (porque a palavra grega «orthós», como a dra. Maria Alice nos ensinou, significa «direito» – e este pseudo-acordo é uma ode à tortuosidade, à incoerência e à pequenez de espírito), o PÚBLICO está a preservar o legado de todos os professores e professoras que foram como a minha hoje querida dra. Maria Alice.

Bem hajam!


Nota – Junte-se a nós no Facebook; adira a «Cidadãos contra o 'Acordo Ortográfico' de 1990»






PS: o problema do socialismo

não é a gaveta, é o caixão


Ana Sá Lopes, Jornal i, 22 de Abril de 2015

O programa ontem apresentado pelo PS facilita os despedimentos, abraça a outrora criticada TSU e dá um tiro de canhão na sustentabilidade da Segurança Social

Já sabíamos que a social-democracia europeia era uma corrente política em coma profundo – ou que já morreu e ninguém nos avisou. Através do chamado «consenso europeu» tem acumulado derrotas sobre derrotas político-ideológicas. Ontem, foi a vez do PS português nos mostrar a sua versão particular desta derrota: inventou uma liberalização de despedimentos, recuperou a Taxa Social Única e decidiu dar um pontapé na sustentabilidade da Segurança Social para as gerações futuras.

O nosso mundo torna-se absolutamente estranho quando uma deputada do CDS, Cecília Meireles, consegue ser mais «à esquerda» que um grupo de economistas que António Costa convidou para fazer o pré-programa de governo. Disse Cecília Meireles, lembrando que o CDS sempre defendeu um regime opcional sobre os descontos para a Segurança Social: «O PS vem agora propor um sistema obrigatório, a partir de determinado montante não são pagas contribuições e as pensões sofrem o respectivo corte». Para o CDS, isto é um «ataque à sustentabilidade da Segurança Social». Para o PS, partido que se arvora em defensor do Estado social, pelos vistos não.

António Costa e os seus economistas embrulham a ideia com a cenoura de, ao aumentar o rendimento disponível do trabalhador, aumentar a procura interna e, logo, o emprego, gerando mais contribuições para a Segurança Social. Mas a decisão de reduzir a TSU para empresários e trabalhadores constitui uma vitória da doutrina Passos no pré-programa de governo do PS e, no fundo, a vitória da doutrina da desvalorização interna comungada pela Europa e pelo actual governo. Se isto não é uma vitória do pensamento do actual governo inscrita no cenário futuro de governação PS, não sabemos o que é uma vitória do pensamento de direita.

Passemos ao lado do optimismo macroeconómico que sobrevoa o texto (para conseguir 7,4% de desemprego em 2019 era preciso uma revolução na Europa) e analisemos agora a outra medida emblemática que tem um nome docinho: o «novo regime conciliatório». No «novo regime conciliatório», «as empresas podem iniciar um procedimento conciliatório, em condições equiparadas às do despedimento colectivo, englobando todos os motivos de razão económica (de mercado, estruturais e tecnológicas) que tenham posto em causa a sobrevivência do emprego». Ou seja, o despedimento colectivo generaliza-se e o PS, em troca, promete penalizar as empresas que utilizam contractos a prazo. Isto chama-se liberalizar o mercado de trabalho e se fosse uma coisa tão boa assim, o PS não deixava aqueles que foram contratados durante o regime anterior, o da malfadada troika e de Passos Coelho, de ficarem livres do novo «regime conciliatório». Ainda bem que Costa disse que o papel que ontem apresentou não é uma Bíblia – talvez esteja a tempo de mudar qualquer coisa e apresentar um programa de governo que se distinga substancialmente da direita. Se for possível.





quarta-feira, 22 de abril de 2015


O caso Freitas do Amaral


Paulo Tunhas, Observador, 16 de Abril de 2015

O Professor Freitas do Amaral é, parece, incapaz de se dar conta de tudo aquilo que na realidade escapa a um número limitado de ideias que a pouco e pouco absorveu e que fazem a vez de visão do mundo.

Angela Merkel sofre de um mal danado: tem «ideias malucas». Quem o declarou foi o Professor Diogo Freitas do Amaral, em Fafe, numa reunião curiosamente intitulada «Encontro internacional de causas e valores da humanidade» (nada mais?). Quais são as «ideias malucas» da chanceler alemã aos olhos de Freitas do Amaral? Adivinharam: o «neoliberalismo», «uma ideia destituída de qualquer fundamento económico ou social».

Seria interessante, dando de barato que «neoliberalismo» é susceptível de uma definição razoavelmente unívoca, saber o que significa a ausência de «fundamento económico e social» de uma ideia política. Aparentemente há, para o Professor Freitas do Amaral, ideias políticas verdadeiras (as que possuem o tal fundamento) e falsas (as que o não possuem). É uma proposição um bom bocado difícil de sustentar. Que certas ideias políticas, em contextos particulares, possam ser benéficas e outras prejudiciais (mesmo que formuladas com a melhor das intenções), que umas funcionem e as outras não, isso percebe-se. Mas tal coisa nada tem a ver com verdade ou falsidade, com o fundamento ou a ausência dele.

Esta questão é, no entanto, puramente académica. Em contrapartida, não é de todo académica a curiosidade que suscita a expressão utilizada por Freitas do Amaral: «ideias malucas». Ou eu leio mal, ou há um indisfarçável tonzinho de superioridade na expressão. Haveria vastas regiões da realidade que por inteiro escapariam à pobre chanceler alemã e com as quais ele, Freitas do Amaral, teria um contacto íntimo, que obviamente o salvaria desse horror das «ideias malucas». Esse tom de superioridade encontra-se em muito do que tem dito desde há já um razoável tempo. Terá esse tom razão de ser – afinal de contas há mesmo espíritos superiores, aos quais convém perdoar um eventual excesso de comprazimento com as proezas próprias – ou não?

Há talvez um critério para decidir na matéria: o das «ideias malucas», justamente. E no capítulo, o Professor Freitas do Amaral que me perdoe, não me parece que se saia muito bem. Poderia dar vários exemplos, mas um basta. Muita gente se lembra ainda do original episódio das caricaturas dinamarquesas de Maomé, em 2006. Freitas do Amaral, então ministro dos Negócios Estrangeiros de José Sócrates, andava muito preocupado com a falta de decoro das ditas, que tanto tinham excitado os muçulmanos, e disse compreender a furiosa reacção destes. Quando lhe censuraram a atitude, insurgiu-se contra aqueles que apelidou de «ignorantes», no meio de várias declarações e justificações das declarações e justificações das justificações. A única coisa que se percebia claramente de tudo aquilo era que a sua concepção da liberdade não pecava por um excesso de firmeza. Até que veio uma proposta genial. E que tal, para cimentar a amizade entre europeus e árabes e assim docemente calar extremismos islamistas, organizar um torneio de futebol euro-árabe?

Essa proposta, feita com a pausada solenidade a que nos habituou, e com a autoridade do prestigiado jurista capaz de dividir o vazio em vinte e cinco alíneas, sempre me pareceu um grandioso exemplo do que é uma «ideia maluca». Ao Professor Freitas do Amaral suponho que não. E porquê? Aparentemente, porque é incapaz de se dar conta de tudo aquilo que na realidade escapa a um número limitado de ideias que a pouco e pouco absorveu e que fazem a vez de visão do mundo a grande parte da esquerda e às suas adjacências. A quantidade de «ideias malucas» que um tal fechamento do pensamento não só tolera como incentiva não se deixa contar. Uma delas, de resto, é exactamente aquela, expressa no «Encontro internacional de causas e valores da humanidade» (desculpem repetir-me, mas que título admirável!), de que a sua compreensão deste vasto mundo plana muito acima da da chanceler Angela Merkel.

Freitas do Amaral pertence àquele número de pessoas que, vindas da direita, a pouco e pouco transitaram para a esquerda. Algumas, como Adriano Moreira, vieram da direita autoritária de Salazar. Freitas do Amaral não, e teve até, através da fundação do CDS e da sua participação na primitiva AD, um papel decisivo na legitimação da direita democrática em Portugal. Lamentavelmente, sensivelmente a partir da perda das eleições presidenciais de 1986 para Mário Soares, iniciou-se o processo que o conduziu ao lugar onde hoje se encontra: um lugar de vazio ornamentado de palavras destinadas a manifestar a sua incomum sapiência e a grandiosidade moral das suas concepções políticas.

Uma tal grandiosidade é, de resto, compatível com ideias que, como no caso das caricaturas de Maomé, mostram uma concepção assaz flexível da liberdade. No mencionado encontro (não, não repito mais uma vez o nome completo), Freitas do Amaral, que se declarou crítico do que considera a atitude amorfa, passiva e resignada dos portugueses face ao Governo, declarou a sua preferência, em certas situações, pelo voto obrigatório. Votar deixaria de ser, com a flexibilidade que estas coisas exigem, um dever. Mudaria substancialmente de natureza: passaria a ser uma imposição. Ora bem, como classificar esta ideia?






Inveja dos doutorados


João Miguel Tavares, Público, 21 de Abril de 2015

Frustrado rima com extremado, e por isso me incomodam tanto os centros de estudos que louvaminham ideologias e regimes bacocos, com agendas políticas travestidas de projectos de investigação.

Faço notar que na semana passada estive muito caladinho, sem pronunciar uma única vez a palavra «sociólogo», «CES» ou sequer «doutorado». Ainda assim, só no P3 fui brindado com três textos de faca na liga: um do precário inflexível João Camargo, que me acusou de desferir «uma ataque abjecto» ao CES; outro do sociólogo (e antigo deputado do Bloco) João Teixeira Lopes, que me apelidou de «novo bobo da nossa provinciana corte»; e mais um do «happy economist» Gabriel Leite Mota, que me acusou de produzir «resíduo tóxico», de ter «pobre capacidade argumentativa e intelectual» e de ser um «javardo da opinião».

Isto, sim, são belas manifestações de capacidade argumentativa e intelectual, oriundas de licenciados, doutorados, investigadores e professores. É curioso esta gente achar que eu não respeito a universidade, os doutorados ou as bolsas da FCT, quando se há pecado que cometo é o oposto desse: ter uma visão demasiado romântica da universidade, onde o amor à ciência e ao saber se sobrepõe ao combate ideológico e às convicções políticas de cada um. Por incrível que pareça, na minha cabeça um académico deveria poder ser, em simultâneo, investigador no CES e votante no CDS-PP. Trabalhador no Observatório Sobre Crises e neoliberal. Aluno de Boaventura Sousa Santos e admirador de Milton Friedman.

Em resumo: sou um gajo pouco sofisticado e pouco sensibilizado para a dimensão «crítica» das ciências sociais. Ou, para citar o sofisticado Mr. Happy Economist, o que tenho é «inveja» dos doutorados. Bem visto. Tal como da boca das crianças se escuta a verdade, também o raciocínio lactente não é desprovido de vantagens: Mr. Happy Economist está certíssimo. Eu tenho mesmo inveja dos doutorados. A vida académica atrai-me bastante. Os quatro anos que passei na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (parece que sou licenciado numa ciência social) foram belos tempos. Pensei muito seriamente continuar a estudar depois de acabar o curso, até porque poderia ter avançado logo para doutoramento. Mas não deu. Queria casar-me. Experimentar o jornalismo. E, sobretudo, precisava de ganhar a vida. Uma bolsa não pagava a casa, o carro, e muito menos a família.

E é precisamente por eu não ter conseguido doutorar-me, e por hoje procurar contribuir com os meus impostos para que outros possam ter o que eu não tive, que me irrita sobremaneira o abastardamento da universidade e o exército de doutorados descamisados, que chegam aos 35 e aos 40 anos sem perspectivas para as suas vidas. A Teresa de Sousa, que muito prezo, escreveu há dois dias que quando vê «pessoas a brandir contra o excesso de doutorados» lhe dá «vontade de sacar, metaforicamente, da pistola». Espero que o tiro, ainda que metafórico, não seja para mim. Eu não acho que haja doutorados a mais em Portugal — acho apenas que a questão da sua empregabilidade não deve ser menorizada.

Quando a Teresa afirma que «esses doutorados sabem pelo menos que dispõem de ferramentas que lhes serão fundamentais para construir um futuro melhor», parece-me que está a desvalorizar o potencial de frustração dessas ferramentas se a sociedade e a universidade forem incapazes de reconhecer o seu mérito. Frustrado rima com extremado, e por isso me incomodam tanto os centros de estudos que louvaminham ideologias e regimes bacocos, com agendas políticas travestidas de projectos de investigação. Basta olhar para Espanha para ver onde isso levou — é o que pretendo fazer na próxima quinta-feira.





terça-feira, 21 de abril de 2015


País de papel


Helena Matos, Observador, 19 de Abril de 2015

Ou somos capazes de confrontar o país de papel com a realidade ou acabaremos no debate sobre o meu decreto-lei vai mais longe que o teu, para no fim ficarmos ainda mais pobres e noutra crise qualquer.

Dentro de dias teremos as cerimónias do 25 de Abril. Simultaneamente temos a evocação dessa Assembleia Constituinte eleita precisamente há quarenta anos.

O país descobre agora detalhes dessas eleições e histórias desse parlamento que ainda antes de nascer já sofria do pecado original de ser burguês. Não por acaso, aquilo a que nos últimos anos temos chamado contestação é quase invariavelmente o desfile do que resta desse país em que a legitimidade da rua, das assembleias de oficiais, sargentos e praças e dos pactos MFA-partidos era vista como moralmente superior à do parlamento: militares agora como então incapazes de produzir um discurso coerente antecipando golpes de estado (em 1975 após umas assembleias nocturnas, agora após o almoço, que a idade não perdoa), sindicatos de representatividade mediática inversamente proporcional à sua representatividade laboral funcionando como uma espécie de milícias da esquerda comunista, só que agora com reformados no lugar dos antigos operários fardados (quero acreditar que em alguns casos são os mesmos, mas com mais 40 anos e dando o braço e o abraço aos socialistas), líderes políticos e jornalistas agora como então empolgados com a força revolucionária da rua.

E, claro, muito falar de fome, de Salazar (por sinal morto em 1970 e incapacitado desde 1968), da revolta… enfim o costume como se não tivessem passado 40 anos, não estivesse tudo mais velho, mais gordo e a contar o tempo das performances da indignação até que as televisões partam e consequentemente as corporações do regime possam dar por terminada a encenação da revolta popular.

Mas para lá deste aspecto quase folclórico e invariavelmente cruel das imagens, e independentemente de todas as discussões que se possam ter sobre a Constituição (sim é um programa de governo, sim é de esquerda, sim é frequentemente desrespeitada), o que esteve em causa nesta crise foi o país de papel, esse país que se desenhou decreto a decreto, portaria a portaria, artigo a artigo nesse ano de 1975 e, para sermos justos, nos que se lhe seguiram. É esse um mundo em que não existe qualquer relação entre o que materialmente se promete e os meios existentes. É um mundo onde se legisla unicamente em função do presente e em que, desde as portarias sobre a bolacha Maria («de consumo muito generalizado, em especial pelas classes de menores rendimentos» segundo a Portaria 653/74, de 10 de Outubro que lhe fixou os preços máximos) às questões da propriedade e do trabalho, somos confrontados com o imaginário de um país em que no papel se há-de compensar tudo o que não fomos capazes de fazer.

É um mundo onde qualquer lei é precedida de magníficas peças introdutórias onde, após se desenhar um mundo de trevas herdado do passado, se traça o luminoso resultado que todo aquele articulado vai produzir no imediato. É um país adolescente, em que a culpa é sempre dos outros que estiveram antes, em que daquele momento em diante tudo funcionará simplesmente porque agora são eles os protagonistas.

Paulatinamente o jargão revolucionário foi sendo substituído por aquele linguarejar dos programas, dos eixos dinamizadores, da dimensão solidária, do impacto das políticas de crescimento… mas o imaginário sobre o poder abracadabrante da legislação não só se manteve intocável como até se reforçou pois sempre era uma alternativa civilizada à gritaria da rua.

Até que chegou 2011 e a crise amarrotou o país de papel. Ou melhor ficou desbotado e antigo como as fotografias em Kodacolor que fazíamos há quarenta anos e que agora já não fazemos mas entrevemos como quem folheia um velho álbum em cada acórdão do Tribunal Constitucional e em cada declaração anti-austeridade. Quatro décadas depois, o país das promessas no papel começou a esboroar-se não porque tenhamos deixado de ser socialistas (não deixámos) mas tão só porque se percebeu que os únicos a pagar o que se escreve no papel somos nós.

E isso faz toda a diferença. Uma diferença bem mais profunda que qualquer revisão constitucional. O país de papel promete-nos a riqueza e a perfeição há quarenta anos. (Que nos prometa tudo isso sob o sistema socialista é apenas um detalhe dessa ficção pois o socialismo acabou quando acabou o dinheiro e o estatismo mágico ocupou o lugar outrora reservado à luta de classes.) Mas o que se torna evidente a cada crise é que ou somos capazes de confrontar o país de papel com a realidade, questionando o âmbito das medidas, a sua sustentabilidade, os seus efeitos ou acabaremos na discussão sobre o meu decreto-lei vai mais longe que o teu. Que é o mesmo que dizer que cairemos ainda mais pobres numa outra crise mas rodeados de decretos, leis, portarias, disposições e programas onde se enumeram objectivos ainda mais perfeitos.