António Marques Bessa
Um observador de Marte das realidades portugueses já deveria ter verificado que não há um caso Face Oculta. Todo o País deslizou pouco a pouco e depois muito depressa para o que ficou conhecido como Face Oculta, mas que é verdadeiramente um caso de polícia puro e duro. Mas para uma polícia a sério.
No bloco de gelo à deriva, não a tal jangada de pedra, só se tem falado da parte emersa. Ou seja, do caso Casa Pia, do caso Carolina Salgado, do caso voos da Cia, do caso Freeport, do caso da licenciatura de Sócrates, do caso Bragaparques, do caso Banco Privado de Negócios, para os quais a Justiça deveria ser ligeira, cega, e dura. No entanto, é demorada, quase a deslizar sobre pasta elástica, numa inextricável rede de direitos incompreensível nas suas tolerâncias e ôcos. Nos Estados Unidos, um poder de poderes, importantes indiciados em crimes financeiros como foi o caso de Madoff, o ricalhaço viu-se condenado rapidamente a cem anos de prisão, os seus bens e de sua mulher foram confiscados e postos em leilão. Chama-se a isso tratar dos assuntos e não os deixar envoltos em fumo gazoso, para dez anos depois vir dizer, de mansinho, que o assunto prescreveu, que não há provas ou que as provas não provam nada. Maddof deveria ter feito a burla em Portugal e estaria de férias nas Caraíbas a gozar da sua riqueza roubada à semelhança do que faz em Londres o suspeito chefe benfiquista Vale Azevedo.
Toda a gente sabe que não há ordenados em Portugal que possam permitir a qualquer um comprar um Mustang, casas de sonho, um iate de Luxo, quintas extensas. Se os grandes ricos se estão a multiplicar como parecem apontar os índices da indústria de luxo, não é certamente por Portugal estar a enriquecer. Como o País empobrece assustadoramente, é na crise que prospera a fauna devorista que não tem uma ética de meios. Trata de se enriquecer de qualquer maneira, sejam os instrumentos desse abusivo enriquecimento bons ou maus, atirando assim para o cesto do lixo aquele famoso desígnio muito publicitado que os serviços públicos andam a divulgar: «as boas práticas». As boas práticas cobrem as más práticas. E como os exemplos vêm de cima, que se espera que o povo miúdo faça?
Traficar e enganar, mentir e prosperar.
O País indubitavelmente está na face oculta da lua: desde empresários a sindicatos, desde o uso de dinheiros comunitários a utilização de dinheiros camarários, do futebol aos subsídios para as coisas que não se fazem, do subsídio de desemprego ao ululante subsídio de inserção social. E nisto o sucateiro dá-nos um exemplo em tempo real do que se passa. Tudo está comprometido e uma operação mãos limpas seria impossível de pensar só para colocar as despesas dos ministérios numa ordem racional.
A lei que nos rege é propositadamente preparada para dar estes resultados e ela não é a responsável pela anarquia que se segue. Os responsáveis são os hábeis legisladores que quiseram dar todas as oportunidades e mais uma aos ladrões, aos grandes gatunos, aos barões da sucata, em que o país se tornou porque todos ficam bem na fotografia do polvo institucional. Eles têm nomes e fazem o favor de vir defender a lei que já viram não proteger os direitos dos portugueses comuns, mas que serve para assaltar sem risco esses mesmos portugueses comuns, de preferência fracos e inermes, velhos e desarmados. Decidiram que é bom ter um rebanho e também já estudaram as datas da tosquia.
O SISTEMA DA MENTIRA
O pior fenómeno na sociedade portuguesa é a mentira. Todos mentem convincentemente e depois esquecem-se do que disseram. É um mal que afecta o crescimento económico, os desfalques, os rendimentos das grandes figuras de pau santo, as declarações de conluios nas Universidades, a administração nos hospitais, a dívida do Estado, o desemprego, a liberdade na comunicação social, o controle dos indivíduos na sua esfera privada, a produção efectiva do país, e, de uma forma geral, tudo o que diz respeito aos super-ricos e à sua deslocalização. Na realidade, de que valeria ser super-rico, se depois se tinha de tratar nos hospitais do povo, mandar os filhos para a escola do povo, comer com o povo, falar com o povo e pagar impostos como o povo. Os passarões não são galinhas de aviário. Perguntaram a Sócrates um dia em que ele repousava junto de um quinta no mar Egeu, rodeado dos seus escravos:
--- Diz-me. Ó Sócrates, que fazem os peixes grandes no mar?
Sócrates mediu o seu estudante distraidamente e deu-lhe a resposta que parecia certeira como um tiro de arco:
--- O mesmo que fazem os homens na terra. Os maiores comem os mais pequenos.
Poderemos ficar espantados e até um pouco tontos com a brutalidade do filósofo grego, mas ele só enunciava o resultado de uma observação repetida a que ele se tinha entregue desde que se entregara à alta reflexão política e filosófica.
Nada mudou de então para cá. Mudaram os aspectos de como as coisas se realizam, mas não mudaram as categorias de Aristóteles nem a aplicabilidade das observações socráticas anotadas por Platão, nos anos de ouro daquela sociedade influente.
Penso que é preferível uma verdade pungente a mil mentiras dulcificantes, calmantes, amortecedoras, vaticinantes de futuros melhores. Os realistas das organizações mundiais já declararam que os portugueses até 2017 vão conhecer uma descida do seu nível de vida. Nada de estranhar: não é o que andava a proclamar Medina Carreira como profeta há anos? O desemprego e o encerramento de fábricas não se multiplica?
Até quando vão os senhores do poder, engravatados, bem comidos, bem viajados, à nossa custa, com brutos carros, um exército de motoristas e secretárias, aguentar o País e os credores com mentiras? Há um limite para a mentira razoável, mas já não há mentiras que sustenham um país a fazer de conta.
Sentir-nos-íamos muito bem se pudéssemos concordar com tudo o que diz, no seu optimismo saxónico, Álvaro Santos Pereira (Os Mitos da Economia Portuguesa), que acredita num sistema de incentivos para a mudança. Mas quem decreta os incentivos bons e adequados? Não serão os mesmos autores deste pântano de leis que nos fazem reféns de um país nas nuvens? Era óptimo que fôssemos como Alice, para passar para o outro lado do espelho.