Pedro Vaz Patto
O Conselho Nacional
de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) emitiu parecer sobre as propostas de
alteração à lei da procriação medicamente assistida. Nele se afirma que não há uma justificação
eticamente válida para negar o acesso a essas técnicas a pessoas sós ou que
vivam em união homossexual (sobretudo se o fazem com os seus próprios
recursos). E nele se aceita a maternidade de substituição (aí designada por
«gestação de substituição»), sob um conjunto de condições tendentes a eliminar
ou reduzir os seus possíveis malefícios.
Invoca-se o direito
à parentalidade de quaisquer candidatos, sem discriminação, e alega-se que não
se justifica privilegiar uma forma de família em relação a outras e que o risco
de instrumentalização do filho não depende do facto de os progenitores serem,
ou não, um casal heterossexual.
Contra esta tese,
há, porém, que invocar a primazia do bem do filho sobre as pretensões dos
candidatos. De outro modo, o filho seria instrumentalizado como objecto de um
direito que se reivindica (não há um «direito ao filho»). E o bem do filho
exige, por um lado, que ele seja fruto de uma relação de amor, não de uma
afirmação individual. E exige que tenha um pai e uma mãe (cada um deles único e
os dois complementares), não só um pai, só uma mãe, dois pais ou duas mães.
Quanto à «gestação
de substituição», o parecer reflecte o propósito (louvável) de acautelar uma
série ampla de riscos que essa prática tem suscitado nos países onde foi
legalizada. Um propósito que, pelo contrário, os proponentes das alterações em
discussão parlamentar têm descurado. Mas as soluções indicadas (como outras que
poderiam ser alvitradas) serão sempre insatisfatórias e não eliminam esses
riscos, que só a efectiva proibição dessa prática elimina. Mesmo com todas
essas (ou outras) cautelas, não deixamos de estar perante uma
instrumentalização da criança que nasce e da mulher gestante. A esta continuará
a ser sempre imposta por contrato a obrigação de abandonar o ser que acolheu
dentro de si e com quem partilhou aquela que é talvez a experiência mais
íntima, intensa e marcante da vida de uma mulher.
Indica o parecer que
à mulher gestante deve ser reconhecida a faculdade de mudar de ideias e assumir
a maternidade até ao início do parto. E porque não logo a seguir, ou enquanto
amamenta (uma questão – a de saber quem amamenta - que o parecer também indica
como necessário objecto do contrato)? E, se não o fizer, fica privada do
direito de visitar a criança no futuro? E, nesse caso, em que a mulher gestante
muda de ideias e assume a maternidade, ficam os pais genéticos privados de
qualquer direito, sendo eles pais genéticos?. Quem será, nesse caso, o pai da
criança (se é que o tem)? Mudando de ideias, a mulher fica obrigado a
indemnizar os pais genéticos (qual o sentido da sua vinculação)?
Indica, por outro
lado, o parecer que a mãe gestante deve ser saudável e o contrato deve conter
disposições para o caso de malformação ou doença fetal. Mas em que sentido
devem ser essas disposições (obrigação de abortar, possibilidade de o casal
beneficiário se desvincular e abandonar a criança)? Se a mãe gestante não for,
afinal, saudável, ou vier a revelar-se uma sua doença durante a gravidez, que
responsabilidade tem perante o casal beneficiário? Este pode, por isso,
desvincular-se e abandonar a criança?
Pretende o parecer
que seja garantida a avaliação da motivação altruísta da mãe gestante e a
impossibilidade de subordinação económica desta em relação ao casal
beneficiário. Mas a realidade é o que é e o direito não pode ilusoriamente
pretender modificá-la: só o desespero de graves carências económicas leva
mulheres a sujeitar-se a tão traumatizante experiência (é assim na Índia e em
muitos países). De forma oculta ou indirecta, as contrapartidas económicas
hão-de verificar-se. E as pressões que tal situação de carência suscita tornam
vãs quaisquer cautelas e garantias jurídicas. Com tais pressões, a mulher
gestante pode acabar, na prática, por sujeitar-se àquilo que o parecer pretende
afastar (como a imposição de regras de conduta durante a gravidez pelo casal
beneficiário).
Talvez só a ligação
familiar entre a mãe gestante e o casal beneficiário possa garantir a motivação
altruísta daquela. Mas os problemas que essa ligação acarreta (porque muito
mais difícil será que a mãe gestante se desligue da criança e mais fácil e mais
complexa a possível «concorrência» entre as duas «mães») tornam-na
desaconselhável a vários títulos.
Todos estes riscos
são inelimináveis se a prática não for proibida. Nenhuma das possíveis
alternativas para as situações indicadas é isenta de malefícios e quase todas
têm uma faceta chocante. É assim porque na «maternidade de substituição»
(«barriga de aluguer», «gestação de substituição» –chame-se o que se quiser),
com todas as possíveis regulações jurídicas, a criança nunca deixa de ser
tratada como um objecto de um contracto (uma mercadoria) e a gestação como uma
qualquer prestação de serviços (como se a mulher gestante fosse uma máquina
incubadora).
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