Alberto Gonçalves, Diário
de Notícias, 22 de Maio de 2016
Parece que a SIC exibe regularmente um programa
chamado E Se Fosse Consigo?, que segundo os autores «testa a
capacidade de intervenção dos portugueses na defesa do outro, a partir de
situações ficcionadas». O problema é que nem todas as situações até agora
ficcionadas exigem intervenção alheia, de portugueses ou de quem calha. Que eu
visse — e não vi tudo dado passar imenso tempo à procura do «outro»
para defender —não há simulação de terramotos, guerras, terrorismo
islâmico, Rock in Rio ou calamidades afins. Há, ao que pude espreitar no site
da estação, o tipo de comportamentos patetas que inspiram as almas sensíveis a
fomentar a denúncia ao Estado, o Estado a produzir leis, as leis a legitimar um
observatório e duas comissões de protecção (ou metade de um ministério).
Trata-se, claro, da «agenda» própria da época, que
segrega bem segregadinhos os «oprimidos» (mulheres, gays, minorias étnicas,
pobres, obesos, etc.) e os «opressores» (machos brancos, de preferência
endinheirados) por categorias rígidas, num processo de simplificação que oscila
entre o atraso mental e o puro preconceito. E, algures no meio, os tiros nos
pés: parafraseando a Helena Matos, quantas apresentadoras da SIC são gordas,
aborígenes, lésbicas e habitam um T2 de renda técnica em Chelas?
Num dos «casos» transmitidos, sobre o (atenção:
aproximação de linguagem «especializada») bullying, três crianças aliviam a
mochila de uma quarta e, enquanto lhe chamam «princesa», atiram-lhe os cadernos
ao chão. Desde Treblinka que não se via semelhante drama humano. A SIC, porém,
entende que tamanha irrelevância é de uma gravidade extrema, ou pelo menos a
suficiente para que cada transeunte «consciente» (os restantes são uns
bandalhos) ajude a vítima, a qual, se não for completamente choninhas, acabará
ainda mais enxovalhada. Noutro «caso», uma senhora reclama, sem grande
convicção (os «actores» não foram exactamente recrutados na Julliard), das
intimidades de um casal homossexual na paragem de autocarro.
Mas o episódio de que se fala tenta exemplificar,
evidentemente sem o conseguir, a violência no namoro. Num parque, um casal
heterossexual (os homossexuais não têm desavenças) discute a propósito de um
telemóvel. O rapaz encarrega-se do berreiro (as raparigas nunca levantam a voz)
e das agressões, cujo alvo é um banco de jardim. A cena é tão ridícula e mal
interpretada (?) que, naturalmente, leva quase todos os transeuntes a passar ao
largo, com receio de interferirem nas filmagens de Morangos com Açúcar. Uma
senhora, porém, atira-se de cabeça para o vórtice da discussão: coincidência
das coincidências, é a dona Catarina do Bloco de Esquerda, que oferece ajuda à
rapariga (o banco só se salvaria pela nacionalização imediata) e descarrega um
sermão em cima do rapaz. O rapaz, com auricular e vontade de rir, olha para a dona
Catarina. A dona Catarina olha para a câmara e dá o aval à coisa. A SIC
exibe-a. O país descobre uma heroína.
Não pretendo insinuar que a SIC manipula o
entretenimento de modo a favorecer políticos da sua simpatia, e que a dona
Catarina participou na encenação. Pela seriedade com que engole as cabeludas
patranhas que lhe põem à frente, apenas verifico que a credulidade dela em
matérias políticas, económicas e sociais se estende aos pormenores do
quotidiano. Subiu na minha consideração, perdão, comiseração.
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