José António Saraiva
A conclusão do caso Freeport, conhecida na semana passada, foi a terceira tentativa para dar cabo do processo. E parece que resultou.
A primeira investida data de 2004. Procurou-se então matar o caso ‘no ovo’ – fazendo passar a ideia de que se tratava apenas de uma manobra política (orquestrada por Santana Lopes) para atingir José Sócrates. Confesso que aceitei esta versão.Sócrates, como ministro do Ambiente, projectava a imagem de governante determinado, que cortava a direito, não cedia a pressões nem fazia favores – sendo natural que o tentassem denegrir.
Assim, quando em 2008 a jornalista Felícia Cabrita me voltou a falar do tema, torci o nariz.
Mas agora havia mais matéria: havia uma carta da Polícia inglesa, havia uma reunião do Eurojust em Haia onde o processo tinha sido tratado.
Mesmo assim exigi documentos, provas.
E elas começaram a pingar.
Publicámos a primeira notícia, que o PGR se apressou a desmentir – mas o processo lá começou a fazer o seu caminho, provocando inúmeros incómodos.
Quando o Freeport já assumira grande importância e era um caso nacional, soube-se que Lopes da Mota, o representante de Portugal no Eurojust, tinha feito pressões junto dos magistrados portugueses, invocando os nomes do ministro da Justiça e do primeiro-ministro, para o processo ser arquivado.
Era a segunda tentativa para abafar o caso.
E aqui eu percebi que havia qualquer coisa escondida.
Se o tema era inócuo, como se justificavam tantos cuidados?
Se tudo tinha sido legal, porque havia tanto medo?
Mas o freeport lá continuou a avançar – e na semana passada a Procuradoria anunciou a conclusão do processo, acusando dois indivíduos e ilibando José Sócrates.
O primeiro-ministro veio a público cantar vitória – e os seus apoiantes embandeiraram em arco: provava-se que Sócrates estava totalmente inocente!
Só que, no dia seguinte, o Público revelava que o caso tinha sido encerrado às três pancadas – e que todas as dúvidas que envolviam Sócrates se mantinham intactas.
Mais: os magistrados faziam questão de incluir no processo as 27 perguntas que não tinham tido ocasião de colocar ao primeiro-ministro – e que, no fundo, ficavam a pairar como outras tantas suspeitas.
Durante o tempo que durou este processo fiz várias vezes a mim próprio a seguinte pergunta: como se explica que, tendo o nome de Sócrates sido tantas vezes referido, os investigadores não o tenham ouvido?
Como se percebe que, sendo ele o principal responsável do Ministério que esteve no centro de toda a polémica, não tenha sido chamado a dar explicações?
Como se entende que, sendo o superior hierárquico de vários arguidos no processo, não tenham precisado de lhe perguntar coisa nenhuma?
Não era compreensível.
Agora entendi: os investigadores queriam acumular o máximo de dados antes de ouvirem Sócrates.
Sendo ele agora primeiro-ministro, preferiram juntar todas as dúvidas para o ouvirem de uma assentada.
Só que, quando o iam fazer, o PGR mandou encerrar o processo.
Como um árbitro que apita para o fim do jogo quando vai ser marcado um penálti.
A decisão do PGR custa muito a entender.
Ninguém percebe por que razão o caso Freeport teve de ser fechado à pressa – quando, na mesma semana, a sentença do caso Casa Pia, anunciada com grande aparato, foi adiada por um mês.
No Freeport o PGR funcionou uma vez mais como um pára-choques do primeiro-ministro.
O que não espanta: em caso de dúvida, ele tem decidido invariavelmente a favor de José Sócrates.
Pinto Monteiro iniciou o seu mandato cheio de boas intenções.
As suas primeiras declarações eram frontais e revelavam independência.
Só que, com o acumular de casos envolvendo o chefe do Governo, o PGR foi--se sentindo encurralado pela comunicação social – e foi-se deixando encostar ao primeiro-ministro (num processo semelhante, aliás, ao que ocorreu com Marinho Pinto).
Ao ponto de podermos dizer que José Sócrates e Pinto Monteiro combatem hoje ombro a ombro na mesma trincheira: as críticas a um são vistas como críticas ao outro.
Para isso também contribuirá a amizade antiga de Pinto Monteiro com Proença de Carvalho – que por sua vez é advogado de Sócrates.
Uma última nota para o próprio Sócrates.
O primeiro-ministro decerto soube as condições em que o processo Freeport foi encerrado – e as perguntas que os magistrados queriam fazer-lhe e não puderam.
Ora como é que, sabendo isso, se prestou a fazer a declaração que fez, congratulando-se por ter sido completamente ilibado?
Como foi possível? Ao menos tinha ficado calado – e não vinha a público fazer aquele número de teatro. Para o primeiro-ministro já tudo é farsa, representação?
O certo é que, neste estranho caso, Sócrates acaba mais suspeito do que começou – porque as dúvidas sobre alguns dos seus actos ficaram registadas no processo para a posteridade.
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