terça-feira, 16 de junho de 2015


Redacção – Declaração de Amor

à Língua Portuguesa


Teolinda Gersão, Junho, 2012

Tempo de exames no secundário, os meus netos pedem-me ajuda para estudar português. Divertimo-nos imenso, confesso. E eu acabei por escrever a redacção que eles gostariam de escrever. As palavras são minhas, mas as ideias são todas deles.

Vou chumbar a Língua Portuguesa, quase toda a turma vai chumbar, mas a gente está tão farta que já nem se importa. As aulas de português são um massacre. A professora? Coitada, até é simpática, o que a mandam ensinar é que não se aguenta. Por exemplo, isto: No ano passado, quando se dizia «ele está em casa», «em casa» era o complemento circunstancial de lugar. Agora é o predicativo do sujeito. «O Quim está na retrete»: «na retrete» é o predicativo do sujeito, tal e qual como se disséssemos «ela é bonita». Bonita é uma característica dela, mas «na retrete» é característica dele? Meu Deus, a setôra também acha que não, mas passou a predicativo do sujeito, e agora o Quim que se dane, com a retrete colada ao rabo.

No ano passado havia complementos circunstanciais de tempo, modo, lugar etc., conforme se precisava. Mas agora desapareceram e só há o desgraçado de um «complemento oblíquo». Julgávamos que era o simplex a funcionar: Pronto, é tudo «complemento oblíquo», já está. Simples, não é? Mas qual, não há simplex nenhum, o que há é um complicómetro a complicar tudo de uma ponta a outra: há por exemplo verbos transitivos directos e indirectos, ou directos e indirectos ao mesmo tempo, há verbos de estado e verbos de evento, e os verbos de evento podem ser instantâneos ou prolongados, almoçar por exemplo é um verbo de evento prolongado (um bom almoço deve ter aperitivos, vários pratos e muitas sobremesas). E há verbos epistémicos, perceptivos, psicológicos e outros, há o tema e o rema, e deve haver coerência e relevância do tema com o rema; há o determinante e o modificador, o determinante possessivo pode ocorrer no modificador apositivo e as locuções coordenativas podem ocorrer em locuções contínuas correlativas. Estão a ver? E isto é só o princípio. Se eu disser: Algumas árvores secaram, «algumas» é um quantificativo existencial, e a progressão temática de um texto pode ocorrer pela conversão do rema em tema do enunciado seguinte e assim sucessivamente.

No ano passado se disséssemos «O Zé não foi ao Porto», era uma frase declarativa negativa. Agora a predicação apresenta um elemento de polaridade, e o enunciado é de polaridade negativa.

No ano passado, se disséssemos «A rapariga entrou em casa. Abriu a janela», o sujeito de «abriu a janela» era ela, subentendido. Agora o sujeito é nulo. Porquê, se sabemos que continua a ser ela? Que aconteceu à pobre da rapariga? Evaporou-se no espaço?

A professora também anda aflita. Pelos vistos no ano passado ensinou coisas erradas, mas não foi culpa dela se agora mudaram tudo, embora a autora da gramática deste ano seja a mesma que fez a gramática do ano passado. Mas quem faz as gramáticas pode dizer ou desdizer o que quiser, quem chumba nos exames somos nós. É uma chatice. Ainda só estou no sétimo ano, sou bom aluno em tudo excepto em português, que odeio, vou ser cientista e astronauta, e tenho de gramar até ao 12.º estas coisas que me recuso a aprender, porque as acho demasiado parvas. Por exemplo, o que acham de adjectivalização deverbal e deadjectival, pronomes com valor anafórico, catafórico ou deítico, classes e subclasses do modificador, signo linguístico, hiperonímia, hiponímia, holonímia, meronímia, modalidade epistémica, apreciativa e deôntica, discurso e interdiscurso, texto, cotexto, intertexto, hipotexto, metatatexto, prototexto, macroestruturas e microestruturas textuais, implicação e implicaturas conversacionais? Pois vou ter de decorar um dicionário inteirinho de palavrões assim. Palavrões por palavrões, eu sei dos bons, dos que ajudam a cuspir a raiva. Mas estes palavrões só são para esquecer. Dão um trabalhão e depois não servem para nada, é sempre a mesma tralha, para não dizer outra palavra (a começar por t, com 6 letras e a acabar em «ampa», isso mesmo, claro).

Mas eu estou farto. Farto até de dar erros, porque me põem na frente frases cheias deles, excepto uma, para eu escolher a que está certa. Mesmo sem querer, às vezes memorizo com os olhos o que está errado, por exemplo: haviam duas flores no jardim. Ou: a gente vamos à rua. Puseram-me erros desses na frente tantas vezes que já quase me parecem certos. Deve ser por isso que os ministros também os dizem na televisão. E também já não suporto respostas de cruzinhas, parece o totoloto. Embora às vezes até se acerte ao calhas. Livros não se lê nenhum, só nos dão notícias de jornais e reportagens, ou pedaços de novelas. Estou careca de saber o que é o lead, parem de nos chatear. Nascemos curiosos e inteligentes, mas conseguem pôr-nos a detestar ler, detestar livros, detestar tudo. As redacções também são sempre sobre temas chatos, com um certo formato e um número certo de palavras. Só agora é que estou a escrever o que me apetece, porque já sei que de qualquer maneira vou ter zero.

E pronto, que se lixe, acabei a redacção – agora parece que se escreve redação. O meu pai diz que é um disparate, e que o Brasil não tem culpa nenhuma, não nos quer impor a sua norma nem tem sentimentos de superioridade em relação a nós, só porque é grande e nós somos pequenos. A culpa é toda nossa, diz o meu pai, somos muito burros e julgamos que se escrevermos ação e redação nos tornamos logo do tamanho do Brasil, como se nos puséssemos em cima de sapatos altos. Mas, como os sapatos não são nossos nem nos servem, andamos por aí aos trambolhões, a entortar os pés e a manquejar. E é bem feita, para não sermos burros.

E agora é mesmo o fim. Vou deitar a gramática na retrete, e quando a setôra me perguntar: Ó João, onde está a tua gramática? Respondo: Está nula e subentendida na retrete, setôra, enfiei-a no predicativo do sujeito.

João Abelhudo, 8.º ano, turma C (c de c…r…o, setôra, sem ofensa para si, que até é simpática).





segunda-feira, 15 de junho de 2015


O infantilismo, doença degenerativa

do socialismo


Helena Matos, Observador, 13 de Junho de 2015

Os partidos socialistas vão ficando cada vez mais fracos, os seus eleitorados mais irrealistas e disponíveis para os mais destravados populismos e as lideranças mais reféns dos índices de popularidade

Portugal tem um problema: o PS não quer governar. Quer simplesmente voltar atrás. Quer voltar a ser criança, coisa que à esquerda se traduz por radicalizar e proferir as maiores inanidades com o ar sorridente, feliz, de quem sabe que nunca lhe serão pedidas responsabilidades.

Quando o dinheiro acabou o socialismo (redistributivo por natureza) desistiu do pensamento, de construir propostas e foi substituído pelo infantilismo. Só a natureza intelectual e emocionalmente regressiva desse processso explica que, de repente, os socialistas não se distingam dos bloquistas e demais movimentos clonados. Basta atentar em títulos como: «PS diz que irá reverter o processo de privatização da TAP se for Governo» ou «Costa recusa cortes e promete repor pensões» para percebermos que o PS ou não pensa governar ou pelo menos não pensa governar em moldes democraticamente aceitáveis. Já as declarações dos socialistas sobre a TAP ter sido vendida por meio Jorge Jesus estão ao nível do patetismo, coisa que nem me apetece comentar! Fiquemo-nos portanto pela infantilização.

Os socialistas portugueses não estão sós neste seu processo de infantilização que pateticamente confundem com ideologia. Como é hábito, em Espanha tudo é mais acentuado e neste momento os socialistas espanhóis (numa atitude que revela um assinalável desconhecimento da sua própria História) fogem das alianças ao centro e optam por aliar-se à extrema-esquerda. Assim, entre acordos vários, por toda a Espanha, o PSOE deu o seu aval e os seus votos para que radicais de esquerda fiquem à frente das localidades ganhas sem maioria absoluta pelo PP. Estas frentes populares acabarão como de costume: os socialistas ficam destruídos e os radicais insuflados.

Símbolo de tudo isto: graças aos votos do PSOE, Madrid vai ter como responsável autárquica Manuela Carmena, uma senhora que enquanto juíza se caracterizou frequentemente por ter uma visão do Direito em que, como afirmam alguns dos seus colegas, se via simultaneamente como parte, legislador e juiz. Visão essa que às vezes levava a situações anedóticas, como aconteceu no chamado caso das calças. (Um processo movido contra vários empresários acusados de venda ilegal de calças de ganga que acabou com o Estado espanhol a ter de indemnizar os ditos empresários pois a juíza Carmena achou por bem distribuir por várias associações as calças apreendidas muito antes de se saber o desfecho do processo. Carmena não ponderara que se os homens fossem considerados inocentes – o que veio a suceder – teriam direito a reaver a mercadoria apreendida).

Num plano politicamente mais complicado também tivemos a juíza Carmena a aplicar as suas teses sobre a sem razão das prisões ao colocar em liberdade, por aquilo que considerou ponderosos problemas de saúde, Manuel Azkárate Ramos, um terrorista da ETA. Misteriosamente a doença que tanto impressionara a juíza Carmena não impedira, no passado, Azkárate Ramos de ser terrorista e muito menos o impediu de continuar a sê-lo assim que a juíza Carmena lhe deu a liberdade condicional.

Por agora Manuela Carmena pretende que a habitação é um direito humano e portanto quer acabar com os despejos; também quer municipalizar os serviços de recolha do lixo e promover activíssimas políticas de género. Este último item, apesar de não se perceber o que tem a ver com os trabalhos inerentes a um município, talvez seja o que levará a cabo com maior sucesso porque gera muito alarido e pouca despesa.

Ao verem-se as improváveis criaturas que o PSOE tem apadrinhado simplesmente para que o PP não exerça o poder, ao constatar-se como os socialistas fecham os olhos ao comportamento dos seus novos parceiros (nomeadamente as arruaças feitas pelo Podemos durante a tomada de posse de Manuela Carmena), cabe perguntar: o que querem os socialistas? E a resposta é só uma e não passa por governar mas sim por declarar: dizerem-se de esquerda. Mesmo que isso implique escaqueirar qualquer possibilidade de efectuar as reformas indispensáveis e que, tanto em Espanha como em Portugal, só podem ser feitas pelo centro.

Dir-se-á que faz parte dos livros que na oposição os socialistas radicalizam o discurso mas que, uma vez chegados ao governo, logo cai sobre eles o mais profundo sentido de Estado. Sendo isto frequentemente verdade, não quer dizer que seja isento de consequências a médio prazo: suponha-se que na oposição o PSD e o CDS ou em Espanha o PP não só confraternizavam como se aliavam e reconheciam a superioridade moral de uns grupos de extrema-direita? Pois esse exercício, que felizmente é mortal à direita, é praticado alegremente à esquerda com a não irrelevante consequência de legitimar, apadrinhar e incentivar uma gente que não tem qualquer programa exequível para governar e que continua intolerante e radical como sempre foi.

Por outro lado, este exercício vai ficando cada vez mais perigoso porque os partidos socialistas vão ficando cada vez mais fracos, os seus eleitorados mais irrealistas e disponíveis para apoiar os mais destravados populismos e as suas lideranças mais reféns dos índices de popularidade. (Qualquer semelhança com a actual situação do PS não é coincidência).

Quanto à direita, ou a não-esquerda como prefere ser chamada, pode perder as eleições, mas essa radicalização ideológica dos socialistas até lhes convém (mas só convém de facto à direita e só convém num primeiro momento) pois fugindo a direita ao debate ideológico, o espectáculo mais ou menos folclórico das frentes de esquerda no poder é o melhor presente que pode ter.

Querem melhor exemplo que o Syriza? O Syriza tem feito mais pela credibilidade de Maria Luís Albuquerque que quaisquer resultados conseguidos pelo seu ministério. O Syriza e as declarações de António Costa sobre a vitória do Syriza são o melhor presente que Passos teve este ano.

Afinal não podemos esquecer que o infantilismo da esquerda tem o seu reverso à direita no evidentismo: a direita não tem ideias e quando as tem, tem vergonha delas. Ou melhor dizendo, acha-as em geral menos nobres que o socialismo. A este último reserva a direita o estatuto de sociedade perfeita mas utópica. Não fosse a realidade desfazer sistematicamente a utopia e também a direita seria socialista. Daí decorre o evidentismo: mostrar à evidência os evidentes erros dos governos de esquerda não é uma estratégia eleitoral da direita. É a sua ideologia oficial. A sua justificação moral para não ser de esquerda.

E assim Portugal está entre o evidentismo e o infantilismo. Há contudo dilemas piores. Mas espero não ter de escrever sobre eles.





domingo, 14 de junho de 2015


Onde estava no 12 de Junho?



Rui Ramos, Observador 12 de Junho de 2015

É um dos paradoxos da democracia portuguesa: das duas maiores decisões do regime, a descolonização e a integração europeia, nenhuma foi matéria de referendo, mas tão-só de fatalismo histórico.

A pergunta é, numa rábula conhecida, ritualmente feita acerca do 25 de Abril. Mas a menos que o inquirido estivesse entre os oficiais do MFA, a resposta até pode lisonjear a sua vaidade cívica, mas é irrelevante para a história. O 25 de Abril foi uma revolução, em que só os revolucionários contaram. O mesmo, porém, não deveria ser verdade para 12 de Junho de 1985, data da assinatura do tratado de adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia (CEE). Há trinta anos, vivíamos em democracia. Devíamos ter contado todos. Mas não contámos, pelo menos directamente. O 12 de Junho não foi um referendo. Apenas uma «assinatura».

Não porque o regime tivesse menorizado o momento. Pelo contrário: em toda a história democrática, poucos eventos mereceram uma encenação tão pomposa, com a nova oligarquia democrática a ocupar o mosteiro dos Jerónimos, como os navegantes de uns novos Descobrimentos. O caminho da Europa substituía o caminho da Índia. Porque é que o país só teve o direito de assistir pela televisão  a uma cerimónia diplomática para «altas individualidades»? Numa democracia, não deveriam ter sido convocados os cidadãos para sufragar a decisão, antes das canetas riscarem o papel?

É verdade: a maioria dos eleitores votara sempre nos partidos que tinham promovido a causa da adesão: 76% nas eleições de 1983. Mas em nenhuma eleição a adesão à CEE fora a questão principal. A oligarquia decidiu, desde cedo, tratar a adesão como uma fatalidade. Portugal não tinha escolha, se queria sobreviver e prosperar. A democracia perfilhou assim uma maneira velha de lidar com as grandes opções nacionais. A ditadura salazarista fizera o mesmo com o «ultramar». Sem Angola, não havia vida para Portugal. Agora, a CEE substituía Angola. O raciocínio era o mesmo. A «Europa» era a terra prometida de um povo a quem as fronteiras de uma velha independência não bastavam para a salvação. Depois da Índia, do Brasil e da África, era a vez da Europa.

E também é verdade: havia uma dose de fatalidade nesta história. A adesão à CEE vinha de longe – mais longe do que a mitologia democrática quis reconhecer, ao fazer começar a história apenas com o pedido formal de 1977. Podia-se recuar a 1960, até à adesão de Portugal à Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA), ou mesmo a 1948, aquando da filiação portuguesa na Organização para a Cooperação Económica na Europa (OEEC). A ditadura salazarista tentara sempre combinar as suas opções coloniais e anti-democráticas com o acompanhamento da integração económica europeia. Na década de 1960, a inserção na Europa – através do comércio livre, mas também da emigração e do turismo – transformou profundamente o país. Em 1975, os oficiais do MFA que sonhavam com uma Cuba europeia tiveram de se resignar: Portugal estava demasiado enraizado no Ocidente para permitir novas aventuras luso-tropicalistas, agora em versão guevarista. Parecia demasiado tarde para haver escolha.

Onde esteve então o problema? Nisto: não apenas Portugal, mas também a «Europa» ia mudar. Em 12 de Junho de 1985, a República Portuguesa aderiu à CEE. Oito anos depois, a CEE já não existia, substituída pela União Europeia do Tratado de Maastricht. Mais: a Europa de 1985 também já não existia. O colapso do comunismo europeu e a «globalização» transformaram os mapas e abriram as fronteiras. Portugal, que esperava deslocalizações industriais a seu favor, foi subitamente confrontado com concorrentes inesperados, da China à República Checa. A classe dirigente da democracia portuguesa decidiu então mergulhar o país na parte mais funda da piscina. Era preciso, a todo o custo, manter Portugal no «pelotão da frente» da integração. Mercado único, moeda única — tudo foi tratado como matéria de urgência e de consenso.

Houve sempre velhos do Restelo. Mas nunca em número suficiente para sujeitar o «processo europeu» ao teste da vontade popular. É um dos paradoxos da democracia: das duas maiores decisões do regime, a descolonização e a europeização, nenhuma foi referendada. No caso da integração europeia, além do fatalismo histórico, havia outro pormenor a desaconselhar a consulta: as opiniões sobre o «projecto europeu» pareceram sempre demasiado circunstanciais. Quando havia subsídios, os portugueses gostavam da «Europa». Quando havia cortes, não gostavam. Nunca pareceu possível discutir a integração em termos do que o país queria ser, mas apenas em termos do que tinha a ganhar. Foi menos uma questão ontológica do que contabilística.

A Europa mudou. Portugal também. Em 1985, os portugueses eram ainda uma população jovem numa economia agro-industrial. Trinta anos depois, formam uma população envelhecida numa economia de serviços. A integração europeia enquadrou esta metamorfose. É costume agora lamentar as oportunidades perdidas, e os erros de trajectória. Mas uma coisa que foi feita com um espírito de fatalidade terá provavelmente de ser prosseguida com o mesmo espírito. Até certo ponto. Porque um dia, a história mudará outra vez. Também é fatal.