José Ribeiro e Castro
1. São, hoje à
tarde (quinta-feira), discutidos no plenário da Assembleia da República, vários
projectos de lei sobre a questão dos feriados. Também decidi apresentar um
projecto, a título individual, que, graças ao consenso favorável dos grupos
parlamentares, também poderá ser discutido hoje e votado amanhã. A imprensa, de
uma forma geral, nomeadamente o Observador, já deu nota dos seus pontos mais
salientes.
Porém, soube que, no debate em plenário, só terei
direito a usar da palavra por 1 minuto para o discutir e defender. A
apresentação dos outros disporá de 4 minutos cada um. As regras são assim – são
para cumprir.
Isso alterou, porém, a ideia quanto ao discurso que
tencionava fazer, focado na questão do 1.º de Dezembro, que é o feriado
nacional que mais me tem ocupado. Não é essa a única questão do meu projecto;
mas tinha pensado actualizar, perante o plenário da Assembleia, um texto que
escrevi há quase três anos e que me ajudou a aprender ao correr da pena, à
medida que o escrevia. Teria gostado de o partilhar directamente, de viva voz,
com os meus colegas parlamentares.
Não o podendo fazer, por falta de tempo de palavra,
antecipo-o aqui, junto com os leitores do Observador, admitindo que ao menos
alguns deputados o possam ler. E sorrir. E ponderar.
2. Na
reavaliação desta questão dos feriados que tanta tinta fez correr, centro-me na
reposição do 1.º de Dezembro, o mais alto dos feriados nacionais, porque
celebra o valor mais alto e essencial de Portugal: a independência e a
liberdade nacionais.
Quando tudo isto começou, há três anos, cansei-me
de ouvir pessoas – creio que minoritárias, mas influentes e poderosas – a
sustentar que «o 1.º de Dezembro não tem importância de maior», que «não tem
grande valor», que «não representa nada de fundamental», que «podemos bem
pensar sem ele». E comecei a escrever um texto ligeiro, quase por brincadeira,
apenas a imaginar o que seríamos e o que seríamos, se não fosse o 1.º de
Dezembro. É isso que escrevi que vos quero dizer, neste tempo em que decidimos
se vamos, ou não vamos, chumbar uma vez mais, pela terceira ou quarta vez
consecutiva, o nosso 1.º de Dezembro.
3. Este texto
não seria escrito se não tivesse havido 1.º de Dezembro. Ou seria escrito em
Castelhano. Não seria dito aqui, porque não estaríamos aqui. Porventura este
«aqui» nem existiria, mas qualquer outra instituição.
Não haveria Língua Portuguesa como a conhecemos
hoje – teríamos sido sujeitos a longa aculturação espanhola, somando mais 370
anos de usurpação aos sessenta de domínio dos Filipes.
Não haveria a querela do Acordo Ortográfico –
porque não haveria o Português, nem o problema da regulação do uso universal da
nossa língua. Estaríamos hoje com os galegos, esbracejando pela cidadania
linguística.
Não haveria Rui Reininho e a sua «Pronúncia do
Norte», nem Pedro Abrunhosa e o seu «Momento» ou Jorge Palma e «Encosta-te a
Mim», o «Ó gente da minha terra» de Mariza, o «Fado Tropical» de Chico Buarque.
Fernando Pessoa não seria o que é, nem a
«Mensagem». Camões e «Os Lusíadas» seriam talvez desconhecidos, literatura
esquecida ou clandestina.
Veríamos filmes dobrados – em Castelhano.
O Fado não seria Património Imaterial da
Humanidade. Não existiria sequer o fado, antes outra coisa qualquer de
sonoridade espanhola.
Já não teríamos declarado o sobreiro árvore
nacional. Não seríamos o maior produtor mundial de cortiça – seria Espanha.
O nosso porco preto alentejano seria porco ibérico
para toda a vida, sem apelo nem agravo.
Teríamos centrais nucleares na bacia do Tejo – e
talvez também na do Douro –, não só do lado de lá, mas do lado de cá.
Não haveria lado de cá e lado de lá.
A política espanhola de transvases, afectando os
nossos rios, estaria aí em pleno.
Não haveria D. João IV, nem D. João V e o seu
Convento de Mafra, nem D. João VI e a originalidade fundadora da corte no
Brasil.
Não haveria o próprio Brasil. Em lugar dessa
criação do génio e do acaso português, teriam surgido outras coisas, fruto de
colonizações retalhadas de holandeses, franceses, espanhóis e ex-portugueses
falando espanhol. Não haveria o samba e a bossa nova.
Não haveria Angola, nem Moçambique. O espaço de
Moçambique estaria repartido por países anglófonos; e no de Angola seria outro
retalho qualquer de colonizações holandesa, alemã, francófona, talvez
espanhola. São Tomé e Príncipe estaria na Guiné Equatorial, como Fernando Pó e
Ano Bom. A Guiné-Bissau moraria na francofonia; Cabo Verde provavelmente
também. Não haveria a morna, nem a coladeira, talvez o zouk de Guadalupe e
Martinica. Timor seria holandês e, portanto, indonésio. Macau teria logo
acabado, pouco depois de ser.
Não teria havido a guerra de África – não teria
havido Ultramar ou colónias. Não existiria a CPLP. Nem haveria sequer o Fórum
Ibero-Americano, antes qualquer coisa hispano-americana.
Não haveria o navio-escola «Sagres». O nosso mar
português não seria.
Não teríamos o Eusébio. Não teríamos festejado o
louco terceiro lugar do Mundial de Inglaterra 1966, mas alguns teriam celebrado
a Espanha campeã do Mundo na África do Sul 2010. O Benfica e o Porto
provavelmente nunca teriam sido campeões europeus. A Académica nunca teria
ganho a Taça de Portugal – não haveria Taça de Portugal. Com sorte, Benfica,
Porto, Sporting, outro, poderiam ter ganho a Copa Generalíssimo ou a Taça do
Rei.
Não haveria Cardeal Patriarca de Lisboa, título do
século XVIII. Não haveria um só cardeal português no Consistório de Roma. Não
existiria a Conferência Episcopal – os nossos bispos estariam na conferência
espanhola.
Teria havido o terramoto de 1755, mas não o Marquês
de Pombal, nem a baixa pombalina. As invasões francesas teriam sido uma
passeata com cicerone espanhol. Não haveria a questão de Olivença – seríamos
todos nós Olivença.
Teríamos tido na mesma as lutas liberais, mas não
entre D. Pedro e D. Miguel, antes envolvidos nas longas guerras do carlismo.
Não teríamos tido nem Afonso Costa, nem Salazar, mas dois breves episódios
republicanos, um fugaz no século XIX, outro nos anos '30 do século XX, seguido
da guerra. Teríamos tido a Guerra Civil, seguida do Generalíssimo e da
restauração monárquica com rei espanhol. Teríamos sofrido o terrorismo da
ETA.
Não haveria Cavaco Silva, presidente; nem, antes,
Jorge Sampaio, Mário Soares, ou Ramalho Eanes. Seria D. Juan Carlos; e, hoje,
Filipe VI de Espanha – talvez Filipe V de Portugal, se permanecesse a
formalidade dos reinos separados e da monarquia dual, o que é duvidoso.
Não teríamos Passos Coelho, nem Paulo Portas, antes
Mariano Rajoy e Garcia-Margallo ou Soraya Sáenz de Santamaría.
Não teríamos Ministério dos Negócios Estrangeiros –
seríamos somente um negócio de estrangeiros.
Não teríamos Assembleia da República, apenas as
Cortes Generales.