João José Brandão Ferreira
Estabelecer a diferença entre uma “portaria” e uma “porta d’armas” poderá parecer a questão mais pueril, idiota ou desnecessária, que não prenderá trinta segundos de atenção a qualquer pacato cidadão, nem sequer aos mais curiosos.
Sem embargo, é sobre ela que juntaremos umas reflexões em noite de pachorrenta digestão.
Uma portaria é um substantivo comum, à vida de todos os dias. Basta dizer que a maioria dos prédios de habitação e das empresas onde trabalhamos têm uma. Portaria representa, pois, em forma variada, um artefacto movível semelhante ao que se convencionou chamar de “porta” e que permite o acesso a um qualquer espaço confinado. Normalmente é-lhe atribuído um número, curiosamente chamado, “número de polícia”. É uma designação do vulgo, por isso vulgar.
Por seu lado, o termo “Porta d’Armas”, fere-nos de imediato o ouvido; é forte e algo distinto. Provém da bruma dos tempos, é seguramente medievo, porventura da Antiguidade Clássica. Está associado a uma praça forte, um castelo, uma fortaleza. E, indubitavelmente, associada a “armas”. É um local guardado e por onde passam e estagiam Homens d’Armas.
Uma porta d’armas não precisa de número, todos a distinguem, todos a identificam.
Enfim, uma portaria é uma funcionalidade civil, uma porta d’armas é um símbolo militar.
Isto é importante? É.
Uma portaria supõe um “porteiro”; uma porta d’armas, impõe uma “sentinela”, que faz parte de uma “guarda”; uma portaria pressupõe um “pátio”, a porta d’armas implica uma “parada”; a porta d’armas tem um “hall de entrada”, uma portaria é apenas uma porta de serventia; entrar por uma portaria obriga, quanto muito, a um “bom dia” e a troca de identificação; uma porta d’armas impõe um cerimonial regulamentado; se passarmos uma portaria para ir trabalhar, pica-se o ponto; por detrás da porta d’armas cada um é responsável pelo tempo que permanece e responde ao seu superior imediato – num lado existe um horário de trabalho; no outro um horário “normal” de permanência, trabalha-se quando é preciso, descansa-se quando se pode… Atrás de uma porta d’armas existe uma cadeia de comando; quando se passa uma portaria, há uma direcção, ou apenas a nossa família.
Uma portaria transpõe-se de qualquer maneira; uma porta d’armas exige postura: militares quando fardados, obrigatoriamente de cabeça coberta; correspondem a saudações/honras e não passa pela cabeça de ninguém cruzar a “ponte levadiça” de cigarro na boca, a mascar pastilha elástica ou de alpercatas…
Uma porta d’armas carrega um passado e é herdeira de tradições e valores; que a ultrapassam e estão para além dela; uma portaria, quanto muito, interessa a alguns, é circunscrita a espaço e tempo e não se perpetua imaterialmente; uma porta d’armas, implica um comando; numa portaria não passará de uma chefia; uma porta d’armas funciona H24, 365 dias por ano, uma portaria, tem dias.
Em síntese, e para terminar, quando se transpõe uma Porta d’Armas é para se Ser, quando se passa uma portaria é para se Estar.
Não quer com isto dizer que uma portaria seja menos adequada à sua função do que uma porta d’armas, mas convenhamos que a dignidade e o grau de exigência não está ao mesmo nível. Não existe divisão ou antagonismo entre ambas, mas incorre-se numa distinção.
Onde é que Miguel Sousa Tavares (MST) cabe nesta história? Nisto:
No seu programa da SIC “Sinais de Fogo” do passado dia 12 de Abril, em que entrevistou a nóvel esperança partidária portuguesa, foi passado um curto documentário sobre a Escola Superior de Polícia, cujo objectivo era tentar perceber porque é que aquela escola teve no último concurso 45 candidatos para cada vaga, valor superior a todas as outras escolas de nível universitário do País (a Academia da Força Aérea tem cerca de 40 candidatos por vaga para pilotos, sendo o grau de exigência muito maior e havendo muitos que nem concorrem por saber não reunirem os requisitos). MST fez um elogio à PSP e à sua evolução, desde os tempos do antigamente em que ele pouco a apreciava. Falou bem, o homem, com uma excepção de monta, quando referiu que uma das razões do sucesso da polícia foi passar a ser mais “civil”, numa discreta, mas clara alusão depreciativa, ao tempo em que existiam muitos oficias do Exército a enquadrá-la. MST só é ignorante quando quer, pelo que teremos que considerar intencional a inclusão do “pormenor”. Esqueceu-se de dizer que os militares foram por várias vezes salvar a polícia de estados depauperados a que diferentes cataclismos político-sociais a reduziram e porque só há cerca de duas décadas foi criada uma escola para formar os seus quadros superiores. E, já agora, que foram os oficiais das FAs que transitaram definitivamente para a PSP, que tornaram possível a evolução que MST agora elogia e que têm também aguentado as vicissitudes que extensos erros no âmbito dos sindicatos, falta de autoridade, meios e edifício legislativo, têm causado no seio policial.
Mas se MST (e muitos como ele) quisesse ser minimamente honesto intelectualmente, bastava atentar nas diferenças entre quem presta serviço atrás de uma porta d’armas (os militares) e aqueles que se limitam a passar numa portaria (os polícias), para entender que a acção dos primeiros jamais prejudicaria o desempenho dos segundos.
Quem diria que a simples existência de uma Porta d’Armas, pudesse ter tanta importância?
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