terça-feira, 12 de março de 2013

Mais reflexões sobre Forças Armadas (I)

João J. Brandão Ferreira

«Que cada ideia política tenha natural direito a participar do Poder, a fazer a Lei da Comunidade – eis o absurdo da política «democrática». Mas fazer do Estado e, no fim de contas, da Nação, criaturas de uma só ideia, à qual se atribui, por um acto de vontade, valor absoluto – eis o absurdo da política totalitária».
Henrique Barrilaro Ruas
(«A Liberdade e o Rei», p. 207)

Aqui ficam mais umas achegas sobre o que para aí vai relatividade às supostas «reformas» das Forças Armadas (FAs), que de reformas não têm nada, apenas levando (visando?) a sua completa inanidade.

Queremos começar por dizer que quando se trata a Instituição Militar se deve tentar estabelecer dois patamares de discussão: o primeiro enquanto instituição enformadora da nação dos portugueses e pilar fundamental do Estado; o outro relativamente à condição dos seus servidores (não funcionários). Tendo, todavia, em conta que os dois patamares se tocam e entrelaçam.

Em Portugal temos o péssimo e ancestral hábito de, só raramente arrumar os assuntos da História. Daí que tenhamos tantos ou mais mistérios e dúvidas do que factos e coisas bem entendidas. Há várias razões para isto, mas não vamos hoje por aí.A questão da reestruturação e redimensionamento das FAs colocou-se, de forma brutal, a seguir à retirada de pé descalço, que muitos apelidaram de «descolonização».

E brutais foram as condições e a forma como se teve que realizar, o que também não tem paralelo com qualquer outro sector do Estado e da Nação.[1]

Dos cerca de 230.000 militares distribuídos por quatro continentes e outros tantos oceanos, estabilizou-se no território europeu que restava entre 75 a 80.000 efectivos, por alturas de 1980. Estes efectivos foram sendo progressivamente reduzidos até aos números de hoje: cerca de 38.000.

E foi preciso mudar tudo: dispositivo, sistema de forças, material, doutrina, táctica, logística, tudo.

Isto dava páginas e a sua história e contabilidade nunca foi feita.

Como acontece no fim de qualquer guerra, o número de oficiais e sargentos do quadro permanente encontra-se sempre inflacionado relativamente às necessidades de tempo de paz e a sua redução é sempre uma questão delicada e que precisa de tempo (e dinheiro) para ser bem resolvida.

E, neste âmbito, havia também um número elevado de pessoal civil regressado do Ultramar.

Se tivermos ainda em conta as loucuras do «PREC» pode afirmar-se, sem receio de contestação, de que o ajustamento conseguido na Instituição Militar correu até, muito bem.

E tudo se passando sem que os governos constitucionais tivessem grande controlo em tudo o que se passou.

Podemos, ainda, estabelecer que o processo revolucionário só acabou, definitivamente, para as FAs com o fim do Conselho da Revolução e do Pacto MFA-Partidos, em 1982, o que ficou selado com a Lei da Defesa Nacional e das FAs, publicada nesse ano.

A partir daqui as relações político-militares passaram a basear-se em equívocos, sendo os principais os seguintes:

— Não se tendo feito nunca, até hoje, o balanço e consequências do que se tinha passado entre 25/4/74 e 1982, partiu-se para o futuro sem qualquer base sólida e muitas mentiras à mistura;

— Não se tendo julgado ninguém, nem a nível político nem a nível militar, entendeu-se que o tempo resolveria as injustiças;

— O que estava para trás estava tudo mal (ou quase) e devia ser banido – sobretudo em termos históricos, políticos e de estratégia;

— A nível Político assumiu-se que não havia mais ameaças e os riscos eram poucos; que «todo o mundo» passou a ser amigo de Portugal, naturalmente porque nós seriamos amigo de todos;

— Que iria passar a haver um Ministro da Defesa – o que nunca foi posto em prática; e que o Poder Político tinha boas intenções relativamente às FAs e aos militares o que está longe de estar provado e originou um permanente «passo-trocado».

Finalmente houve um equívoco, que foi sempre um falso equívoco: o de que se pode fazer uma qualquer reestruturação séria sem se dispor de um investimento inicial.

Ora acontece que nunca houve investimento em nada – está agora aí o exemplo do Hospital das FAs – o que houve sim, foi cortes a eito!

Basta dizer que desde 1982 para cá já foram encerradas cerca de 120 unidades e órgãos dos três ramos, com destaque para o Exército.[2] Em contrapartida só se registou a construção de dois quarteis novos: a Escola Prática de Administração Militar, na Póvoa do Varzim (por troca dos terrenos que previamente ocupava em Lisboa), e o Depósito Geral de Material de Guerra, em Alcochete (por causa da Expo 98 ter obrigado à demolição do existente).

No mais, quase todas as restantes infra-estruturas feitas, sobretudo na FA, foram pagas com dinheiro da NATO.

*****

Como as relações se basearam em equívocos – que até hoje ninguém teve a coragem e o discernimento de denunciar, confrontar e tentar estabelecer um relacionamento sério e saudável para o futuro – passou-se a viver numa espécie de teatro de sombras, onde raramente se fala verdade ou os interlocutores se confrontam. Parece o jogo do gato e do rato…

À medida que os partidos políticos foram conseguindo organizar-se minimamente – aquilo é um saco de gatos onde impera uma vivência pouco edificante (excepção para o PCP onde a coisa fia mais fino) – os sucessivos governos e parlamento começaram a montar o cerco à IM.

Tal começou a tomar forma expressiva a partir de 1989 e também se reflecte na actuação dos PR.

Daí para a frente os executivos, baseados na lógica da luta partidária, exploraram ao máximo três coisas – para além do continuado asfixiamento financeiro, administrativo e em pessoal: as «competências» que foram criando sucessivamente, no sentido de transformarem as chefias militares numa espécie de «bonecos articulados»; as restrições que a «condição militar» impõem aos militares em termos de «direitos, liberdades e garantias» e a usarem a influência da comunicação social contra a IM.

De resto as FAs foram reestruturadas através da Lei 29/82 (Lei da Defesa Nacional e das FAs), sucessivamente alterada em 1983, 1991, 1995, 1999, 2001 e 2007. Em 2009 a Lei 31/A, revogou tudo o que existia!

Por sua vez as FAs reestruturaram-se, em termos globais, através das Leis-Base, a última das quais é a 1/A de 2009, que revogou a 111/91 e a sua alteração de 1995!

Pelo meio houve variadíssimas reduções e transformações avulsas, a mais importante das quais talvez se possa considerar a chamada «Lei dos Coronéis», que enviou para a reforma mais de 2000 oficiais e sargentos, pagando-lhes, em média, metade do valor atribuído, anteriormente, aos estivadores dos portos.

Para além de tudo isto, os diferentes governos esmeraram-se em não cumprir parte da legislação que enviavam para promulgação. É desta forma que os CEDN, CEM, LPM, outros documentos enformadores e leis gerais, passaram a ser encarados como simples papéis onde estão dados de referência a cumprir conforme as conveniências de momento. Sempre com o descarado cuidado, de irem afirmando tudo ser feito com a concordância dos chefes militares.

Infelizmente nunca houve nenhum deles que tivesse coragem para os desmentir. Há limites para o «sentido de estado» e este não deve ter as costas largas.

Para rematar, os senhores políticos têm usado de metodologia eticamente reprovável, que se resume basicamente em duas linhas de acção: quando as coisas não correm do seu agrado formam um grupo de trabalho fora da estrutura dos Ramos e EMGFA, às vezes à revelia da hierarquia, onde passaram cada vez mais a inocular «especialistas» civis, até chegar ao ponto de lhes outorgar a própria chefia dos mesmos. Desta maneira torna-se mais fácil «albardar o burro à vontade do dono», como soi dizer-se em linguagem popular.

Por outro lado, são useiros e vezeiros em enviar documentos já devidamente cozinhados para que as entidades militares dêem o seu parecer, mas com um prazo de tal modo limitado que inviabilize esse mesmo parecer. Isto para já não falar dos documentos aprovados com olímpico desprezo dos pareceres elaborados.

Infelizmente também se ignora se algum membro da hierarquia se deu ao respeito e se doeu por estas práticas pouco apropriadas a gente séria.

Agora com a desculpa da «Troika» multiplicam-se as declarações, GT e perspectivas de reformas (leia-se cortes).

Será que ainda ninguém disse ao Sr. Ministro e aos seus colegas, que se têm comportado como umas baratas tontas, que a IM não é propriamente uma empresa qualquer e que a sua orgânica e leis enformadoras devem ser apenas mudadas por razões ponderosas da política e da Estratégia e não de tesouraria?

Ou será que os cortes nas FAs – que não fazem greves – são para pagar os muitos milhões de prejuízos causados à economia nacional por quem as provoca?


[1] A não ser nesse «milagre» de solidariedade nacional – apesar de muitas injustiças cometidas – que foi a reintegração na sociedade portuguesa europeia de cerca de 700.000 compatriotas que tiveram que abandonar – em circunstâncias trágicas e aleivosas – as vidas que levavam nos territórios ultramarinos. Milagre em que os militares também participaram.

[2] Estes números deviam estar tratados. Só num decreto-lei de 1997 (se a memória me não falha) estavam 22 «prédios» militares à venda em hasta pública. Incluindo um palácio em Caxias e o Forte da Graça, em Elvas, uma das mais notáveis fortificações militares existentes no mundo!


Inexplicavelmente as autoridades militares não tornam público, quase nada do que se vai fazendo, não se conseguindo vislumbrar a mais tímida estratégia de comunicação social. As autoridades políticas primam pelo olímpico desprezo e quanto à maioria dos OCS deixo aos leitores qualificar a sua acção.




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