domingo, 29 de novembro de 2015


Faz agora o que quiseres

mas depois não te queixes


Helena Matos, Observador, 29 de Novembro de 2015

Estou a ver-te à minha frente com aquele jeito algures entre a nevralgia e a dor ciática que te acompanha nas situações embaraçosas: foi um momento de esperança, se tivesse corrido bem tinha sido… Mas – e ao proferires este «mas» o tom auto-condescendente da tua voz dará lugar a uma ênfase acusatória – o pêcê lixou tudo.

É sempre assim: os teus sonhos de esquerda esbarram invariavelmente na ortodoxia do pêcê. Como quem acabou de ter uma epifania logo desatarás numa listagem das provas terrenas dessa tua descoberta ou melhor dizendo redescoberta. Ou será que desta vez vais culpar o BE, mais a Catarina porta-voz e as manas Mortágua?

Olha, antes que a conversa azede vamos já combinar uma coisa: faz agora o que quiseres mas depois não te queixes. E sobretudo não culpes os outros.

Sim. Não te faças desentendido. Quem? Tu, o gajo porreiro da esquerda, aquele com quem gostamos de ir de férias, de almoçar no trabalho, de conversar sobre cidades que talvez nunca conheçamos… Tu, esse mesmo que no momento em que se trata do poder político te tornas no nosso maior problema. Um problema muito maior que o representado pelos interesses que se agitam no CDS, pelo destrambelhamento congénito do PSD, pelo lobbie corporativo que é o PCP ou pelo folclore arruaceiro do BE. Porque tu, burguês blasée como ninguém, o gajo porreiro da esquerda que vota PS, ao contrário dos outros atrás citados, achas que o poder te é devido por isso mesmo, por seres um gajo porreiro. De esquerda, claro.

Aliás detalhar que és de esquerda é um pleonasmo porque, para ti, fora da esquerda só existe um mundo de trevas, interesses, hipocrisia, ignorância, atavismo… Excepções a esta regra: os mortos como Sá Carneiro ou os vivos que reconhecem o teu direito natural ao poder. Valha a verdade que nem pedes uma declaração muito formal dessa subserviência, apenas não se podem falhar aqueles pequenos detalhes: é essencial apoiar-te em cada um dos teus ódios momentâneos. Agora é o Correio da Manhã que te anima a veia da indignação instantânea porque, segundo o teu livro de estilo, é uma vitória da democracia e um sinal do progressismo de António Costa, uma cega e um cigano integrarem o novo governo mas o Correio da Manhã escrever «Costa chama cega e cigano para o Governo» é uma mostra vergonhosa de racismo e de intolerância. Amanhã, quiçá um juiz, um blogger ou o Governador do Banco de Portugal substituirão o Correio da Manhã nesse papel de alvo dos teus tiros.

Mas é nos ódios de sempre – e aí não há nenhum que ultrapasse aquele que votas a Cavaco Silva – que se faz a verdadeira prova entre a tua gente. Não aceitas, não toleras e não entendes que alguém não te acompanhe no fastio e na raiva que votas ao actual Presidente da República. Já viram esta do Cavaco? – dizes tu com ar de quem vai contar a última anedota. Esqueces que «o Cavaco» ganhou duas vezes as eleições para a Presidência da República e que quando se candidatou a primeiro-ministro ganhou-as com maioria absoluta, nunca lhe ocorrendo nem a ele nem milhões de portugueses que, para chefiar um governo, bastava somar os votos de todos os derrotados.

Como bem sabemos não é «o como decide» nem «o que decide» que te irrita em Cavaco. Aquilo que não perdoas a Cavaco é ele ter uma legitimidade que não advém do teu filtro e sobretudo o facto de para Cavaco Silva o funcionamento institucional do regime se sobrepor a tudo o mais. Ora para ti o regime e as suas instituições só fazem sentido e só merecem ser respeitadas se e quando o regime e as instituições forem tutelados por ti. A começar naturalmente pela Presidência da República e a acabar no Tribunal Constitucional que rapidamente passará de intocável bastião da República a escolho deste «histórico virar de página» caso os ocupantes do Palácio Ratton chumbem qualquer iniciativa deste governo nomeadamente alguma da resultante dessa espécie de PREC legislativo que tem tido lugar na Assembleia da República nos últimos dias.

Escusas de sorrir com esse ar mimado de quem se habituou a lamentar a posteriori não o que fez mas sim aquilo que os outros não fizeram para o impedir de errar: sei bem que por feitio é pouco provável que juízes do TC alguma vez se interponham entre ti e o teu sonho. Mas caso isso acontecesse logo os juízes seriam apeados do pedestal para onde os elevaste e acabariam nas ruas não da amargura mas sim da fúria das redes sociais e dos humoristas do regime. O problema de discordar dos gajos porreiros é que, exactamente por eles se acharem porreiros, tal discordância nunca é entendida como uma posição legítima mas sim como um ataque pessoal.

Dirás que nesta forma de reagir o PCP e o BE procedem exactamente do mesmo modo. É verdade mas como também sabes, eles, ao contrário de ti, não são porreiros. Como tu lhes lembras nos momentos da tua desilusão, eles são «ortodoxos», «paranóicos» e «totalitários». É claro que agora fazes de conta que nunca disseste tais coisas e até esperas que comunistas e bloquistas se ocupem nesse exercício arrebatador de ódio fulanizado e da engenharia social e te deixem a ti a decidir o País. Por estes dias na Assembleia da República aprovam-se a granel e em tropel diplomas sobre adopção, exames, procriação medicamente assistida (chegámos ao ridículo de esperar que ao menos o PCP coloque algum travão na legalização das mães de aluguer) enquanto baixam às comissões assuntos como a reversão das privatizações. Já agora quando haverá tempo e oportunidade para discutir a resposta ao pedido de ajuda lançado por Hollande?

Um país novo cheio de estímulos e multiplicadores precisa de um homem novo. Queres enganar-te como das outras vezes, não é? Lembras-te quando o Sócrates tinha lá as suas coisas mas era uma máquina? Resiste a tudo, declaravas indignado com as investigações policiais que puseste no patamar dos ataques pessoais. Os aumentos à função pública em 2009? Era preciso dinamizar o país. O TGV? Tínhamos que apostar nas infra-estruturas. Para tudo havia uma explicação. Com o tempo começaste a conceder que havia um novo-riquismo na casa da Rua Castilho, mais os estudos de filosofia em Paris e as férias de nababo russo mas era mais uma questão estética do que ética: a mãe era rica não era? E isso também não interessava nada. Havia sempre uma cabala. Também já tinha havido a cabala do Processo Casa Pia.

Depois veio 2011 e o pedido de ajuda externa. Mas o sobressalto não durou mais que umas breves semanas porque logo passaste a acusar os credores (sim exactamente aqueles a quem esse Governo que nunca enjeitaste tinha suplicado ajuda pouco antes) de quererem destruir o País: a austeridade não era o resultado da nossa falência mas sim a consequência de um pérfido plano da Merkel e da direita liberal.

Agora calaste perante o processo que colocou o PS e o país nas mãos da extrema-esquerda: é um tabu que se quebrou, um muro que se derrubou… e acabo aqui porque de rima em rima ainda vou buscar as «pombas assassinadas» e o «camarada, amigo, palhaço».

Depois quando a realidade se impuser logo vais arranjar uma desculpa para o falhanço. Tenho a certeza que vais reler esses patéticos acordos e descobrir neles sinistras intenções nos teus agora parceiros. Por mim, ficamos combinados: quando este teu sonho acabar no jeito do costume eu estou disposta a pagar ainda mais impostos, a ganhar ainda menos dinheiro mas ouvir-te culpar os outros é que não. Fala-me de livros, de quadros, de comida… Ou de fado. Porque agora já gostas de fado, não é? Mas nunca digas que foste enganado. Quiseste sim enganar-te a ti mesmo que é o mais perigoso dos enganos.

Faz agora o que quiseres, diz o que quiseres mas por favor depois não te queixes de ninguém a não ser de ti mesmo.

Aqui ninguém enganou ninguém.





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