JOSÉ RIBEIRO E CASTRO, SOFIA GALVÃO e RICARDO SÁ FERNANDES Público
Vasco Pulido Valente (VPV) escreveu na edição do
PÚBLICO de domingo dia 7 de Dezembro uma crónica intitulada «Feriados», que é
susceptível de induzir o leitor em engano, uma vez que contém erros factuais a
respeito do 1.º de Dezembro e do seu feriado.
1. VPV começa por menosprezar a Restauração e o 1.º
de Dezembro do ponto de vista histórico, com uma leitura ideológica algo
enviesada.
Discordamos, mas não é este o ponto deste texto. A
Restauração, período que vai desde o 1.º de Dezembro de 1640 a 13 de Fevereiro
de 1668, data de assinatura do Tratado de Lisboa que estabeleceu a paz com
Madrid, é objecto de diferentes leituras e interpretações pelos historiadores.
O fundamental é que, a partir daí, a partir do 1.º
de Dezembro e da Guerra da Restauração em que saímos vitoriosos, Portugal
reganhou a sua independência plena, de novo com soberano próprio – foi posto
termo ao domínio filipino e à chamada monarquia dual, em que Portugal estava
sujeito a rei espanhol desde 1580, mais exactamente desde as Cortes de Tomar,
que, em Abril de 1581, reconheceram Filipe II como soberano também no nosso
país (Filipe I de Portugal).
2. Vasco Pulido Valente escreve, a seguir: «Na
segunda metade do século [XIX], ninguém se lembrava do '1 de
Dezembro' e os críticos do regime, de Ramalho Ortigão aos republicanos,
desprezavam e ridicularizavam a «Sociedade 1.º de Dezembro» (que não sei se
ainda existe), como centro de propaganda da corte e dos Braganças. Só os
criados se metiam nessa fantasia, que o grosso do país letrado não levava a
sério.»
Primeiro, uma informação: sim, ainda existe. Nunca
se chamou «Sociedade 1.º de Dezembro», mas «Comissão Central 1.º de Dezembro de
1640»; e denomina-se, hoje, Sociedade Histórica da Independência de Portugal,
designação que adoptou nos anos '20 do século passado. Celebrou há poucos meses
153 anos de existência e actividade. Hoje, como desde o início, tem sede no
Palácio da Independência, o antigo Palácio dos Almadas onde nasceu a revolta
dos 40 conjurados de 1640.
Em segundo lugar, as correcções.
A Comissão Central 1.º de Dezembro de 1640 foi o
pólo da prolongada movimentação que, mais tarde, depois de décadas de
persistente intervenção cívica, levaria à instituição legal do feriado nacional
do 1.º de Dezembro. Foi fundada em 24 de Maio de 1861, tendo lançado um
Manifesto em 25 de Agosto do mesmo ano, na tal «segunda metade do
século, [em que] ninguém se lembrava do 1 de Dezembro»,
segundo VPV.
Nesta mesma segunda metade do séc. XIX, a Comissão
Central desenvolveu vasta actividade pública, por iniciativas sociais,
editoriais e culturais, nomeadamente concursos de teatro, récitas, conferências
de carácter histórico-cultural e político-institucional e exposições
didácticas. E dinamizou campanhas públicas de angariação de fundos de que
resultou a edificação de importantes monumentos, de cunho português e
patriótico: a estátua a Luís de Camões, em Lisboa (1867); a estátua
ao poeta Bocage, em Setúbal (1871); a estátua a Sá da Bandeira, em Lisboa (1884);
o Monumento aos Restauradores, também em Lisboa, na actual Praça dos
Restauradores (1886); e a estátua a D. Afonso Henriques, em Guimarães (1888).
Tudo isto no período em que, segundo VPV, a «Sociedade 1.º de Dezembro» estaria
votada ao desprezo e ao ridículo.
Mais interessante é conhecer a lista dos
tais «criados», os únicos que, segundo VPV, «se metiam
nessa fantasia, que o grosso do país letrado não levava a sério.»
Os fundadores da Comissão Central 1.º de Dezembro e
signatários do Manifesto de 1861 foram 40 destacadas figuras da sociedade
portuguesa do tempo, incluindo políticos, como Anselmo José Braamcamp (que foi
líder do Partido Histórico ou Partido Progressista, um dos dois principais
partidos da Regeneração), ou o celebrado tribuno José Estêvão; historiadores,
como o grande Alexandre Herculano e Luís Rebelo da Silva; outros escritores,
como José da Silva Mendes Leal ou Pedro de Brito Aranha; industriais de renome,
como Domingos Ferreira Pinto Basto (da segunda geração da «Vista Alegre»)
ou António José Pereira Serzedelo Júnior (que muito marcou, tal como
seu pai, as primeiras décadas do «Banco de Portugal»); além de ilustres
diplomatas, bibliógrafos, jornalistas, publicistas e comerciantes, presidentes
da Câmara Municipal de Lisboa e governadores civis. Ditosa Pátria que tais
«criados» tem!
É também difícil imaginar que destacadas figuras da
«esquerda» liberal portuguesa desse tempo, como José Estêvão e Manuel de Jesus
Coelho (ambos antigos combatentes da «Patuleia»), além de Alexandre Herculano,
consumissem os seus dias a fazer «propaganda da corte e dos Braganças»,
como é a ideia transmitida por VPV.
3. Vasco Pulido Valente escreveu ainda: «Os
republicanos, logicamente, não continuaram os festejos da dinastia (agora no
exílio) e os monárquicos para se poupar a maçadas também não. O próprio
Salazar, embora restaurasse o feriado, nunca fez um alarido à volta do caso e
deixou a 'Sociedade' agonizar no Rossio com a maior indiferença.»
Nada de mais errado.
O feriado do 1.º de Dezembro foi instituído, em
lei, pela 1.ª República (e não por Salazar), logo nos primeiros dias, gesto que
marca o pleno sucesso das movimentações cívicas das décadas anteriores. É o
primeiro Governo Provisório da República Portuguesa que, por Decreto de 12 de
Outubro de 1910, consagra o dia 1 de Dezembro como feriado nacional, então
designado como dia da «Autonomia da Pátria Portuguesa» e, pouco depois, «dia da
Independência e da Bandeira». Passou, assim, a ser o mais antigo dos feriados
civis portugueses, pacificamente celebrado de modo ininterrupto, desde 1910 até
à sua infeliz eliminação em 2012.
Os actos centrais das celebrações nacionais, junto
ao Monumento aos Restauradores, eram já organizados em parceria da Comissão
Central 1.º de Dezembro (hoje, Sociedade Histórica da Independência de
Portugal) e da Câmara Municipal de Lisboa, como ainda acontece apesar da
abolição do feriado com efeitos desde 2013. Juntamos, para pleno esclarecimento
dos leitores, fac simile do Diário do Governo de
13 de Outubro de 1910 e fotografia das primeiras celebrações oficiais do
feriado nacional do 1.º de Dezembro, em que se vêem, entre outros, Manuel de
Arriaga e Afonso Costa a celebrarem aquele que, segundo VPV, foi o «feriado
restaurado por Salazar».
4. A concluir, citamos um trecho de artigo recente
de Luís Reis Torgal, um historiador à altura dos seus pergaminhos, com vasta
obra publicada nesta matéria dos feriados: «O 1.º de Dezembro é o
feriado civil mais antigo: sobreviveu à I República austera em festividades, ao
Estado Novo que só recuperou os 'dias santos' em 1952 e à chegada da
democracia, que nunca aboliu feriados mas acrescentou vários ao
calendário.» O mesmo que criticou há poucos meses: «Terminaram
com o feriado da Restauração, um dos mais simbólicos da nossa independência e
afirmação. É como se estivesse em causa o nosso sentido de independência,
dificilmente conseguido.»
O 1.º de Dezembro não é da República, nem da Monarquia,
não é da direita, nem da esquerda. É o dia de Portugal inteiro, o mais nacional
de todos os feriados nacionais. É o dia que celebra aquele valor sem o qual não
existiríamos sequer: a independência nacional. Fá-lo na circunstância da
Restauração, porque foi o momento em que, da última vez que a perdemos, a
reconquistámos.
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