Inês Teotónio Pereira
O que hoje se tenta passar às crianças é que o mal
não existe, que os maus são bons e que qualquer coisa que mostre ou revele
crueldade incita à violência
A versão clássica dos maus da fita está em crise:
já não existem maus, nem nas fitas nem em lado nenhum. Se alguém pega numa arma
e assassina dezenas de pessoas numa universidade ou se um grupo de terroristas
aniquila dezenas de civis, a tendência é justificar os crimes com o contexto.
Porque a culpa, em primeira instância, nunca é dos autores. A culpa é quase
sempre da sociedade, da globalização, dos capitalistas, do contexto familiar,
dos filmes violentos, da pobreza, da liberalização da venda de armas, da
religião, etc. O que prevalece nesta teoria é que as pessoas, de um modo geral,
são estúpidas, coitadas, e a moral que têm ou não têm depende exclusivamente do
contexto. Os maus são vítimas e, na verdade, somos todos bons selvagens,
incluindo os terroristas, os assassinos, etc. Os maus são os contextos, e não
os criminosos.
Esta febre de fazer tábua rasa do bem e do mal, dos
maus e dos bons, à boa maneira dos filmes de cowboys e do super-homem, chegou
aos contos infantis. E não, não se inventaram novos contos infantis,
adulteraram-se os clássicos. Pegou-se no trabalho genial dos irmãos Grimm, de
Andersen e de muitos outros que se esfalfaram a trabalhar e mudaram-se as
histórias para as adaptar aos conceitos modernos e, por isso, correctos.
As histórias que foram escritas com o objectivo de
traçar uma linha bem definida entre o bem e o mal, de ajudar a criar uma
consciência moral, de despertar a sensibilidade das crianças, que conseguem ser
mais cruéis do que qualquer bruxa má, de nos fazer chorar e de educar o nosso
sentido de justiça, são hoje histórias sem heróis, sem moral e sem interesse.
Hoje parte-se do princípio que as crianças, primeiro, são parvas e, segundo,
que nascem sensíveis, com as doses certas de moral e com um sentimento de
justiça muito apurado. Mas não é verdade, elas não nascem assim, e os clássicos
infantis são obras-primas que nos ajudaram a todos a desenvolver tudo isto.
No novo filme da Disney da Bela Adormecida, a
questão central é perceber porque é que a bruxa é má. E descobre-se que,
afinal, a bruxa não é má: mau era o rei que lhe cortou as asas e ela, coitada,
não teve alternativa senão lançar um cruel feitiço sobre a princesa para salvar
o reino (enfim, é complicado...). Nesta história não há realmente maus, há
contexto. E a moral da história é que tudo depende do contexto.
Também o clássico João e Maria que se conta hoje às
crianças é outra história completamente diferente daquela que foi escrita.
Afinal, os meninos perderam-se na floresta e não foi a madrasta e o pai que os
abandonaram reiteradamente porque não tinham dinheiro para os sustentar. Nada
disso. Afinal, foi por acaso que os meninos foram parar à casa da bruxa –
perderam-se – e a bruxa também não caiu para dentro do forno empurrada pela
heroína Maria, mas apenas ficou sem a vassoura. Aqui nem sequer há moral da
história, há apenas aventura.
O que hoje se tenta passar às crianças é que o mal
não existe, que os maus são bons e que qualquer coisa que mostre ou revele crueldade
incita à violência. Com isto matam-se heróis e trituram-se modelos de justiça,
moral e coragem.
Até que as crianças crescem e, quando todos
esperávamos que, com esta nova cultura infantil, todas elas se tornassem
miniaturas da madre Teresa de Calcutá e que as guerras desaparecessem da fase
da terra, eis que elas se tornaram uma geração que se está nas tintas para tudo
isso. Aprenderam que há uma justificação plausível para tudo e principalmente
para a maldade, por isso não há lados. A eterna luta do bem contra o mal e do
final feliz é qualquer coisa que não lhes assiste. Os heróis, esses, são os
futebolistas e a Miley Cyrus.
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