sexta-feira, 30 de outubro de 2015
Um erro sem desculpa
Vasco Pulido Valente, Público, 30 de Outubro de 2015
Se por causa do Governo de António Costa as condições gerais da economia piorarem, agravando a pobreza da sociedade e do Estado, o PC perderá o que tem.
Já muito mais tarde, por volta de 1990, conheci pessoas que tinham trabalhado com Álvaro Cunhal durante o PREC e durante os primeiros governos constitucionais. De tudo o que me contaram, o que mais me espantou foi o facto de Cunhal persistir em acreditar que o regime estabelecido era (para usar o calão da seita) uma «democracia avançada» e não uma «democracia burguesa» como em toda a Europa. Ao que parece, Álvaro Cunhal fundava esta inesperada ideia na Constituição, que no preâmbulo falava em «socialismo» e dava por adquiridas as leis laborais de 1975, a reforma agrária, as nacionalizações «irreversíveis» e outras maravilhas. Como considerava a Constituição eterna e a sociedade imutável, não pensou na fragilidade do equilíbrio em que assentava a sua consoladora visão das coisas.
Os desgostos não tardariam a chegar. Mas, pensando bem, para quem conhecia a história da ortodoxia comunista desde 1917 as fantasias de um pequeno chefe num país distante tinham, e continuavam a ter, dezenas de precedentes. Para compreender Jerónimo de Sousa, é preciso compreender isto. O PCP não está condenado pela «austeridade» do Governo de Passos Coelho. O PCP está condenado pela sociedade em que hoje vai vivendo, reduzido a uma velha área de influência geográfica, constantemente ameaçada, e aos sindicatos dos transportes, de que o Estado, contra a razão e o bom senso, ainda é proprietário. A aliança de Jerónimo de Sousa com o PS é uma aliança defensiva, um episódio já obscuro da «luta pelas conquistas de Abril», condenado tarde ou cedo a falhar como sempre sucedeu.
O PC resolveu pagar ao PS com o seu apoio (muito condicionado, de resto) a revogação das leis laborais da coligação, a permanência dos transportes na esfera pública e algum alívio transitório para aqueles a quem Jerónimo quase deixou de chamar «trabalhadores» e trata agora por um eufemismo burguês, particularmente equívoco: «Os mais frágeis». Volta assim à política de cegueira e de imobilismo que o distinguiu desde Novembro de 1975. Só que desta vez corre um risco muito mais grave. Se por causa do Governo de António Costa as condições gerais da economia piorarem, agravando a pobreza da sociedade e do Estado, o PC perderá o que tem; os benefícios que o PS lhe der; e também na enxurrada o persistente respeito dos portugueses pela sua fidelidade e si próprio: um erro sem desculpa.
quarta-feira, 28 de outubro de 2015
Quem tem medo de eleições?
Rui Ramos, Observador, 27 de Outubro de 2015
As eleições do dia 4 geraram uma situação em que quem não for para o governo, virá para a rua. Só novas eleições podem evitar que questões de «legitimidade» envenenem a vida pública portuguesa.
As eleições de 4 de Outubro geraram uma situação em que, como já toda a gente percebeu, quem não for para o governo, virá para a rua contestar a «legitimidade» de quem fique a governar.
Imaginemos que o presidente da república, uma vez o governo de Pedro Passos Coelho chumbado no parlamento, decide mantê-lo em gestão. A frente PCP-BE-Costa declarar-se-ia imediatamente vítima de uma exclusão «ilegítima». Teríamos em pouco tempo as camionetas da CGTP a encher o Terreiro do Paço de fúria contra a ditadura presidencial e contra políticas rejeitadas por 60% do eleitorado.
Imaginemos, em vez disso, que o presidente dá posse a um governo minoritário de António Costa, sustentado pelo PCP e pelo BE. A coligação PSD-CDS anunciaria logo ter sido roubada da sua vitória eleitoral. Não lhe seria difícil inspirar indignação contra o governo «ilegítimo» de uma coligação de derrotados, e suscitar protestos contra um primeiro-ministro rejeitado por 68% do eleitorado.
A dramatização é inevitável, porque o sistema político português mudou radicalmente: pela primeira vez, o líder de um partido poderá ser primeiro-ministro sem ter sido o mais votado; pela primeira vez, o PCP e os neo-comunistas do BE poderão participar na governação. Mas as últimas eleições ainda foram disputadas segundo as regras e as convenções antigas. Será por isso possível a um ou a outro lado contestar a «legitimidade» do resultado político das eleições, seja esse resultado o governo de Passos ou o de Costa: uns invocarão as regras antigas, outros afirmarão a existência de regras novas.
Não sendo possível voltar atrás, só há um remédio: consagrar eleitoralmente as novas regras e convenções, isto é, disputar o mais depressa possível eleições em que candidatos e eleitores estejam à partida cientes de que governará o partido que congregar mais apoio parlamentar, mesmo que, por hipótese, seja o menos votado, e que um voto no PS já não é um voto no extinto «arco-da-governação», mas numa «maioria de esquerda». Só novas eleições podem evitar as questões de «legitimidade» que de outro modo envenenarão a vida pública portuguesa nos próximos anos.
Aceite a solução eleitoral, há uma primeira dificuldade: que fazer entre a eventual queda do governo de Passos Coelho e a data mais próxima para novas eleições, isto é, entre Novembro de 2015 e Junho de 2016? Manter o governo de Passos Coelho em gestão ou nomear António Costa para um governo temporário não seriam boas opções: qualquer delas provocaria apenas a mobilização dos excluídos, para além das dificuldades associadas a um regime de gestão no primeiro caso. Um governo de iniciativa presidencial, que seria a outra possibilidade, não parece entusiasmar nem o próprio presidente.
Por tudo isso, há que encarar outro tipo de solução governativa, e essa pode ser a de um governo de transição que resultasse de um pacto entre os partidos parlamentares, com vista a garantir a governação até às próximas eleições. A iniciativa caberia aos partidos, e seria depois sancionada pelo presidente da república. Esse governo continuaria a responder perante o parlamento e o país. Não corresponderia a nenhuma «suspensão da democracia», mas apenas à necessidade de assegurar uma governação eficaz e imparcial num período entre eleições. Teria um prazo definido e um mandato que o habilitasse a corresponder a todas as urgências decorrentes da situação financeira e dos compromissos internacionais (os quais são agora aceites por todos os partidos, a crer no que é dito pelos negociadores da «maioria de esquerda»). Mas limitar-se-ia a si próprio quanto a outras decisões. Não seria um governo de gestão, mas um governo que, com plenos poderes, os exerceria com prudência e contenção.
Para protagonizar esta governação, os partidos poderiam recorrer a personalidades públicas com um estatuto de tipo «senatorial», distantes das querelas partidárias: por exemplo, pessoas com o perfil de Guilherme de Oliveira Martins, Teodora Cardoso, Eduardo Marçal Grilo, João Lobo Antunes, Emílio Rui Vilar, Joaquim Gomes Canotilho, Eduardo Catroga, Luís Campos e Cunha, João Salgueiro, ou Artur Santos Silva. É uma fórmula inédita, mas, como dizia Brecht: quando há obstáculos, a linha torta pode ser o caminho mais curto entre dois pontos.
Esta solução teria outra vantagem: prevenir uma eventual pressão partidária para transformar as eleições presidenciais de Janeiro na segunda volta das legislativas de 4 de Outubro. Com um acordo entre os partidos para novas eleições e a governação assegurada deste modo para um período de transição, o novo presidente da república teria certamente em conta o consenso nacional, e, logo que possível, dissolveria a Assembleia da República e marcaria eleições para a data mais próxima. Aos cidadãos caberia então fazer uma escolha decisiva, entre a coligação PSD-CDS e a frente PCP-BE-Costa. Seria a ocasião para o país resolver de uma vez por todas se pretende manter as políticas de defesa do crédito público e continuação no euro, ou seguir por outro caminho. Ninguém que esteja certo de ter o país consigo deve ter medo de eleições.
segunda-feira, 26 de outubro de 2015
Até quando Catilina?
Helena Matos, Observador, 25 de Outubro de 2015
Os socialistas calaram-se face à forma inqualificável como os dirigentes reagiram ao caso Casa Pia. Depois calaram-se face aos desmandos de Sócrates. E agora vão calar-se perante a estratégia de Costa
Ferro Rodrigues, contra os usos e os costumes da democracia, torna-se presidente da Assembleia da República.
José Sócrates apresenta-se numa conferência como se fosse primeiro-ministro e compara-se a Luaty Beirão.
António Costa prepara-se para fazer um acordo com o PCP e o BE, defende que tal corresponde «a deitar abaixo o resto do muro de Berlim» e declara que «os socialistas nenhuma lição têm a receber do professor Aníbal Cavaco Silva».
O PS considera que a indigitação de Passos «faz o país perder tempo» e promete construir uma «muralha de aço» nos próximos dias.
*****
Não, não é um manicómio em autogestão. É apenas um país a entrar no modo de funcionamento do populismo revolucionário. Vivermos esta degradação do regime tornou-se inevitável desde que António Costa percebeu que assegurava a sua sobrevivência política caso tirasse o PS do arco da governação e o colocasse numa frente popular.
Desde esse momento o país mudou e ficou condenado a mudar muito mais. Não falo da dívida, dos impostos, do crescimento económico ou do desemprego. Falo de algo muito mais profundo e determinante. Falo de valores, de moral, de bom senso e de civilidade. O espírito de frente popular é incompatível com tudo isso. Ou mais concretamente tem uma visão instrumental de tudo isso.
Tornar aceitáveis os procedimentos mais abstrusos, os comportamentos mais questionáveis e as opções mais contraditórias é a mecânica quotidiana dos chamados processos revolucionários: o que hoje é mau amanhã é bom. Tudo é urgente e tudo pode logo ser esquecido. O sentido de ridículo desaparece. O de decência também.
Os países partem-se em dois, o que era habitual torna-se de repente uma excentricidade ou um vício: o presidente da Assembleia da República era do partido vencedor das eleições? Pois era. Agora deixou de ser. Até agora convidava-se a formar governo o líder do partido mais votado. De agora em diante ou quando a frente popular achar conveniente, esse procedimento torna-se desnecessário, inútil, uma perda de tempo, um formalismo… Se amanhã lhes convier voltar ao que estava instituído arrancarão as vestes de indignação com a simples hipótese de alteração das regras. Se algum ingénuo lhes lembrar que foram precisamente eles que as alteraram imediatamente será acusado de estar sempre a falar do passado, de ser um ressentido, de não querer discutir o presente…
Que as pessoas que agora defendem este modo de proceder tenham dito precisamente o contrário até há duas semanas não interessa nada porque a primeira regra a fixar quando se passa a viver sob o regime das frentes é que os procedimentos não são baseados na legitimidade mas sim na capacidade de os apresentar como justificáveis naquele preciso momento e para aquele preciso momento. No frentismo a justificação instantânea cumpre o papel dos valores.
E é no frentismo que nós já estamos a viver. E porque o estamos a viver não reagimos à megalomania de Catarina Martins que anda há duas semanas a comportar-se como se fosse presidente da República, chefe de Governo e líder do PS (só o PCP escapou aos anúncios urbi et orbi da líder do BE) e ao papel de «faz de conta que sou negociador» representado por António Costa: à direita não negociou porque não quis, à esquerda não negociou nem negoceia porque já não pode (Costa precisa muito mais do PCP e do BE do que estes dele.) E ficamos em estado de anomia perante a patética performance representada por Sócrates que ontem se via Mandela, hoje Luaty e amanhã, quem sabe, de volta à política (até quando se podem apresentar candidaturas à Presidência da República?).
Como é claro tudo isto vem acompanhado de múltiplas explicações reconfortantes que cumprem o papel de apaziguar as almas cúmplices.
Na verdade estas derivas populistas só acontecem porque para lá daqueles que as apoiam convictamente temos aquela simpática mole de gente que gosta de dizer (baixinho e com muitas histórias dos bastidores) que está contra mas que tem de se ter cuidado para não fazer o jogo de A ou B.
A última destas narrativas diz-nos que no PS teria havido um sobressalto cívico caso a intervenção de Cavaco Silva não tivesse sido tão dura. Reza ainda a historieta que ao ouvirem Cavaco Silva os críticos da actual liderança do PS resolveram de imediato apoiar a eleição de Ferro Rodrigues e a estratégia de Costa.
Ah Catilinas do nosso tempo, até quando abusarão não da nossa paciência, que estamos condenados a tê-la, mas sim dessa mania de fazer dos outros parvos?
Comecemos pelo óbvio: que convicções são essas, refiro-me às dos críticos de Costa, que se desvanecem mal ouvem o PR dizer o que todo o país sabe – existe a possibilidade de chegarem ao governo partidos que votaram sempre contra os acordos básicos da democracia portuguesa? E não votaram secretamente: orgulham-se disso e consta dos seus programas.
O discurso de Cavaco só chocou quem precisa de se mostrar chocado para manter a farsa das dúvidas e dos críticos dentro do PS. Infelizmente o PS tornou-se um partido sem dúvidas e de críticos calados muito antes de Costa ter chegado. Os socialistas calaram-se perante a forma inqualificável como os seus dirigentes reagiram ao processo Casa Pia. Depois calaram-se perante os desmandos de Sócrates. E agora vão calar-se perante a estratégia de Costa.
Em todos estes momentos foram arranjando histórias, justificações e teorias mais ou menos cabalísticas não tanto para explicar o sucedido mas sobretudo o seu silêncio perante os factos. Muitos deles sem explicação e alguns sem perdão.
Mas em todos esses momentos os socialistas calaram e pactuaram. Porque não havia direito de o juiz A fazer o que fez, de o jornal B escrever o que escreveu, de o Presidente dizer o que disse… E vão continuar a pactuar e a calar. No fim, como aconteceu com a descolonização sobre a qual os socialistas nunca fizeram uma reflexão sobre as suas responsabilidades, transferindo as culpas para Cunhal, Salazar e Caetano, tudo falhou e vai falhar por culpa dos outros. Quando esta frente se desfizer a culpa vai ser de Cavaco que não estendeu a mão ao PS, de Passos que não quis negociar, do PCP que não cedeu, do BE que não ajudou…
Quando vai acabar? Não sei. Mas tenho uma certeza a esse respeito: todos estes truques que PS+PCP+BE estão a usar para chegar ao poder serão exponenciados na hora de o deixar.
Para lá desta certeza tenho também a esperança de que em França alguém seja capaz de fazer um discurso como o de Cavaco caso os líderes do centro se sintam tentados a aliar-se a Marine Le Pen.
E por fim tenho uma sugestão: leiam os clássicos. Cícero, por exemplo na sua invectiva a Catilina.
Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo ainda há-de zombar de nós essa tua loucura? A que extremos se há-de precipitar a tua audácia sem freio?
Nem a guarda do Palatino, nem a ronda nocturna da cidade, nem os temores do povo, nem a afluência de todos os homens de bem, nem este local tão bem protegido para a reunião do Senado, nem o olhar e o aspecto destes senadores, nada disto conseguiu perturbar-te? Não sentes que os teus planos estão à vista de todos? Não vês que a tua conspiração a têm já dominada todos estes que a conhecem?
Quem, de entre nós, pensas tu que ignora o que fizeste na noite passada e na precedente, em que local estiveste, a quem convocaste, que deliberações foram as tuas?
Oh tempos, oh costumes!
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