terça-feira, 30 de dezembro de 2014


De Salazar a Soares.

Portugueses ficaram mais ricos durante o Estado Novo


Dinheiro Vivo

Afinal, Salazar não era um lacaio da Igreja. Afinal, a integração europeia não começou com Soares. Estas e outras conclusões estão no terceiro capítulo do livro de Henrique Raposo, «História Politicamente Incorrecta de Portugal Contemporâneo», que o Dinheiro Vivo publica em exclusivo.

«A taxa de crescimento de Portugal durante os anos 2000 foi de 0,6%; nos anos 90 e 80, o país cresceu a 3,1% e 3,6% respectivamente; nos anos 70, cresceu a 4,9% e nos anos 60 a taxa atingiu 5,8%. Os anos 60 são, portanto, o período dourado da nossa economia e, apesar do caos pós-1974, os anos 70 também merecem destaque. Como é que isso foi possível? Em 1970, 1971 e 1972, Portugal conheceu taxas de crescimento chinesas: 8,47%, 10,49% e 10,38%. E estes picos de crescimento asiáticos também surgiram obviamente nos anos 60: 8,8% (1960), 10,53% (1962), 6,05% (1964), 9,41% (1965). Estas taxas de crescimento representaram um quarto de século de convergência em relação aos clubes dos mais ricos. Entre 1961 e 1973, a média de crescimento dos países da OCDE foi de 5%; no mesmo período, Portugal cresceu a 6,9% [...] A percentagem da população beneficiada pelos diferentes regimes da segurança social passou de 13,3% (1960) para 27,5% (1970) e 37,4% (1974). Olhe-se, por exemplo, para os pensionistas: em 1960, existiam 119 586 (56 296 no regime geral e 63 290 na CGA); em 1970, os sistemas abrangiam 260 807 reformados e o número já estava nos 607 084 em 1973; no final deste processo, em 1974, existiam 780 399 pensionistas em Portugal (701 561 no regime geral e 78 838 na Caixa Geral de Aposentações). Terá havido até hoje uma expansão do Estado social tão rápida como esta? [...]

E aqui entra em jogo um facto curioso: entre 1975 e 1980, o ritmo de subida do número de consultas médicas baixou. Pior: o número de consultas entrou em queda na primeira metade da década de 80. Resultado? Em meados da década de 80, o número de consultas era quase idêntico ao número de consultas de meados da década de 70 [...] Se a linha do analfabetismo continuou a descer nos primeiros anos da democracia, o mesmo não se verificou na linha ascendente das conclusões do ensino secundário. Na segunda metade dos anos 70 e na primeira metade dos anos 80, a percentagem de população com liceu concluído desceu para os níveis do início dos anos 70 [...] Estes números dizem uma coisa muito simples: o Estado social depende da riqueza produzida pela sociedade e não de leis que procuram garantir juridicamente aquilo que não tem garantia jurídica possível. Seja qual for o regime político, uma sociedade só pode criar e manter um Estado social se gerar a riqueza necessária para o pagar. As liberdades políticas, civis e religiosas, sim, podem ser defendidas juridicamente, porque não dependem de qualquer condição material. Mas os direitos sociais só podem ser defendidos através da criação de riqueza e da revitalização demográfica. Entre 1950 e 1973, o PIB per capita português convergiu em relação à Europa ocidental a uma média anual de 1,85%, mas, entre 1973 e 1986, a riqueza dos portugueses entrou em divergência (-0,49%). A divergência foi o sintoma da crise que assolou o país; uma crise provocada por causas externas que afectariam o país mesmo num cenário sem 25 de Abril (crise do petróleo) e por causas internas (o PREC e os seus efeitos) [...]

Como tem uma conceção exclusivamente material e económica da política e da democracia, a intelligentsia portuguesa assume, de imediato, que um intelectual que regista a boa performance económica do Estado Novo só pode estar interessado no branqueamento de Salazar. Convém perceber que estas febres progressistas nascem da deturpação dos conceitos de democracia e de legitimidade política, um problema que infecta o debate intelectual em Portugal [...] Estão aqui em causa dois erros da visão economicista que a esquerda tem da democracia: supõe-se que a democracia cria mais riqueza do que as ditaduras e, logo a seguir, afirma-se que a democracia é superior do ponto de vista moral, precisamente porque cria mais riqueza e proteção social. Por outras palavras, coloca-se um princípio moral na dependência de uma variável económica. Esta visão da democracia e da legitimidade política está errada, e até se torna perigosa em tempos de crise. Porquê? Se fosse levada até à conclusão lógica, esta mundividência progressista teria de retirar legitimidade a uma democracia em empobrecimento económico e social, e teria de dar legitimidade a uma ditadura em enriquecimento e em processo de construção de uma rede de protecção social. Como é que se anula esta falácia? Com uma declaração moral: o constitucionalismo liberal e democrático é um princípio moral que vale por si, logo a sua legitimidade não pode ser transformada numa mera dependência de variáveis económicas que muitas vezes não são controláveis pelos governos (ex.: demografia). A utilidade económica de um regime vai e vem, mas a legitimidade da democracia constitucional não vai nem vem: está sempre no mesmo sítio. A democracia dos EUA não deixou de ser legítima por causa do empobrecimento dos anos 20 e 30. A democracia indiana de Nehru (anos 40 e 50) não deixou de ser legítima por causa das políticas socialistas que empobreceram ainda mais os indianos. E esta moralidade política também funciona no sentido inverso: apesar de ter enriquecido os chilenos com acertadas políticas económicas, Pinochet não foi um líder legítimo. Embora apresente taxas de crescimento maiores, a autoritária China não é mais legítima do que a democrática Índia [...] Da mesma forma, a ilegitimidade autoritária de Salazar e Marcelo não é atenuada pelo desempenho económico e social do Estado Novo. O regime de Salazar e Caetano será sempre ilegítimo, porque usou censura, polícia política, tortura e corrupção eleitoral. Para diminuir o Estado Novo não é necessário esconder a formidável evolução económica e social de 1930 a 1973. As críticas morais e políticas chegam e sobram para deslegitimar o salazarismo [...].»





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