terça-feira, 29 de dezembro de 2015
Os saudáveis populistas
Helena Matos, Observador, 27 de Dezembro de 2015
Marcelo Rebelo de Sousa: «Pode-se poupar em muita coisa, mas poupar na saúde dos portugueses não é um bom princípio para quem quer afirmar a justiça social e construir um Estado democrático mais justo», declarou aos jornalistas, no início de uma visita ao Hospital de São José, em Lisboa.
Maria de Belém: «Tesouraria» não pode estar à frente «da defesa do valor da vida».
Marisa Matias, considera que a morte de um homem no São José é uma consequência da austeridade imposta pelo anterior Governo. «Foi uma política que matou gente. Foi denunciado em devido tempo que esta política de austeridade e este ciclo de empobrecimento que estava a ser posta em prática pelo Governo de direita levaria mesmo a muitas vidas que se perderam».
Perante este tipo de considerandos, sobretudo os provenientes de Marcelo Rebelo de Sousa e de Maria de Belém, apetece perguntar: pensam estes candidatos à Presidência da República recorrer ao SNS quando tiverem problemas de saúde? Caso respondam afirmativamente, estimam viver quantos anos mais? É que para falar deste modo, como se não houvesse amanhã, tem de se estar dotado da forte convicção (eu diria antes fé) de que se vai gozar de uma saúde de ferro até àquele derradeiro momento em que a bondade de uma morte súbita porá fim a vida tão saudável. (De caminho também é indispensável estar disposto a descer moralmente muito para subir um pouco mais nas sondagens, mas esse é outro assunto.) Afinal a quem não sabe que morte o espera e de que doenças vai sofrer resta apenas uma pragmática certeza: todos podemos acabar num hospital. Que este se organize em função dos doentes ou das questões contratuais do seu pessoal não é a mesma coisa.
Mas vamos ao que suscitou esta sucessão de declarações dos candidatos à Presidência da República: a morte a 14 de Dezembro de um homem de 29 anos, no Hospital de São José, depois de ter sido internado no dia 11. No momento do internamento foi-lhe diagnosticada uma hemorragia cerebral provocada por um aneurisma o que obrigava a uma intervenção cirúrgica rápida. A intervenção nunca aconteceu porque dia 11 era sexta-feira e no Hospital de São José ao fim-de-semana (a sexta-feira à tarde já entra no conceito de fim-de-semana?), não se encontravam equipas de neurocirurgia. E porque não se encontravam equipas de neurocirurgia em São José? Pela mesma razão porque os tratamentos mais rigorosos são interrompidos com a maior das naturalidades ao fim-de-semana e feriados: porque no país em que oficialmente a saúde não tem preço nem se discute quanto nos custa e como funciona o que não tem preço, florescem os mais fantásticos negócios e crescem destravados privilégios à conta desses dogmas.
Tanto quanto se sabe – e sabe-se pouco porque em geral nestas discussões sobre os serviços públicos ditos gratuitos evita-se dar números enfatizado sim a questão abstracta dos «meios», dos «cortes», dos «recursos» que ora existem ora são cortados… – em 2013, os enfermeiros do Hospital de São José, declararam-se indisponíveis para fazerem turnos extraordinários aos sábados e domingos. Médicos e radiologistas secundaram-nos. Segundo o Expresso esta recusa deveu-se a uma redução de aproximadamente 50 por cento dos valores que médicos e enfermeiros então cobravam por cada dia de prevenção (sem presença física no hospital) durante o fim-de-semana. Ou seja os médicos passariam de 500 para 250 euros e os enfermeiros de 260 para 130 (valores aproximados).
Não estou a dizer que seja muito ou pouco. Bem ou mal pago. Mas para uma saúde que não tem preço digamos que é um preço muito alto para estar de prevenção. À conta da saúde que não tem preço, do «na saúde não se poupa» e da imagem cara a Maria de Belém da tesouraria versus o valor da vida acabámos a criar um monstro de duas faces. De um lado, resguardadas na opacidade da saúde dita gratuita estão as corporações a aumentarem os seus privilégios e os seus ganhos (neste caso concreto é dificílimo perceber quanto se pagava às equipas de neurocirurgia antes de 2013, quanto se pagou em 2014 e 2015 e quanto se vai pagar agora que foi anunciado um novo acordo). Na outra face estão os políticos a dizerem às pessoas aquilo que eles, políticos, acham que os eleitores querem ouvir. E nenhuma destas faces está interessada em discutir a sobrevivência do SNS ou a sua qualidade. O que lhes interessa é a sua sobrevivência pessoal dentro do SNS (caso das ordens, sindicatos, interesses na área do medicamento) ou, no caso dos políticos, evitar ser destruído pelas corporações do SNS como aconteceu com Leonor Beleza ou acabar discreto mas firmemente afastado por elas, como sucedeu com Correia de Campos.
Contudo, e para lá do que dizem e sobretudo do que calam as duas faces, Portugal gasta muito com o SNS, gasta comparativamente mais que outros países mais ricos – mesmo com os cortes, os gastos totais com a Saúde em Portugal mantiveram-se acima da média da UE – e tanto Marcelo Rebelo de Sousa como Maria de Belém sabem-no. Quanto a Marisa Matias não sei se sabe ou se tal como Marcelo e Maria de Belém faz de conta que não sabe mas espero que o mais rapidamente possível apresente dados, números e casos da «tanta gente» que no seu dizer morreu em consequência dos «cortes na saúde». E de caminho pode precisar quanta gente cabe em «tanta gente»?
Dos restantes candidatos já nem me apeteceu procurar o que disseram. Aliás, digam eles o que disserem, ou se poupa nos gastos da Saúde ou dentro em pouco, para espanto da dra. Maria de Belém, não há tesouraria que suporte os cada vez mais caros tratamentos médicos e os também cada vez mais longos e mais dispendiosos cuidados de saúde de uma população envelhecida. E para surpresa de Marcelo, constataremos demasiado tarde não só que os recursos da saúde são finitos como que, bem mais grave, estão cativos das corporações do sector. Até lá o populismo continua a ser um tónico muito recomendado e de provas dadas. Pode usar-se sem moderação até porque os efeitos secundários são sempre sofridos pelos outros.
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