terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Falando abertamente

Daniel Pipes

O menu no meu voo, no início deste mês, pela Turkish Airlines assegurava aos passageiros que «não haveria carne de porco». O menu também oferecia uma boa selecção de bebidas alcoólicas, incluindo champagne, whiskey, gim, vodka, rakı, vinho, cerveja, licor e conhaque. Esta excentricidade de aderir e ao mesmo tempo ignorar a lei islâmica, a Shari'a, simboliza o singular e único papel público do islão na Turquia de hoje, bem como o desafio de compreender o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (conhecido pela abreviação turca, AKP) que vem governando o país desde 2002.
 
As discussões políticas sobre a Turquia tendem a concentrar-se na pergunta se o AKP é islamista ou não: Por exemplo, em 2007, eu perguntei «quais são as intenções da liderança do AKP»? «Ela … resguardou um programa islamista secreto e simplesmente aprendeu a dissimular os seus objectivos islamistas? Ou na realidade desistiu daqueles objectivos e aceitou o secularismo»?
 
Durante as recentes discussões em Istambul, eu fiquei a saber que turcos dos mais diferentes pontos de vista chegaram a um consenso a respeito do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdoğan: eles preocupam-se menos com as suas ambições islamistas do que com as suas tendências nacionalistas e ditatoriais.A adopção plena da Shari'a, dizem eles, não é um objectivo viável na Turquia por conta da natureza secular e democrática do país, o que o diferencia dos outros países de maioria muçulmana (excepto a Albânia, Kosovo e Quirguizistão). Admitindo esta realidade, o AKP obtém apoio eleitoral cada vez maior por meio de uma coerção aprazível da população para que seja mais virtuosa, tradicional, devota, religiosa, conservadora e moral. Desse modo, ele incentiva o jejum durante o Ramadão e o recato feminino, desestimula o consumo de álcool, ensaiou criminalizar o adultério, indiciou um artista anti-islamista, aumentou o número de escolas religiosas, incluiu o islão no currículo das escolas públicas e introduziu questões sobre o islão nos exames de admissão às universidades. Colocado nos termos da Turkish Airlines, a carne de porco já foi eliminada e é uma questão de tempo até que o álcool também desapareça.
A Turkish Airlines proíbe carne de porco mas serve bebidas alcoólicas.
 Os meus interlocutores disseram-me que o objectivo é a prática islâmica, não a lei islâmica. Decepar as mãos, burcas, escravidão e jihad não estão no contexto, muito menos após o crescimento económico ter fortalecido a classe média, orientada para o islamismo que rejeita o islamismo do estilo saudita. Um líder da oposição observou que cinco distritos de Istambul «parecem-se com o Afeganistão», mas são a excepção. Eu ouvi dizer que o AKP procura reverter a antireligiosidade do estado criado por Atatürk sem enfraquecer aquele estado, com a esperança de criar uma ordem pós Atatürk, mais do que uma ordem anti-Atatürk. Por exemplo, ele procura controlar o sistema legal existente em vez de criar um sistema legal islâmico. O colunista Mustafa Akyol até afirma que o AKP não está tentando abolir o secularismo mas sim a «defender uma interpretação mais liberal». O AKP, dizem eles, tenta reproduzir os 623 anos do estado Otomano findado por Atatürk em 1922, admirando tanto a sua orientação islâmica quanto o seu domínio dos Balcãs e do Médio Oriente.
 
Mohamed Morsi poderia aprender
 uma ou duas coisas de Recep Tayyip Erdoğan.
Esta orientação neo-otomana pode ser vista na aspiração do primeiro-ministro em servir como califa informal, por meio da mudança de ênfase na Europa para o Médio Oriente (onde ele é um herói questionável das ruas árabes) na oferta da fórmula política e económica do AKP a outros países muçulmanos, particularmente o Egipto. (Erdoğan decididamente defendeu o secularismo durante a sua visita àquele país, para desalento da Irmandade Muçulmana e olha com desconfiança ao ver Mohamed Morsi empurrar goela abaixo a Shari'a aos egípcios). Além disso, Ancara ajuda o regime iraniano a esquivar-se das sanções, apoia a oposição sunita contra Bashar al-Assad da Síria, arranjou um confronto tumultuoso e gratuito com Israel, ameaçou Chipre quanto às descobertas de gás na sua costa marítima e até interveio no julgamento de um líder islamista do Bangladesh.
 
Como tudo na Turquia, o lenço de cabeça
 pode ter dimensões subtis.
Tendo ultrapassado o «estado profundo», particularmente o corpo de oficiais das forças armadas, em meados de 2011, o AKP adoptou uma forma cada vez mais autoritária, chegando ao ponto de muitos turcos temerem a ditadura mais do que a islamização. Observam com atenção à medida que Erdoğan, «intoxicado pelo poder», prende oponentes com base em teorias conspiratórias e escutas telefónicas, encena julgamentos só para inglês ver, ameaça acabar com novelas de carácter histórico na televisão, procura impor as suas preferências pessoais ao país, fomenta o antissemitismo, abafa a crítica política, justifica medidas enérgicas contra manifestações de protesto de estudantes contra a sua pessoa, manipula os média, pressiona o judiciário e desfere violentas criticas em relação à separação dos poderes. O colunista Burak Bekdil ridiculariza-o como «engenheiro social e chefe eleito da Turquia». Mais ameaçadoramente, outros vêem-no como a resposta da Turquia a Vladimir Putin, um semi-democrata arrogante que fica no poder por décadas.
 
Livre da supervisão das forças armadas apenas em meados de 2011, vejo Erdoğan provavelmente conquistando o poder ditatorial suficiente (ou para um sucessor) para alcançar o seu sonho e implementar a Shari'a plena.
 
Actualização de 26 de Dezembro de 2012:
 
Mais alguns factos sobre a Turkish Airlines (abreviação: THY):

– Oferecer refeições kosher, hindu e jainista.

– Orgulhar-se de ser a «Melhor Companhia Aérea da Europa» de acordo com o Skytrax, um grupo de consultoria britânico.

– Vangloriar-se de servir mais países do que qualquer outra companhia aérea, 91 países contra 88 da Air France.

– O principal átrio da classe executiva, no aeroporto Atatürk de Istambul, é (segundo a opinião de um passageiro) de longe o mais extraordinário do mundo, seja pelo design inovador, seja pela área para as crianças brincarem, biblioteca, mesa de bilhar, televisão, cinema, piano bar, mesquita, chuveiros, suítes para dormir e a gama de alimentos de qualidade. Tem capacidade para 2 000 visitantes.

– O governo turco possui 49% das acções da THY e de acordo com Orçun Selçuk, num artigo no Today's Zaman, a companhia aérea «é usada abertamente pelo governo como pilar para expansão da sua política externa». Além disso, segundo ele, serve «como ferramenta de poder de influência voltada para aumentar a atracção da Turquia entre o público estrangeiro».


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Parlamento europeu em sessão.
Verdadeiramente vergonhoso…