segunda-feira, 7 de março de 2016


Como sobreviver sem depender do estado

ou do partido, sem ser maçon nem gay

e sem estar no facebook?


Miguel Sousa Tavares, Expresso, 5 de Março de 2016

O quê, você não trabalha para o Estado? E não tem partido político? Ao menos, pertence à Maçonaria ou ao lóbi GLBT? Não é nada disso e também não tem Facebook? Eh, pá, o melhor é emigrar. Aqui não tem futuro

1 — Sabe, meu caro João Soares, o problema da substituição de António Lamas por Elísio Summavielle nem é a forma espalhafatosa, e no mínimo deselegante, como a levou a cabo. O problema nem é a sua atitude de quero, posso e mando, que confunde com estilo e autoridade. O problema nem é assistirmos a mais um dos intermináveis episódios de «muda o Governo mudam os boys» a que já todos estamos habituados e conformados. O problema nem é os custos que isso terá para os contribuintes, quando o substituído ganhar a sua indemnização em tribunal – podemos levá-los à conta de custos da democracia. O problema nem é a explicação que deu de que não gostava do plano Belém-Ajuda e que, em vez de mudar apenas o plano, tinha de mudar primeiro o executor. O problema nem é a competência do novo responsável pelo CCB – que, de boa vontade, presumo – ou a competência do ministro para decidir qual dos dois era mais competente para o CCB. O problema nem é o nomeado ser seu amigo. Ou seu correligionário partidário. O problema é ser seu irmão na Maçonaria. É isso que me põe logo de pé atrás. Pergunto-lhe: em Portugal inteiro, não conhece ninguém que fosse igualmente ou mais competente, não sendo seu amigo, seu camarada de partido e seu irmão de avental? Desculpe a pergunta: é a isto que chegámos?

Na página 3 da última edição deste jornal vinha uma notícia cujo título era este: «Sucessão das Secretas abre guerra na Maçonaria». Reproduzo o primeiro parágrafo: «A possibilidade de substituição do secretário-geral dos Serviços de Informação da República Portuguesa (SIRP) com a chegada do novo Governo abriu campo a uma guerra surda entre as duas principais obediências da Maçonaria, que disputam o cargo.» É a isto que chegámos. A falta de vergonha tornou-se a normalidade.

Eu não duvido que a Maçonaria – nas suas origens, talvez – era uma organização dotada de excelentes princípios e objectivos. O que não impediu que alguns dos mais notórios bandidos que este país conheceu recentemente fossem maçons – não sei se por coincidência, se por necessidade. Mas hoje, vivendo em democracia, a persistência de uma organização secreta cujos objectivos principais estão reflectidos no Estado democrático não só não faz sentido como dá que pensar. Para que serve hoje a Maçonaria, se não como associação de socorro e ajuda mútua entre os seus membros, através do tráfico de influências na política, no mundo empresarial e no aparelho de Estado? Quando se chega ao ponto de a Maçonaria e os Serviços Secretos estarem intimamente ligados e penetrados (como se viu na patética história de vida do patético «superespião» Silva Carvalho), só podemos concluir duas coisas: uma, que os Serviços Secretos não servem para nada, como sempre desconfiei, excepto para criar despesa e sarilhos: outra, que a Maçonaria, sim, serve para alguma coisa, mas essa alguma coisa não se recomenda.

2 — Extraordinária reportagem no «DN», onde a jornalista especializada (ou melhor, estagnada) no universo gay-lésbico Fernanda Câncio (quem havia de ser?) descobriu que as Happy Meals do McDonald´s faziam discriminação sexual, dando brinquedos diferentes aos rapazes e às raparigas e permitindo-se ainda manter um questionário diferente para ambos os sexos das crianças. Que horror, o McDonald´s permite-se oferecer Transformers aos rapazes e My Little Ponies às meninas, desrespeitando a livre orientação sexual de cada um, que não pode ser presumida nem orientada desta forma homofóbica! Mas isto é admissível? Não, não é, mas felizmente temos a Câncio, autêntica polícia dos novos costumes e guardiã da nova verdade. O seu texto no «DN» é um verdadeiro manual dos novos inquisidores das verdades estabelecidas como tal. Em breve, presume-se, ela sairá em cruzada contra as lojas que têm secções de brinquedos separados por sexos, ou roupa separada por sexos, ou até casas de banho separadas por sexos. Ela irá espiolar os manuais escolares, os livros infantis, os folhetos de instruções dos electrodomésticos, os códigos da NASA, as regras da FIFA – já para não referir os rituais da Maçonaria –, até extirpar de todo o mundo civilizado essa noção retrógrada de que há diferenças entre os sexos ou até de que existem sexos diferentes.

O nível de sectarismo arrogante e ditatorial destas causídicas só deve ser levado a sério na justa medida em que há quem as leve a sério e se deixe intimidar por elas. É o caso da secretária de Estado da Igualdade, Carolina Marcelino (por que razão tudo o que é Igualdade – Comissão, Associações, Secretaria de Estado – tem sempre de ser presidido e ocupado quase em exclusivo por mulheres: onde está a igualdade?). Aterrorizada pela jornalista, a senhora secretária de Estado nem hesitou: «Não há brinquedos de menino e de menina… Isto é uma atitude discriminatória que reforça os estereótipos de género.» O Governo, garantiu a senhora, vai já encarregar a Comissão de Igualdade de seguir o assunto junto da McDonald´s, pois «não podemos concordar com essa discriminação». Ó minha senhora, diga-me lá se por acaso tem um filho e uma filha, para eu, no próximo Natal, mandar uma metralhadora para a menina e uma Barbie para o menino.

3 — Não se passa praticamente um dia em que eu não fique confortado com a minha decisão de jamais me sentir tentado a frequentar redes sociais. Porque nunca senti a pulsão de partilhar com desconhecidos os meus pensamentos íntimos, actividades domésticas ou fotografias pessoais e porque poupo nisso um tempo que já é escasso de mais para o que me interessa fazer. E porque, além disso, as redes sociais sempre me pareceram um Big Brother ao contrário – voluntário e das massas para o líder oculto –, sendo óbvio que, mais cedo ou mais tarde, os registos deixados, e que nunca são apagados, se virarão contra os seus frequentadores. Veja-se o caso da acima citada secretária de Estado da Igualdade, Carolina Marcelino. Antes desta faceta igualitária, por que outros motivos era ela conhecida? Por ter escrito no Facebook a frase: «Não tenho por hábito fazer sensura, mas não tulero insultos… e com grande probalidade bloquiarei no meu facebook o autor/a.» É verdade que a sua gramática de primeira classe a não impediu de subir a mais altos voos, mas lá que ficou registado… ficou. E não há igualdade de estereótipo que apague o que ficou escrito.

O facto de ser um auto-excluído do palpitante mundo das redes sociais não impede, é claro, que também seja um alvo exposto da turba anónima, cobarde e ordinária que por lá destila ódios, invejas e mais insultos por centímetro quadrado que uma claque de futebol. Mas, mesmo então, há um gozo que não lhes dou, que é lê-los. Podem insultar-me à vontade, inventarem todas as calúnias que quiserem, que eu não dou por nada. Só presto atenção a quem dá a cara, responde pelo que diz e foi educado em pequeno. Vem isto a propósito da solidariedade devida ao meu colega deste jornal, Henrique Raposo, alvo de um miserável auto-de-fé nas redes sociais, por se ter atrevido a escrever um livro sobre o Alentejo onde relata coisas que alguns alentejanos não gostaram. Um tipo fez-se fotografar no Facebook a queimar o livro dele, milhares de outros lançaram um movimento para o proibir e até a polícia foi chamada para precaver tumultos no lançamento. Não me interessa o que diz o livro, se diz coisas que são verdade, que já foram ou que nunca o foram. Democracia, direito à indignação, dizem eles. Não: direito à intransigência, à intimidação e à mais larvar estupidez.


Miguel Sousa Tavares
escreve de acordo com a antiga ortografia





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