sexta-feira, 10 de abril de 2015


Os descamisados doutorados


João Miguel Tavares, Público, 9 de Abril de 2015

Reparem como sou moderado: por um lado, não gosto nada do que o CES faz; por outro, compreendo que o queira fazer.

Nem por acaso: enquanto eu andava entretido a debater a qualidade «científica» do Observatório sobre Crises e Alternativas e as peculiaridades ideológicas do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, o presidente da Fundação para a Ciência e Tecnologia, Miguel Seabra, apresentava a sua demissão, após um desgraçadíssimo mandato.

Ora, a FCT e a ciência social ao estilo CES – que a sua própria direcção classifica como (juro) «ciência social crítica» ou «ciência cidadã» – estão ligadas por um cordão umbilical que diz muito acerca das debilidades estruturais deste país e do perigo da aposta acrítica na «qualificação», o cavalo favorito de António Costa e dos governos socialistas.

Dir-me-ão: mas então não é tão bonito investir na educação, na formação, na qualificação, e em outras palavras acabadas em «ão» que enchem a boca e o coração? É, é. Só que, quando juntamos 1) a política de doutoramentos e pós-doutoramentos criada por Mariano Gago e patrocinada pela FCT; 2) as limitações e a falta de competitividade da economia portuguesa; e 3) a chegada em força da austeridade e o aumento dramático do desemprego jovem; o resultado deste cocktail mortífero só pode naturalmente ser um: a criação de um exército de descamisados doutorados, completamente dependentes da boa-venturança do senhor professor que dá uma ajudinha para conseguir a bolsa do pós-doc, e que chegam aos 35 e aos 40 anos numa situação lastimável, sem forma de ingressar nos quadros das universidades (que estão fechados e cheios de gente menos competente do que eles), sem uma vida profissional estável e com excesso de qualificações para os empregos disponíveis.

Os números não mentem (enfim: às vezes mentem, se torturados por cientistas cidadãos). Em 1997, ano em que a FCT foi criada, doutoraram-se 579 portugueses. Em 2013 (dados Pordata), doutoraram-se 2668. Os doutorados quintuplicaram numa década e meia. Quando se olha para o gráfico dos doutoramentos anuais desde 1970, a evolução a partir do final dos anos 90 é uma subida de montanha de primeira categoria. Ou seja, enquanto em termos económicos o país afocinhava, naquela que já é conhecida como a «década perdida», as qualificações dos portugueses não paravam de subir. Seria fantástico, em termos de competitividade, se – e este é um grande «se» – o sector privado conseguisse absorver um quinhão significativo dos doutorados. Infelizmente, não consegue.

Um estudo de 2009 sobre a situação profissional dos doutorados em Portugal indicava a existência de 17 010 a trabalhar em investigação e desenvolvimento. Mas sabem quantos é que o faziam fora das universidades, em empresas privadas? 196. Ou seja, pouco mais de 1% do total. É esta a força da investigação e do desenvolvimento em Portugal. E se olharmos para o domínio específico das ciências sociais, não é difícil adivinhar o seu credo da última década: «fora da universidade (ou do laboratório associado) não há salvação».

Reparem como sou moderado: por um lado, não gosto nada do que o CES faz; por outro, compreendo que o queira fazer. Boaventura Sousa Santos, José Manuel Pureza e Carvalho da Silva têm um batalhão de doutorados descamisados, frustrados e politizados às suas ordens, que lhes foram oferecidos por Mariano Gago, uma economia débil e um país intervencionado. Há que entendê-los: a tentação de criar as condições para que um dia possa nascer um Pablo Iglesias do Mondego é demasiado grande. E é para isso que eles trabalham. «Cientificamente».





terça-feira, 7 de abril de 2015


O salvador


Vasco Pulido Valente, Público, 3 de Abril de 2015

Para nossa desgraça, António Costa, talvez por falta de inspiração própria, não mostrou até agora capacidade para inspirar ninguém.

O menos que se pode dizer da operação que levou António Costa a secretário-geral do PS e a candidato a primeiro-ministro é que não foi «elegante».

Nessa altura, muita gente desculpou ou justificou a grosseria e a brutalidade da coisa, porque esperava de António Costa uma nova oposição ao governo lúcida e compreensível e, sobretudo, com princípio, meio e fim. A discrição e as meias-frases na Quadratura do Círculo davam a impressão de esconder um pensamento sólido e um plano político original, que nos tirasse do lugar-comum e da pura irrelevância do debate instituído. Infelizmente, não aconteceu nada disso. Nem nos rituais do Congresso Socialista, nem a seguir em meia dúzia de entrevistas de uma «prudência» claramente exagerada e de uma ambiguidade extrema, António Costa saiu da mastigação das velhas lamúrias da esquerda e da extrema-esquerda.

Esperança não trouxe nenhuma; e extinguiu depressa o entusiasmo das «primárias» do PS, em que não se sabe ao certo quem votou. Apareceu então um putativo salvador que se calava ou, quando se mexia, era como se andasse a pisar ovos. O que, de resto, não o salvou de erros sem desculpa. Prometeu baixar o IVA da restauração para 13% (como se os 23% não tivessem também o objectivo de melhorar a qualidade dos serviços prestados); prometeu a «reposição total» dos salários (do Estado, claro) e das pensões, sem explicar onde iria buscar o dinheiro para essa extravagância; prometeu que os municípios passariam a reter uma indeterminada percentagem do IVA, gerado localmente; e prometeu um «programa nacional» de «requalificação urbana», aparentemente financiado pela «Europa». Ora isto por um lado é muito, e por outro lado muito pouco. Meia dúzia de medidas não faz um plano estratégico; e um plano estratégico precisa de uma inspiração unificadora, capaz de ser adoptada e compreendida pelo cidadão comum.

Mas, para nossa desgraça, António Costa, talvez por falta de inspiração própria, não mostrou até agora capacidade para inspirar ninguém. No governo foi um razoável ministro; na câmara um administrador sofrível; e no partido um ambicioso hábil. O que não chega para um país sem futuro certo ou destino visível. Tropeçando de papel em papel e de comissão em comissão, António Costa vai fatalmente desaparecer, já desapareceu, no cansaço e no desespero dos portugueses.