António Costa definiu no debate quinzenal no
Parlamento um modelo de «sociedade decente» que é o mesmo definido por Karl
Marx como sendo o do estádio supremo do comunismo. Quase palavra por palavra.
José Manuel Fernandes, Observador, 23
de Setembro de 2016
Foi na resposta à última pergunta de Assunção
Cristas durante o debate quinzenal desta quinta-feira. A certa altura António
Costa quis definir o que, para ele, era uma «sociedade decente». E fê-lo nos
seguintes termos: «é uma sociedade onde cada um contribui para o bem comum
de acordo com as suas capacidades, e cada um recebe de acordo com as suas
necessidades».
A frase, contudo, não é original: é de Karl Marx e
foi escrita em 1875 num dos seus panfletos mais influentes, a Crítica
ao Programa de Gotha. Aí ele também define a sociedade que deseja: «De
cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades».
Pormenor importante: a sociedade a que Marx se
referia não era a sociedade socialista, mas sim a utópica sociedade comunista.
Vale a pena ler (e comparar) não apenas aqueles
dois extractos, mas as frases inteiras, começando por António Costa, 22 de
Setembro de 2016:
Entender que é absolutamente essencial trabalhar, é
essencial investir, que é importante poupar, que é boa uma sociedade de
iniciativa, mas também quero uma sociedade que seja decente e uma sociedade
decente é uma sociedade onde cada um contribui para o bem comum de acordo com
as suas capacidades, e cada um recebe de acordo com as suas necessidades. E que
a prosperidade gerada por todos possa ser justamente partilhada por todos. Foi
esta sociedade que eu aprendi na minha casa a acreditar».
E agora Karl Marx, no Crítica ao Programa
de Gotha, 1875:
Quando, com o desenvolvimento dos indivíduos em
todos os seus aspectos, crescerem também as forças produtivas e jorrarem em
caudais os mananciais da riqueza colectiva, só então será possível ultrapassar-se
totalmente o estreito horizonte do direito burguês e a sociedade poderá
inscrever em suas bandeiras: De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual,
segundo suas necessidades.»
Este texto do autor do Manifesto do Partido
Comunista e de O Capital tem um significado especial
pois o Programa de Gotha a que se refere é o programa que seria aprovado no
congresso que daria origem ao Partido Social-Democrata alemão. Marx
considerava, na sua crítica violenta aos socialistas alemães, que esse programa
não correspondia a uma plataforma revolucionária, antes a um compromisso
reformista baseado no «revisionismo» dos fundamentos essenciais do marxismo.
Mais: para Marx era necessário, para chegar ao socialismo e ao comunismo,
passar por uma fase que designou como «ditadura do proletariado», conceito que,
de resto, desenvolve nessa sua obra.
Vivíamos uma época em que o movimento socialista se
começava a dividir: de um lado, os revolucionários que seguiriam a linha mais
ortodoxa defendida por Marx na sua crítica à plataforma dos social-democratas
alemães; do outro lado, os socialistas reformistas que preconizavam mudanças
graduais, favoráveis aos trabalhadores, no quadro de regimes democráticos. Os
primeiros dariam origem aos partidos comunistas, os segundos aos partidos
socialistas e social-democratas que seriam centrais nas reformas que levariam
aos modernos Estados Providência.
Para Marx, na sua Crítica ao Programa de
Gotha, uma sociedade que funcionasse de acordo com o princípio «de cada
qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades»
corresponderia ao estádio supremo do comunismo, tendo mais tarde Lenine, o
fundador da União Soviética, popularizado essa definição. Fê-lo, nomeadamente,
numa das suas obras mais conhecidas, O Estado e a Revolução, onde
cita aquela passagem do livro de Marx antes de explicar que, para chegar a essa
sociedade ideal, era necessário passar por várias fases, nomeadamente a
«expropriação dos capitalistas» e o controlo pelo Estado de todas as forças
produtivas.
Já o socialismo, mesmo sendo visto como uma fase de
transição para o comunismo, caracterizar-se-ia antes por ser aquela sociedade
onde cada um receberia de acordo com a sua contribuição. A concretização desse
princípio não supunha – o que mereceu a crítica de Marx – a superação daquilo
que designava como a «ordem burguesa».
Refira-se ainda que a intervenção de António Costa
surgiu depois de Assunção Cristas lhe ter pedido para se diferenciar dos que,
na esquerda radical, acham que «para acabar com a pobreza é preciso acabar com
a riqueza».
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