João
Pereira Coutinho (Folha
de S. Paulo, 4 de Junho de 2013)
O acordo ortográfico é conhecido em Portugal como o
aborto ortográfico. Difícil discordar dos meus compatriotas. Basta olhar em
volta. Imprensa. Televisões. Documentos oficiais. Correspondência privada.
Antes do acordo, havia um razoável consenso sobre a
forma de escrever português. Depois do acordo, surgiram três «escolas» de
pensamento.
Existem aqueles que respeitam o novo acordo. Existem
aqueles que não respeitam o novo acordo e permanecem fiéis à antiga ortografia.
E depois existem aqueles que estão de acordo com o
acordo e em desacordo com o acordo, escrevendo a mesma palavra de duas formas
distintas, consoante o estado de espírito – e às vezes na mesma página.
Disse três «escolas»? Peço desculpa. Pensando melhor,
existem quatro. Nos últimos tempos, tenho notado que também existem portugueses
que escrevem de acordo com um acordo imaginário, que obviamente só existe na
cabeça deles.
Felizmente, não estou sozinho nestas observações:
Pedro Correia acaba de publicar em Portugal «Vogais e Consoantes Politicamente
Incorrectas do Acordo Ortográfico» (Guerra & Paz, 159 págs). Atenção,
editores brasileiros: o livro é imperdível.
E é imperdível porque Pedro Correia narra, com estilo
intocável e humor que baste, como foi possível parir semelhante aberração.
Sem surpresas, a aberração surgiu na cabeça de duas
dezenas de iluminados que, em 1990, se reuniram na Academia de Ciências de
Lisboa para «determinar» (atenção ao autoritarismo do verbo) como os 250
milhões de falantes da língua deveriam escrever. Qual foi a necessidade teórica
ou prática do conluio?
Mistério. Em todos os países de língua portuguesa, com
a excepção do Brasil, respeitava-se o acordo de 1945. E nem mesmo as diferenças
na ortografia brasileira incomodavam os portugueses (ou vice-versa).
Nunca ninguém deixou de ler Saramago no Brasil por
causa do «desacordo» ortográfico. Nunca ninguém deixou de ler Nelson Rodrigues
em Portugal pelo mesmo motivo.
Acontece que as cabeças autoritárias sempre
desprezaram a riqueza da diversidade. Em 1986, no Rio de Janeiro, conta Pedro
Correia que já tinha havido uma tentativa ainda mais lunática para «unificar» a
língua, ou seja, para unificar 99,5% das palavras (juro). Como?
Por uma transcrição fonética radical que gerou termos
como «panelenico» (para «pan-helênico») ou «bemumurado» (para «bem-humorado»).
Será preciso comentar?
O novo acordo é menos radical desde logo porque admite
«facultatividades» que respeitem a «pronúncia culta» de cada país. Deixemos de
lado a questão de saber se a escrita pode ser mera transcrição fonética (não
pode) ou se a etimologia deve ser ignorada nas «simplificações» acordistas (não
deve).
Uma deficiente interpretação do que significam essas «facultatividades»,
conta o autor, levou o governo português, no seu Orçamento do Estado para 2012
(o documento central da política lusa), a escrever a mesma palavra de formas
diferentes: «ópticas» e «óticas»; «efectiva» e «efetiva»; «protecção» e «proteção»;
e etc. etc.
Mas mais hilariantes são os casos em que a aproximação
portuguesa ao Brasil gerou palavras que nem no Brasil se usam. No novo acordo, «recepção»
perdeu o «p»; no Brasil, o «p» continua. O mesmo para «acepção», «perspectiva»
e por aí fora.
Perante este aborto ortográfico, que fazer?
Curiosamente, Angola e o Brasil já fizeram muito: a
primeira, recusando-se a ratificá-lo; o segundo, adiando a sua aplicação.
Só os portugueses continuam a marrar contra a parede –
e, pior, a marrar contra uma ilegalidade: o tratado original do Acordo
Ortográfico de 1990 garantia que o mesmo só entraria em vigor quando todos os
intervenientes o ratificassem na sua ordem jurídica. Essa intenção foi
reafirmada em protocolo modificativo de 1998.
Mas eis que, em 2004, há um segundo protocolo
modificativo segundo o qual bastaria a ratificação de três países para que o acordo
entrasse em vigor.
Não é preciso ser um génio da jurisprudência para
detectar aqui um abuso grosseiro: como permitir que o segundo protocolo tenha
força de lei se ele nem sequer foi ratificado por todos os países?
O resultado é o caos. Como escreve Pedro Correia, um
caos «tecnicamente insustentável, juridicamente inválido, politicamente inepto
e materialmente impraticável».
Para usar uma palavra bem portuguesa, «touché»!
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