sábado, 16 de agosto de 2014


A Sicília fica aqui


André Macedo, Diário de Notícias, 14 de Agosto de 2014

Há uns anos, um alto quadro da Portugal Telecom contou-me isto. Foi lançado um concurso para atribuir a limpeza dos prédios e sucursais da empresa pelo país inteiro. Alguns edifícios não estavam incluídos, mas era um contracto importante e com valor. A empresa que o ganhasse tinha naquele acordo a sua razão de ser, ficava auto-suficiente durante aquele período de tempo, não precisava de se chatear a arranjar mais clientes. É fácil imaginar: se eu vender as lapiseiras todas à PT ou a outra multinacional qualquer e se não fizer um mau negócio, a probabilidade de ganhar escala e, por isso, dinheiro aumenta consideravelmente.

Chegaram três propostas à avaliação final, todas de companhias com designações irrelevantes e insuspeitas, isto é, que não denunciavam o que na verdade estava por trás de todas e de cada uma delas. Os contractos tinham todos diferenças financeiras e métodos próprios de apresentar o serviço, o que só por si era tranquilizador.

O que este alto quadro da PT me contou, salvaguardando que quem avaliou as propostas não percebera se fora por mera coincidência ou não (até porque só o notou mais tarde), é que as três propostas tinham por trás companhias de uma forma ou de outra ligadas ao universo Espírito Santo, fosse alguém da família, uma empresa do grupo ou simplesmente alguém daquela área de interesses. Aquilo dava sempre jackpot aos Espírito.

Na altura procurei desenterrar estes contractos, mas o assunto ficou por ali porque não tinha nem as datas nem os nomes das empresas, muito menos o acesso para puxar o fio que me pudesse conduzir onde eu queria. A PT já era uma empresa privada e, apesar de cotada em bolsa, este tipo de detalhes é mais difícil de apanhar do que no Estado; além de que esse alto quadro se mostrava convencido de que a PT não fora prejudicada, porque pagara, dizia-me ele, o preço adequado ao serviço comprado. Simplesmente não compreendia como fora possível aquela coincidência diabólica – as três empresas tinham todas ligações ao Grupo Espírito Santo, não haveria nenhumas outras pelo país?

Hoje as relações entre o BES, o GES e a PT transformaram-se numa espécie de triângulo das Bermudas onde foram engolidos não apenas 900 milhões de euros, mas também um quinhão importante da credibilidade daquela que já foi a maior empresa nacional. O caso da companhia de limpezas não era afinal mais do que um sintoma prosaico de um sistema viciado e de compadrio que acabou por arruinar a fusão com a Oi e pelo caminho destapou as reputações de porcelana de um grupo de gente sem escrúpulos. Na verdade, o que me preocupa não é a PT, o que assusta, o que perturba, é estarmos perante um modo de vida normal em Portugal. A Sicília, afinal, está aqui, somos nós, capisci?





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