Laurinda Alves,
Observador, 12 de Julho de 2016
Mesmo os cépticos militantes e os cínicos mais
incorrigíveis sabem que nestes momentos há uma matemática infalível: a da
confiança que gera sempre mais confiança. Foi essa a lição de Fernando Santos.
E agora, que já todos conseguimos dormir umas horas
seguidas, e os 23 rapazes mais o seu Mister também já voltaram a pousar a
cabeça nas suas almofadas, depois de tocarem o céu e atravessarem oceanos de
multidões dentro e fora dos estádios, agora sim, estamos em condições de
retomar certas rotinas com mais alegria e confiança.
A vitória da Selecção não resolve nenhum dos nossos
problemas, é certo, mas ajuda-nos a viver. Nem sabemos exactamente de que forma
nos ajuda a enfrentar a vida, só sabemos que esta grande vitória nos resgata
para o dia-a-dia tantas vezes previsível e chato. Faz-nos mais leves e
torna-nos mais unidos, mesmo que a união seja efémera, e ao fim do dia cada um
vá para seu lado. Acredito que hoje todos voltamos a ser quem éramos, excepto
na alegria. E numa certa leveza.
Falo do alívio que resulta de não termos perdido
perante adversários tão arrogantes e territoriais como os franceses. É
impossível ser insensível à absurda presunção de superioridade de comentadores
obliterados pelos nervos das vésperas da grande final. O alívio também nasce da
certeza de que a vida nem sempre é justa e raras vezes evolui numa lógica de
merecimento. Merecíamos ganhar, mas podia não ter acontecido. A bola podia não
ter batido na trave. Mais, podíamos ter quebrado quando Payet tentou e
conseguiu derrubar Ronaldo. Podíamos ter ficado derrotados logo ali, podíamos
ter-nos revoltado, redobrado a agressividade ou, até, termos ficado para sempre
desorganizados. Aquilo que aparentemente nos fragilizaria, foi o que nos tornou
mais fortes.
Sei, e sabemos todos, de equipas inteiras que não
teriam sobrevivido a uma baixa tão colossal como a saída do Cristiano Ronaldo,
a pouco mais de vinte minutos de jogo. O alívio que gera leveza, emoções
transbordantes e certezas crescentes é este mesmo, de sabermos tudo o que nos
podia ter acontecido por sucessivos cúmulos de azar, mas felizmente não
aconteceu. Tudo graças a uma incrível união que gerou uma incrível força. E,
claro, porque felizmente o Éder estava lá e tinha a crença de que faria o golo.
E tal como disse Pepe, «man of the match», na sua entrevista final:
«Deus só dá grandes batalhas aos grandes soldados».
A Taça é nossa e foi inteiramente merecida.
Desejada e sonhada, foi ganha com lucidez e garra, esforço e sacrifício,
inteligência e humildade. Nunca será demais sublinhar a humildade inteligente
dos jogadores e do Selecionador, aliás. A mim enche-me de orgulho esta atitude
de uns e outros, pois detestaria torcer por uma selecção que não soubesse estar
à altura dos acontecimentos. Custa sempre ver uma falta grave não assinalada,
especialmente quando arruma com um grande jogador prévia e oficialmente
proclamado como «alvo a abater». Mas custar-me-ia ainda mais se os nossos
jogadores tivessem optado por retaliar, se tivessem desatado a jogar numa
lógica «olho-por-olho» ou tivessem perdido a cabeça, pois na verdade perderam o
seu maior general na batalha mais decisiva da campanha.
Gosto de gente de coração inteligente. Nunca
ninguém nos pediu nem pedirá para sermos bons e parvos, muito pelo contrário!
Do outro lado do campo havia jogadores apostados em derrubar a qualquer preço,
mas deste lado todos se aguentaram nos embates e todos tiveram tamanho para os
adversários. Dá gosto perceber a estatura moral dos homens, quando são postos à
prova. E Ronaldo foi atingido no joelho mas não na alma. Assim como Éder, o
novo herói galáctico, também não se deixou vencer por comentários daninhos e
alcunhas feias. Ou Fernando Santos não perdeu o nervo nem deixou de defender
cada um dos seus jogadores do primeiro ao último dia. E por aí adiante, porque
cada jogador deu realmente o seu melhor e foi isso que festejamos
torrencialmente na noite de domingo, foi isso que continuamos a celebrar
massivamente durante todo o dia de ontem e é isso que mantém o nosso coração em
festa hoje.
Fernando Santos impressiona pela fortaleza de
carácter e pela convicção de aço. Lúcido e discernido, manteve a palavra até ao
fim. Livre, muito livre na sua fé, não desperdiçou nem um segundo a disparar
argumentos ou tácticas contra trincheiras inimigas. Fez o seu silêncio interior
diário de reflexão, oração e comunhão para poder focar no seu círculo (ou
perímetro, como tanto gostam de dizer os comentadores desportivos), mantendo-se
firme na aposta de multiplicar os talentos dos homens que escolheu. Assim como
o fiel jardineiro dobra os joelhos sobre a terra para a cuidar e adubar, também
Fernando Santos cultivou pacientemente nos seus rapazes a confiança, a coesão e
a união.
Presumo que mesmo os cépticos militantes e os
cínicos mais incorrigíveis sabem que nestes momentos há uma matemática
infalível: a da confiança que gera sempre mais confiança. Foi essa a lição de
Fernando Santos, o homem que sabe que o fundamental não é cada homem acreditar
em Deus, mas cair na conta de que Deus acredita em cada homem. Santos esforçou-se
por traduzir esta verdade bíblica à letra e conseguiu. Não fingiu ser Deus, mas
agiu à maneira de Deus: acreditou profunda e radicalmente em cada um dos seus
eleitos. E transformou o tempo do Europeu num tempo de oportunidades. Sem
queixas nem lamentos, sem acusações nem censuras, juntou as pedras que outros
foram atirando e colocou-as longe do caminho.
O tempo do Europeu não era apenas um tempo de
competição e rivalidades. Fernando Santos sabia isso e agiu em conformidade.
Tratava-se de trabalhar muitas outras coisas ao mesmo tempo na equipa, mas
também nos portugueses: projectar confiança, trabalhar a competência, conter os
excessos da agressividade, combater o negativismo, elevar o moral de uma nação
inteira, reforçar a união e… fazer a força. Na terminologia cristã, tão cara a
Fernando Santos, este tempo serviu para juntar pedras e fazê-las desaparecer,
pois foram lançadas pedras suficientes e este era, para ele, o tempo de nos
aproximarmos, de criarmos união e proximidade.
Numa era de excessos e provocações, num mundo de
«irracionalismo, relativismo pós-modernista e fundamentalismo religioso», para
usar as palavras de Bento XVI, na célebre conferência de Regensburg, não é
fácil ser cristão e começar um discurso final, transmitido à escala planetária,
por agradecer a Deus. Fernando Santos começou e acabou a falar de um Deus que
lhe pede para pôr os seus talentos a render ao serviço dos outros, mas também
para multiplicar os talentos dos que estão à sua volta. E deu a entender que é
a centralidade de Deus na sua vida que gera nele a urgência de fazer mais e
melhor. A sua missão foi conduzir a Selecção (e todos os portugueses!) à
vitória, mas não se esgota aqui. Fernando Santos trouxe muito mais que uma Taça
para casa. Encheu-nos de certezas sobre as nossas capacidades, fez-nos
transbordar de emoção e orgulho, mas também nos deixa agora a responsabilidade individual
de não deixarmos que outros nos derrubem. Ou pior, que nos tornem duros como
pedras por frustrações, desavenças, desilusões mútuas ou ofensas não perdoadas.
O rastilho da alegria que explodiu no domingo e
mantém o País em festa desde o fabuloso petardo de Éder, não se pode apagar.
Cabe a cada um de nós tentar manter a chama acesa, pois graças a esta vitória
milhões de portugueses espalhados pelo mundo acordam e adormecem mais felizes
e, acima de tudo, mais confiantes nas suas capacidades. E muitos milhares de
emigrantes chegam aos seus empregos mais orgulhosos da sua identidade.
No final da campanha, podemos dizer deste Fernando
o que o seu homónimo poeta escreveu na Mensagem:
Cheio de Deus, não temo o que
virá,
Pois, venha o que vier, nunca
será
Maior
do que a minha alma