domingo, 7 de fevereiro de 2010

Dignidade do Primeiro-Ministro

José António Saraiva, Sol, 5 de Fevereiro de 2010



Entedamo-nos: o PS deve perceber que José Sócrates está à beira de deixar de ter condições para ser primeiro-ministro.

Escrevi por diversas vezes que ele tem muito jeito para o lugar.

Mas há uma linha que não pode ser ultrapassada: a que tem que ver com o respeito pela dignidade do cargo.

Ora Sócrates já a violou.

Ainda esta semana, ao atacar um jornalista em voz alta num local público, numa conversa chocarreira à hora do almoço com dois dos seus ministros, Sócrates mostrou que lhe faltam algumas condições essenciais para exercer o lugar que ocupa.

Um chefe do Governo não pode comportar-se assim.

Criticou-se o Presidente da República por alegadas diligências feitas por um seu assessor para publicar uma notícia num jornal.

Um ministro (Manuel Pinho) demitiu-se por, com alguma ingenuidade, fazer uns chifres para comentar o discurso de um opositor no Parlamento.

Outro ministro (Carlos Borrego) foi demitido há uns anos por contar uma anedota de mau gosto numa estação de rádio.

Pedro Santana Lopes caiu em desgraça após críticas do seu ministro Rui Gomes da Silva aos comentários de Marcelo Rebelo de Sousa na TVI.

Ora Sócrates já fez muito pior do que tudo isto junto – e continua no Governo.

Atacou publicamente a TVI, o Jornal Nacional de sexta-feira e o director do Público – e, na sequência dessas críticas, verificar-se-ia a saída do director-geral da TVI, José Eduardo Moniz, o fim do Jornal Nacional e o afastamento da sua apresentadora, Manuela Moura Guedes, e a substituição de José Manuel Fernandes na direcção do Público.

Foi apanhado nas escutas do processo ‘Face Oculta’, discutindo com alguns dos seus homens de mão o modo de atingir aqueles objectivos.

E esses homens de mão – Armando Vara, Paulo Penedos, Rui Pedro Soares, – foram apanhados em escabrosos diálogos onde descaradamente discutiam tudo: os afastamentos de Moniz e Moura Guedes, o silenciamento do Público, o condicionamento do Correio da Manhã, a instrumentalização do grupo Controlinvest, e ainda a troca de favores com jornalistas, cujos nomes não tinham pejo em enumerar.

E isto – como o SOL descreve hoje em pormenor – contava com o envolvimento e a conivência de empresas públicas, que deveriam servir o bem comum e eram instrumentalizadas para participar neste ‘esquema’.

O poder bateu no fundo.

O primeiro-ministro já mostrou a sua face oculta e a sua entourage revela uma baixeza aterradora.

Depois dos casos da Universidade Independente, do Freeport, das escutas de Aveiro, das pressões de Lopes da Mota, ainda há quem tenha dúvidas?

José Sócrates tem jeito para o cargo – volto a dizê-lo.

Mas tem um problema de carácter que já não consegue esconder e que começa a envergonhar o lugar.

Não acredito que no PS todas as pessoas aprovem os seus métodos.

Não acredito que no PS não haja gente séria que comece a sentir-se incomodada.

Não acredito que sejam todos como Lello, Lacão ou Santos Silva – que, com frases apatetadas e grande descaramento, tentam esconder as evidências.

Mário Soares, que lutou na rua contra a ocupação do República, não se sentirá mal com a limpeza feita na TVI, com o uso de empresas do Estado para fazer golpes nos media, com os ataques a directores de jornais, com lamentáveis conversas sobre jornalistas feitas em voz alta em restaurantes?

Por muito que Soares veja em Sócrates um aliado na luta contra o PSD e Cavaco, não achará que ele começa a ser um aliado incómodo?

Soares gostaria de se sentar à mesa com Vara, com Penedos, com Rui Pedro Soares, com Silva Pereira, com Santos Silva, para discutirem a próxima golpada política e o próximo alvo da cruzada contra a imprensa que não se acobarda perante o poder?

Não acredito.

José Sócrates tem jeito para o cargo.

Mas está à vista de todos que a dignidade do cargo já convive muito mal com ele.


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