Um mito em desconstrução
José António Saraiva, Sol
Tinha decidido não voltar a
escrever sobre Mário Soares, porque este deixou de fazer parte do mundo da
política para integrar outra realidade, outro mundo, outra galeria de
personagens.
Não faz hoje qualquer
sentido comentar «politicamente» as afirmações do fundador do PS. Mas existe um
problema de outra natureza: Mário Soares está a destruir dia após dia a imagem
respeitável que construiu ao longo de décadas.
Todas as vezes que abre
hoje a boca retira mais uma pedra da sua estátua imaginária. Vai pondo a nu os
defeitos que antes conseguia esconder – e lança dúvidas sobre algumas
qualidades que se lhe reconheciam.
Soares nunca foi um
ideólogo, nem um pensador, nem um modelo de virtudes, nem um poço de cultura,
nem sequer um estadista. Soares sempre foi um hábil «manejador da política»,
pouco preocupado com a coerência, implacável com todos os que se lhe
atravessaram na frente, egocêntrico em alto grau Colocou-se sempre a
si próprio à frente de tudo – da família, do partido e mesmo do país.
Mas a habilidade com que
manejava a política foi escondendo as características negativas e valorizando
as virtudes. Encontrei muita gente, tanto à esquerda como à direita, que olhava
para Mário Soares com uma veneração quase religiosa. Ora, esta sua involução
acelerada está a pôr tudo em causa. Há quem diga que isso tem pouca
importância, porque aquilo que de bom Soares fez está feito, a obra está lá – e
o que ele diz agora é irrelevante. É fácil ver como isto não é verdade.
O processo começou em 1999,
quando Mário Soares se candidatou imponderadamente à presidência do Parlamento
Europeu e foi derrotado por Nicole Fontaine. Soares tinha algum prestígio na
Europa – e esse passo em falso levou-o a perder um pouco da aura que criara
(até pela sua reacção à derrota, dizendo que a mulher que o venceu deveria era
estar em casa de avental).
Depois foi a recandidatura,
também insensata, à Presidência da República Portuguesa, em 2005.
Soares tinha saído de Belém venerado pelos portugueses quase como um Rei
– e este novo passo em falso, agravado pelo facto de nem sequer ter
conseguido ficar em 2.º lugar, retirou-lhe algo do que ganhara na passagem pela
Presidência. Outra coroa de louros de Soares tinha que ver com
o modo como evitara a bancarrota em 1983, quando era primeiro-ministro, impondo
(com a ajuda de Ernâni Lopes) uma corajosa política de austeridade.
Ora, as violentas críticas
que agora faz à austeridade ofuscam de certo modo esse seu feito, lançando
legítimas dúvidas sobre a convicção com que agiu naquela época.
Mas a história não acaba
aqui. A imagem de marca que Soares construiu no período escaldante do
pós-25 de Abril foi a de um político pragmático e moderado, que não
embarca em aventuras e não se deixa tentar pelas ilusões revolucionárias, muito
em voga nos meios intelectuais daquela época.
Ora, a linguagem radical e
descabelada que agora utiliza, e a participação em manifestações frentistas de
braço dado com o PCP e o Bloco de Esquerda, está a apagar essa imagem moderada.
Finalmente, em 1975, quando o PCP dominava a rua e promovia sucessivas
manifestações para assustar e condicionar o Governo, Soares insurgiu-se contra
o «poder popular», afirmando o primado do voto nas urnas sobre as acções de
rua, e bateu-se pela realização de eleições. Ora, hoje afirma que o
actual Governo, saído do voto, é «ilegítimo» – e valoriza sobretudo os desfiles
nas ruas e as manifestações anárquicas de descontentamento.
Pedra atrás de pedra, Mário
Soares vai desconstruindo a estátua que ergueu dentro da cabeça de muitos
portugueses. Nessa tarefa de destruição sistemática colaboram jornalistas sem
grandes escrúpulos que sabem que, quando lhe colocam um microfone à frente,
Soares não resiste a falar e
diz normalmente uma bojarda qualquer.
E há directores de jornais que, na ausência de manchete para o dia seguinte, ligam a Soares sabendo que dali sairá qualquer coisa «chocante» que ajudará a disfarçar a falta de notícias. Mas não é decente explorar assim as pessoas. O passado de Soares não merecia estes tratos de polé.
E há directores de jornais que, na ausência de manchete para o dia seguinte, ligam a Soares sabendo que dali sairá qualquer coisa «chocante» que ajudará a disfarçar a falta de notícias. Mas não é decente explorar assim as pessoas. O passado de Soares não merecia estes tratos de polé.
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