Helena Matos
O guia para «Acolhimento de refugiados» agora editado
pela Direcção-Geral da Saúde é um prémio para os fundamentalistas. Nem as
consultas só com mulheres lá faltam.
«Por imperativos de ordem cultural e religiosa, deve
ter-se em atenção a escolha dos profissionais e mediadores no relacionamento
com certos grupos. Por exemplo, poderão existir restrições de género
consubstanciadas na recusa de mulheres serem observadas ou cuidadas por
profissionais do sexo masculino. É de extrema importância que estas limitações
sejam esclarecidas e respeitadas, para que o apoio tenha a maior qualidade
possível.» – Não, não é engano, estamos mesmo a ler: «É de extrema
importância que estas limitações sejam esclarecidas e respeitadas, para que o
apoio tenha a maior qualidade possível.» E voltemos ao que aqui se
designa como «limitações»: «recusa de mulheres serem observadas ou cuidadas
por profissionais do sexo masculino».
Em que remoto país serão dadas estas instruções? Que
estranho mundo será esse em que as mulheres (ou os homens por elas) podem
recusar ser «observadas ou cuidadas por profissionais do sexo masculino»? E em
que a essa atitude (que nós sem sombra de dúvida classificamos como
discriminação atávica ou intolerável exigência) é aqui docemente colocada ao
nível da «restrição» e da «limitação»?
Claro que isto não pode ser Portugal. Pois não pode mas
é. E é Portugal agora, em 2015, e não há um século. Estes conselhos fazem parte
do recentemente publicado «Acolhimento de refugiados: Alimentação e necessidades nutricionais em situações de emergência», editado pela Direcção-Geral da Saúde, no âmbito do
Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável (PNPAS).
Este guia, anunciado há dias com pompa e circunstância
mediáticas, apresenta-se a si mesmo como um «documento inovador a nível
nacional». Do carácter inovador não duvido sequer um segundo pois nem nos mais
vetustos documentos editados pelas autoridades de saúde deste país se previa
que as mulheres recusassem ser «observadas ou cuidadas por profissionais do
sexo masculino». Nem nos nossos maiores delírios imaginámos que algum dia
teriamos de organizar os serviços de saúde de modo a prever a «recusa de
mulheres serem observadas ou cuidadas por profissionais do sexo masculino.»
A inovação chega assim anexa a algo que sempre vimos como
sinal de atraso e de falta de respeito pelos serviços e técnicos de saúde. Não
se percebe aliás se estas «restrições de género» se prendem apenas com os
cuidados de saúde mais básicos ou se também serão extensíveis às diversas
especialidades médicas. O que no limite nos levará ao paradoxo de além de
discutirmos se o hospital A deve ter neurocirurgião e o centro de saúde B
psiquiatra termos também de fazer essas escolhas em função do sexo dos profissionais
de saúde (na era APC – Antes do Politicamente Correcto – isto chamava-se
discriminação não era?).
Curiosamente, ou talvez não, este manual recomenda a quem
lida com os refugiados: «Fique atento aos seus próprios preconceitos e
preferências e coloque-os de lado». Pois, está a contradição desfeita: o que é
preconceito é acharmos preconceituoso o comportamento da mulher (ou do seu
marido) que rejeitam que ela seja observada por um médico. Complicado? Só na
aparência.
Aos ingénuos que neste momento se interrogam sobre a
razão de ser deste tipo de recomendações num guia de alimentação, no caso para
refugiados, recordo que os totalitarismos sempre tiveram como veículos
privilegiados dos seus ditames as recomendações e a legislação produzidas pelas
autoridades sanitárias, logo a começar por essa espécie de estrutura ancestral
do progressismo totalitário que foi o Comité da Saúde Pública ao qual se devem
muitas medidas que instauraram o Terror na Revolução Francesa. E na verdade
este manual de «Acolhimento de refugiados: Alimentação e necessidades
nutricionais em situações de emergência» vai
muito além das questões alimentares e nutricionais propriamente ditas, como bem
percebem aqueles que o consultam.
Mas mesmo que este guia tivesse ficado pelas páginas dedicadas
à alimentação as suas recomendações colocam questões muito sérias sobre o que
se entende por acolher ou receber refugiados, sobretudo quando esses refugiados
são muçulmanos.
Primeiro temos as observações óbvias: interdição de
bebidas alcoólicas (que também estão presentes, como lembra o guia, em
«tempero, em caldos, marinadas e sobremesas») e da carne de porco e seus
derivados, a saber fiambre, salsichas, chouriço, presunto, mortadela, paio,
salpicão, farinheira, morcela, tripas, fígado, pulmão, banha… (digamos que o
porco e seus derivados estão mais ou menos presentes em tudo que nos apetece
comprar nesta altura do ano).
Em seguida, lembram-nos os zelosos autores deste guia que
também se devem evitar as gelatinas de origem animal e os alimentos com
extracto de baunilha por utilizarem álcool na sua composição ou no processo de
produção.
Digamos que até aqui será possível atender a tantas
restrições, embora os refugiados devessem ser esclarecidos que não sendo
Portugal um país muçulmano muitos dos alimentos aqui comercializados contêm
gorduras animais ou álcool: uma simples fatia de bolo com passas transforma-se
nesta perspectiva num problema de intolerância religiosa caso as passas tenham
estado a ganhar sabor em vinho do Porto.
Enfim, uma coisa será não servir entrecosto no churrasco
aos refugiados outra bem diversa passa por ter de encontrar bolachas sem
baunilha.
Mas passemos adiante porque outros e bem mais sérios
problemas são colocados neste guia pelo item dedicado à contaminação cruzada,
conceito que no caso nada tem de sanitário mas sim de religioso: «Para a
manipulação de produtos de origem suína nas instituições que fornecem e/ou
preparam alimentos para os cidadãos deslocados, devem-se aplicar os mesmos
processos de segurança alimentar de modo a evitar a contaminação cruzada, ou
seja, os equipamentos, superfícies e utensílios que entrem em contacto com
produtos de porco devem ser convenientemente lavados e higienizados.»
Face à logística inerente a lavar e higienizar a cada
refeição «os equipamentos, superfícies e utensílios que entrem em contacto com
produtos de porco» cabe perguntar como se procederá caso nessas instituições
estejam também refugiados para quem o porco seja a base da sua alimentação?
Não se pense que com as outras carnes os problemas são
menores: «Relativamente a outros tipos de carne, em algumas culturas e
seguindo determinadas correntes do Islão, poderão haver reservas sobre a forma
como o animal é abatido, havendo especificidades rituais próprias que terão que
ser cumpridas.»
Terão que ser cumpridas? Sempre? Para todos? E alguém
interrrogou os refugiados sobre estes assuntos?
Não deixa de ser irónico que fugindo os refugiados sírios
de uma guerra causada pelos fundamentalistas islâmicos, aqui chegados esses
mesmos refugiados se confrontem com serviços de acolhimento dispostos a
satisfazer as exigências das suas correntes radicais. Aliás o mesmo raciocínio
tem sido aplicado na questão das caricaturas de Maomé em que de repente o
Ocidente dá como verdadeiro que todo o Islão considera ofensiva a representação
do profeta, o que é manifestamente falso pois durante séculos e séculos os
muçulmanos representaram Maomé.
Ironias e patetices de lado, o que encontramos em muita
da linguagem e das estruturas de acolhimento a refugiados e emigrantes são as
teses do relativismo, teses essas que exponenciaram os problemas de integração.
E que por exemplo, levam regularmente à anulação em França de várias festas escolares
pois já não basta haver recipientes separados para alimentos com carne de porco
e sem carne de porco: há o problema da partilha das mesas, dos frigoríficos e
do espaço (o conceito de contaminação cruzada é uma espécie de caixa de
Pandora!) Que levam também a agressões recorrentes nos hospitais porque estes
não estão dotados de equipas exclusivamente femininas. Que
obrigam a alterações nas aulas de natação…
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