João J. Brandão Ferreira
Por razões judiciais tenho feito alguma
pesquisa no arquivo do Ministério da Defesa, onde se encontra
documentação muito interessante, infelizmente ainda longe de estar toda
identificada e tratada.
Encontrámos uma miríade de transcrições de emissões de rádios estrangeiras
algumas das quais possuíam programas preparados e emitidos por «exilados»
portugueses que militavam em Partidos e organizações que lutavam contra o
Regime Político instituído em Portugal, em 1933.
Ocorreu-me que seria interessante transcrever alguns trechos dessas
emissões para os contemporâneos puderem avaliar o que então se dizia (e as
queixas e «denúncias» que se faziam) – na substância e na forma – e
poderem comparar com aquilo que se passou a seguir à «Revolução» do
25/4/1974 e com o que se passa hoje em dia.
Não farei comentários deixando a cada um retirar as suas conclusões.
Vou cingir-me à «Rádio Voz da Liberdade, órgão da «Frente Patriótica de
Libertação Nacional» (FPLN), que emitia a partir de Argel, entre 1964 e 1974.[1]
Eis o 2.º texto lido em 23/10/1966, com o título «Uma Guerra Perdida».[2]
«A SITUAÇÃO NA
GUINÉ»
– o P.A.I.G.C.
bombardeou quarteis com tiros de canhão.
Segundo uma notícia proveniente de Conakri, pela
primeira vez as forças do P.A.I.G.C. bombardearam com tiros de canhão a vila de
Bolama, e o campo entrincheirado de Empada, sendo destruídas numerosas
instalações militares.
Já meses antes, tinham sido bombardeados a tiros de
morteiro os campos fortificados de …. Guidage, Farim, Colopape (?), Ngore,
Burumtuma, Canquelifá, Guiledje, Bedanda, Madina, Belifa e outros.
Trata-se de um grande passo em frente na luta
de libertação nacional do povo da Guiné. Das acções de flagelação, das
emboscadas, dos rápidos ataques de surpresa com armas ligeiras, o Partido
Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde, passou a uma nova fase,
passando a atacar as forças portuguesas no seu próprio reduto. Já não são
apenas as minas, as armadilhas, já não se trata sequer de ataques efectuados
com metralhadoras, e apoiados com tiros de bazuca. Trata-se de operações
ofensivas de bombardeamento de quarteis com tiros de canhão ou de morteiro.
As tropas de ocupação deixaram de ter pela frente
grupos de homens rudimentarmente armados, e passaram a ter que suportar os
ataques conduzidos por um exército regular, disciplinado, treinado e
armado, que conhece o terreno que pisa e que além disso, tem um moral e
uma coragem diferentes, porque está a combater pela libertação da sua terra.
A situação na Guiné pode caracterizar-se da
seguinte maneira: metade do território libertado, transformação da guerra de
guerrilhas, que continua a ser preponderante, com operações de ataque frontal.
As tropas de ocupação estão aquarteladas nos quarteis, e as operações ofensivas
reduzem-se a acções em áreas reduzidas, e aos bombardeamentos efectuados pela
Aviação sobre a população civil das zonas libertadas.
Os comandos salazaristas sabem que a guerra está
perdida. Entretanto, para fazerem o jogo criminoso do ditado para ganhar tempo,
vão exigindo sacrifícios inúteis aos soldados, que vão procurar a morte inútil
de um número cada vez maior de soldados portugueses, e vão continuar a
assassinar os guineenses que o fascismo diz defender.
Não é apenas um erro de cálculo político e militar.
É um crime, um crime semelhante ao que Salazar quis cometer em Goa, exigindo o
sacrifício do total das tropas portuguesas.
Mas, tal como em Goa, não há nada a fazer na Guiné.
Tal como em Goa, qualquer sacrifício mais é inútil e, mais do que inútil, é um
crime».
*****
A SITUAÇÃO EM
ANGOLA
«Nos últimos três meses, o panorama da guerra
colonial em Angola, sofreu duas alterações importantes: em primeiro lugar, o
Movimento Popular de Libertação de Angola apresenta-se melhor organizado e com
equipamento militar moderno, em três frentes de luta separadas por milhares de
quilómetros: em Cabinda, nos Dembos e na região de Vila Luso.
As Forças Armadas Portuguesas foram obrigadas a
dispersar-se e a baterem-se em terrenos e regiões que não conhecem bem (caso da
região de Vila Luso), ou que conhecem demasiado bem, o que sucede nos Dembos,
pelas amargas experiências que tem tido.
Em segundo lugar, o MPLA, e a Frente Nacional de
Libertação de Angola (ex-UPA) estabeleceram há menos de uma semana, numa
reunião efectuada no Cairo, acordos de cooperação que, a serem concretizados,
podem vir a ter uma grande repercussão no progresso da luta de libertação do
povo de Angola.
Angola, seis anos de guerra quase passados,
regressa assim ao primeiro plano das preocupações salazaristas, impotentes para
vencerem o povo angolano. Há cerca de um mês, um oficial que se encontrava na
região de Vila Luso, escreveu-nos relatando o desespero dos soldados perante a
crescente insegurança das FA portuguesas, cercadas por uma população hostil e
mais esclarecida, e assediadas por guerrilheiros móveis e bem armados,
dirigidos pelo M.P.L.A.
Os soldados portugueses, nem sequer no plano
alimentar tinham uma situação defendida: há meses que os comandos lhe davam
arroz e peixe estragado a todas as refeições. Entre diversas companhias,
desenvolvia-se um largo movimento de protesto no sentido de levantamento de
ranchos.
No plano militar, o isolamento, a vida em campos
fortificados, impotentes perante ataques de morteiros, tornava-se cada vez mais
difícil».
*****
A SITUAÇÃO EM
MOÇAMBIQUE
«Um comunicado divulgado ontem pela Frente de
Libertação de Moçambique (FRELIMO), anuncia que, em operações
militares realizadas no fim de Setembro, morreram mais 34 soldados
portugueses.
A crise que atravessa o colonialismo, e a guerra
colonial salazarista em Moçambique, são já do domínio público. E mesmo em
Moçambique que os comunicados de guerra se veem forçados a admitir mais baixas.
A imprensa suíça conservadora, a «Gazette de
Lausanne», porta-voz salazarista, confessava há semanas que o governo e a
guerra coloniais atravessavam uma profunda dificuldade em Moçambique, e que
estava em estudo um plano que desde já previa o abandono de toda a região do
norte do Zambeze, já que as províncias de Cabo Delgado e Niassa, pela
reduzidíssima penetração civil e militar portuguesa, não eram defensáveis.
Dias depois, a imprensa mundial anunciava o que a
imprensa salazarista calava: a pressão pela PIDE, do governador da província de
Manica e Sofala. Assim, um ano de guerra passado, a situação adensa-se para o
colonialismo português, e para os soldados e militares portugueses que lá são
forçados a combater. As medidas repressivas, as bombas de napalm, os campos de
concentração, com milhares de moçambicanos presos, os julgamentos – farsa dos
intelectuais moçambicanos, os assassínios por agentes da PIDE, de dirigentes da
FRELIMO, como Jaime … (falha), morto há meses na Zâmbia, não conseguiram deter
o movimento de libertação do povo moçambicano.
Pelo contrário, hoje é difícil continuar afirmando
que se trata de acções terroristas fabricadas no exterior, quando as forças
portuguesas têm de combater, a centenas, a mais de mil quilómetros dentro de
Moçambique, quando há extensas regiões libertadas, e administrativamente
dirigidas pela FRELIMO, com escolas e serviços de saúde.
A acção do povo moçambicano pela sua independência,
a organização e o armamento das forças da FRELIMO, são bem diferentes daquela
caricatura que o governo nos quis servir, de tribos primitivas. Hoje as pretensas
tribos primitivas abatem aviões, e estão em condições de dizimar companhias
inteiras».
*****
COMO RESISTIR À
GUERRA
«Militares portugueses, o sacrifício que Salazar
vos exige, é cada vez maior, e cada vez mais inútil. Nos quarteis de Portugal,
antes de partir para as colónias, ou mesmo no meio da guerra, na Guiné, em
Angola e em Moçambique, é possível resistir, é possível lutar contra a guerra,
é possível não fazer a guerra.
Se vos encontrais ainda em Portugal, recusai-vos a
partir, resisti ao embarque, organizai deserções colectivas, que cada
companhia, cada grupo, cada esquadrão, se recuse a embarcar.
Resisti dentro e fora dos quarteis, se for preciso,
ocupai os quarteis. Unidos, sólidos, invencíveis, ninguém vos poderá embarcar à
força, se vos mantiverdes firmes, unidos e dispostos a resistir.
Parti em grupos para as vossas terras. Chamai o
povo das vossas terras a defender-vos. Contai ao povo que não quereis servir de
carne para canhão numa guerra perdida, ao serviço dos interesses da dominação estrangeira.
O vosso lugar é em Portugal. Não vos deixeis
embarcar. Vale mais lutar em Portugal pelo direito à vida e à liberdade, do que
ir morrer em África por meia dúzia de monopólios.
Mas, se vos encontrardes nas colónias, mesmo lá é
possível resistir, é possível desertar e, em certas circunstâncias, é mesmo
possível a revolta. Procurai contacto com os movimentos nacionalistas. Por
acordos estabelecidos com a Frente Patriótica de Libertação Nacional, os
movimentos nacionalistas acolher-vos-ão, e pôr-vos-ão em contacto connosco.
Desertai em grupos ou individualmente. Se vos exigirem a partida para uma morte
certa, recusai-vos a combater, revoltai-vos. Se vos não for possível fazer mais
nada, fazei a resistência passiva. Deixai-vos ficar perto dos quarteis e
acampamentos, sem vos arriscardes no meio do mato, sem expor inutilmente as
vossas vidas. Não ataqueis quem não vos ataca. Os altos comandos que vão fazer
a guerra. Eles que se arrisquem.
Militares portugueses, a Voz da Liberdade não vos
mente. A guerra está perdida. O governo exige o vosso sacrifício para nada,
apenas para ganhar tempo, apenas para que alguns monopólios arrecadem os lucros
dos capitais investidos. Nós não queremos uma juventude estropiada, não
queremos mais mortos inúteis, não queremos que os jovens da nossa terra
continuem a sacrificar-se por uma guerra injusta e perdida. A Voz da Liberdade,
militares de Portugal, é a vossa voz. E a Voz da Liberdade diz-vos: poupai as
vossas vidas. Não vos deixeis embarcar. Resisti. E desertai. Revoltai-vos. A
nossa Pátria é Portugal. E Portugal está a saque. É em Portugal que temos de
lutar pelo direito à vida, á liberdade, pela independência da nossa Pátria».
[1] Recorda-se
que a Argélia tinha ascendido à independência, em 1962, depois de uma longa e
cruenta guerra com a França. A Argélia tinha um regime político de partido
único de inspiração marxista, cujo 1.º presidente foi Ben Bella. Assumia-se
como um país do «Terceiro Mundo» vindo, mais tarde, a situar-se na órbitra da
extinta URSS. A FPLN tinha lá o seu «quartel- general», desde 1962 e o
principal apoio. Na FPLN pontuavam Piteira Santos, Tito de Morais e Manuel
Alegre. A «Rádio Voz da Liberdade» era um dos seus principais instrumentos e os
dois principais (únicos?) locutores eram Manuel Alegre e Estela Piteira Santos.
[2] Arquivo do MDN, Fundo
5/23/81/16.
Sem comentários:
Enviar um comentário