Manuel Villaverde Cabral, Observador
Não esqueçamos que este tribunal pretensamente justiceiro é o mesmo que legitimou a trapaça dos deputados e permitiu que os dinossauros das autarquias se candidatassem na câmara ao lado...
Aquilo que se tem passado nas últimas semanas com o Tribunal Constitucional constitui um caso extremo do pior que há em Portugal no plano institucional, a saber, o sistema judicial. Com efeito, se os engenheiros e os médicos funcionassem como os juízes não havia ponte que não viesse abaixo nem doente que se salvasse. Não se trata apenas de mais um exemplo da pretensa independência e irresponsabilidade do chamado «terceiro poder». O comportamento da maioria dos membros do TC está para além do enviesamento político ou da febre ideológica. O próprio constitucionalista Vital Moreira o sugere. Trata-se, lamentavelmente, do caso mais exacerbado de corporativismo que o país sofre.
A maioria dos juízes do TC – altos funcionários públicos com uma remuneração-base de mais de 6 000€ e com a garantia da correspondente pensão ao cabo dos nove anos de mandato – assumiram-se sem pestanejar como os pretensos defensores das camadas de funcionários e reformados de luxo perante a necessidade imperiosa de cortes na despesa do Estado após a insensata deriva despesista dos governos anteriores. Toda a gente sabe, menos eles, que a redução das despesas do Estado é indispensável.
Em nome desta bizarra concepção de equidade, isto corresponde à
ignorância do preço que os assalariados do sector privado têm pago em termos de
desemprego e à profunda desigualdade em que se encontra a esmagadora maioria
dos pensionistas da segurança social perante os do Estado. Por outras palavras,
com estes acórdãos apresentadas num linguajar especioso e enigmático, o TC «constitucionalizou»
o emprego estatal, blindando os privilégios da função pública, como se os
funcionários descontentes não pudessem procurar trabalho mais bem pago no
sector privado!
Pior do que irresponsável, este corporativismo, que se arrisca a
rebentar de vez com as finanças do país, constitui uma clara usurpação de
competências. Com efeito, os juízes estão a meter-se onde não são chamados,
invocando a santa igualdade a propósito de tudo e de nada, como se as formas de
reduzir as despesas estatais não fossem da estrita competência do governo,
podendo ser alteradas amanhã por outro governo com idêntica legitimidade
eleitoral.
Porém, insatisfeitos com o abuso de competências, ainda querem dar
lições de economia política que ninguém lhes pediu. A verdade é que o TC é
profissionalmente incompetente para se pronunciar sobre as vantagens e
desvantagens económicas de um hipotético aumento de impostos, como pretendeu
fazer, especialmente num país cujo aparelho estatal controlava directamente, no
tempo de Sócrates, 53% do PIB, fora o que controlava indirectamente através de
estabelecimentos para-públicos, favores e corrupção!
A não ser que o mundo onde vivem os juízes seja outro. Talvez eles
acariciem o sonho, sem o confessar, de levar o actual governo a demitir-se e,
no seguimento de uma retumbante vitória eleitoral do Dr. António Costa à frente
de uma esquerda unida contra a ditadura da troika e da Sra. Merkel, que o novo
governo devolveria aos funcionários e pensionistas tudo aquilo que o anterior
lhes tinha roubado… Temo todavia que mais depressa teríamos de pedir – e pagar
– um novo resgate, como aconteceria no dia seguinte à tomada do poder por um
pretenso campeão da igualdade como o Syriza, vencedor das últimas eleições
europeias na Grécia…
Ou talvez ambicionem mesmo a saída do euro em nome de um soberanismo
que, da direita à esquerda, já só está ao alcance de muito poucos. Resta uma
hipótese meramente escolar para ver como a justiça funciona em Portugal. Não
esqueçamos que este tribunal pretensamente justiceiro é o mesmo que legitimou a
trapaça dos deputados que permitiu, contra o óbvio espírito da lei, que os
dinossauros das autarquias se candidatassem nas câmaras municipais do lado…
Admitamos então que o TC ignorava a justificada «aclaração» que o
governo lhe pediu e imaginemos que o governo mantinha os cortes orçamentais a
pretexto de aguardar pela resposta do tribunal… O que aconteceria? Suponho que
o tribunal não mandaria a polícia prender o governo mas não deixaria de lhe pôr
um processo por incumprimento dos acórdãos do TC… Quanto tempo duraria tal
processo? Uma eternidade, seguramente! Recorda-me isto as palavras do
insuspeito professor de direito Pedro Bacelar de Vasconcelos, quando escrevia a
propósito da crise da justiça em Portugal: «Da porta da esquadra às grades do
cárcere, da mesa do conselho de ministros ao hemiciclo de S. Bento, dos
cidadãos cépticos às associações cívicas, tarda o sobressalto que agite este
marasmo»!
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