Laurinda Alves
O debate sobre a eutanásia promete ser aceso, mas não pode passar ao lado de uma realidade ainda mais urgente e fracturante: se todos temos cuidados ao nascer, também temos que ter cuidados ao morrer
Primeiro, alguns factos incontornáveis e indesmentíveis: há muitos doentes crónicos e incuráveis, em fase avançada da doença, que são maltratados pelo sistema nacional de saúde. Uns porque sofrem em casa, sem assistência, outros porque não têm dinheiro para medicamentos e tratamentos, outros ainda porque desesperam em salas de espera e enfermarias dos hospitais por terem sido dados como «casos perdidos». Pessoas em quem ninguém investe.
Muitos sofrem sozinhos, outros acompanhados por familiares e amigos
tantas vezes impotentes perante o seu sofrimento. É difícil estar à cabeceira
de quem sofre. É terrível não ter o poder de curar. E deve ser brutal saber que
os profissionais de saúde desistiram de nós. A frase «não há nada a fazer» é
assassina. Quem a ouve morre logo ali. Devia ser proibida com urgência. E devia
haver multas pesadas, pesadíssimas, para quem se atrevesse a proferi-la em
contexto clínico. Dizer a um doente e à sua família que não há nada a fazer, é
matar toda e qualquer esperança. Não é preciso ser especialista em coisa
nenhuma para saber que há sempre muito a fazer por quem está vivo!
Neste
enquadramento de sofrimentos em cúmulo, de dores em excesso, parece a muitos que
a única saída é a eutanásia ou o suicídio assistido. Percebo que pareça e
respeito quem assim pensa, mas gostava de acrescentar ao debate nacional sobre
a eutanásia a minha perspectiva, partilhando aqui a minha experiência de 3 anos
à cabeceira de doentes terminais, numa unidade de Cuidados Paliativos, mais um
par de anos vividos à cabeceira de três doentes adolescentes que me eram muito
queridos. Dois deles morreram, mas uma sobreviveu. Foram anos duros, muito
duros, mas ensinaram-me muito. E fizeram de mim uma paliativista radical.
Explico porquê.
Em
três anos de voluntariado de cabeceira com toda a espécie de doentes, de todas
as idades, estive muito próxima de pessoas mais e menos desesperadas. Conheci
jovens revoltados que entraram na unidade a pedir a eutanásia mas desistiram
quando começaram a sentir os benefícios dos cuidados paliativos; estive de mãos
dadas com mães suspensas da última respiração dos seus filhos; abracei
raparigas novas que morreram antes de chegar a casar; partilhei silêncios demorados
com mulheres que se despediam dos maridos e dos filhos pequenos; segurei no
colo essas mesmas crianças que diariamente visitavam a mãe sem compreenderem
bem o que as esperava; li livros em voz alta para avós de muitos netos;
conversei longamente com engenheiros e professoras universitárias, músicos e
matemáticos, filósofos e artistas que morreram cedo demais. Com uns aprendi o
valor da aceitação da morte e a pacificação em vida, com outros aprendi o
respeito pelas suas zangas e revoltas. Com todos percebi a extensão do
sofrimento terminal e a importância de terem ou não terem cuidados paliativos.
E é aqui que tudo muda. E é este o debate essencial que devemos cultivar e
alimentar antes de avançarmos para votações e novas legislações sobre o mítico «direito
a morrer com dignidade».
Felizmente
os paliativistas cuidam do direito a viver com dignidade até ao fim. Sabem que
uma equipa pluridisciplinar associada a um cocktail de químicos sabiamente
doseado, minimiza os sofrimentos físicos e atenua os sofrimentos morais e
emocionais. Até eu sei isso, e nunca estudei Medicina. Sei porque vi, porque
conheci dezenas de pessoas que pensaram que a única saída que tinham era a
morte assistida, a eutanásia, e quando começaram a beneficiar de cuidados
paliativos abandonaram a ideia. Naturalmente, sem pressões, note-se. E viveram
com dignidade até ao fim, sem dores insuportáveis, sem sentirem necessidade de
pedir a alguém para os matar.
Não posso nem quero citar nomes e muito menos contar as histórias de
cada um dos doentes que entraram no hospital (ou chamaram os médicos a casa) a
pedir a eutanásia. Uns gritavam, outros suplicavam, outros impunham a sua
derradeira vontade num silêncio devastador, mas todos queriam acima de tudo
ver-se livres do sofrimento. Não queriam viver porque não conseguiam sofrer
mais. As famílias sentiam o mesmo, e a morte assistida parecia-lhes a única
saída. Não era, felizmente. Graças aos cuidados paliativos, muitos deles
tiveram oportunidade de voltar a viajar, de realizar sonhos, de voltar a casa,
de viver sem dores e de recuperar a dignidade tantas vezes perdida quando nos
reduzem à expressão mínima. Quando alguém deixa de ter nome e passa a ser
apenas mais um doente, não dói apenas o corpo. Também dói a alma.
Os cuidados paliativos também são preventivos. Previnem sintomas e
sofrimentos. Fazem com que as dores não cheguem a ser insuportáveis. E com que
as pessoas não queiram desistir de viver. Tal como as doses de antibiótico têm
que ser avaliadas caso a caso, também a casuística se aplica nos cuidados
paliativos. Não há receitas padrão. Cada pessoa é uma pessoa. Os cuidados
paliativos são mundialmente reconhecidos como uma prática médica de excelência
e revelam sempre uma forma de medicina humanizada. E todos sabemos como uma
medicina des-humanizada pode levar a pedidos dramáticos e definitivos para
morrer, de forma a acabar com o sofrimento…
Fazer a diferença à cabeceira de um doente não passa por dar mais mimos ou ter mais cuidados afectivos. Também passa por isso, certamente, mas não se tratam doentes graves só com mimos. Desenganem-se os que acham que os paliativistas são médicos mais queridos e dedicados aos seus doentes porque apostam mais na ternura e proximidade do que na ciência, pois não é possível tratar derrames, vómitos, dispneias, convulsões e outros sintomas que tais com mimos, a dar a mão ou a fazer festinhas na testa. Os cuidados paliativos são uma especialidade clínica avançada, da linha da frente, que exige equipas multidisciplinares com capacidade para fazerem uma intervenção na dor e no sofrimento dos doentes.
Não
abandonar um doente que não se pode curar é vital. Sei de um cirurgião
português, contemporâneo, que durante anos a fio operou a desoras, quase
clandestinamente, doentes que tinham sido dados por perdidos. Esperava pelas
madrugadas ou contava com as horas tardias em que os blocos operatórios estavam
livres e com todas as condições de assepsia asseguradas, para operar homens e
mulheres com mais de 80 anos que estavam desfigurados por terem um cancro na
zona da cabeça e pescoço. Eram doentes de quem os próprios familiares desistiam
ou fugiam por não saberem como lidar com a fealdade, com os cheiros e toda a
escatologia própria desta doença demolidora. Este médico tinha uma equipa que
colaborava com ele e, juntos, fizeram centenas de cirurgias a «velhos» que só
esperavam a morte (e pediam a morte!). Alguns destes doentes viveram ainda mais
de uma década e eu própria li as cartas que escreveram a agradecer terem sido
operados. E também conheci filhos destes «velhos» que foram ter com o médico a
dizer que voltaram a conseguir estar com os seus pais.
Podem
dizer que o exemplo deste médico não tem nada a ver com paliativos e realmente
não tem, mas tem a ver com a eutanásia na medida em que revela a humanidade dos
médicos que sabem que há sempre alguma coisa a fazer por quem está vivo. Não se
trata de encarniçamento médico, nem de obstinação terapêutica, note-se, pois
nunca se tratou de obrigar os doentes a fazer mais e mais tratamentos
dolorosos, mas de minimizar sofrimentos e devolver dignidade. Nisso, este
médico agiu como agem os que mesmo sabendo que nada podem fazer para curar,
podem tentar tudo para dar qualidade de vida até ao último dia.
A
discussão sobre a eutanásia promete ser acesa e cheia de controvérsia, mas
gostava que não passasse ao lado de uma realidade ainda mais urgente e
fracturante na nossa sociedade: se todos temos cuidados específicos ao nascer,
também todos temos que ter cuidados específicos ao morrer! Os cuidados paliativos
não podem ser só para uma elite ou um conjunto de eleitos. Têm que ser para
todos. Só quando tivermos esta realidade assegurada teremos verdadeira
liberdade de escolha e aí sim, será mais legítimo falar de eutanásia e
suicídio assistido. Antes disso, perdoem-me os que pensam diferente, mas
a minha convicção profunda (e faz de mim uma paliativista radical) é que a
maioria das pessoas que pede a eutanásia, não a pediria se tivesse a certeza de
que deixaria de sofrer. Se tivesse garantias de que poderia libertar-se do
sofrimento, sem ter que acabar com a vida.
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