sábado, 19 de julho de 2014
Mas o que será arte?
M. Fátima Bonifácio, Público
Tudo se tornou aceitável no mundo da arte contemporânea, que por isso mesmo se tornou impossível de definir.
Um jovem algarvio de 30 anos ocupou recentemente os media em virtude de uma sua «instalação», conforme denúncia de um cidadão patriota e sensível, alegadamente ofender o respeito devido à bandeira nacional. O zeloso cidadão deparou com o símbolo da nação maltratado, pendurado, meio esfarrapado, de uma forca manhosa espetada num terreno público onde podia ser avistado por qualquer passante na EN 125. Uma vergonha! A polícia, avisada, tomou nota da ocorrência, e o nosso artista, que apenas pretendia ilustrar o estado escalavrado a que Portugal chegara, veio a sentar-se no banco dos réus. Diga-se desde já que o Ministério Público pediu clemência e que o tribunal concedeu a absolvição.
A polémica que o caso gerou andou à volta de uma aparente contradição contida no texto constitucional que nos rege, pois se, por um lado, fulmina a falta de respeito pelos símbolos nacionais, como o hino ou a bandeira, por outro lado, protege a «liberdade de criação artística». A arte é livre, e, ao que se depreende, está a salvo dos condicionalismos que limitam a vulgar liberdade de expressão. Sendo assim, e em face desta ambiguidade constitucional, deverá abrir-se uma excepção para aqueles casos em que esteja em causa a utilização de um símbolo pátrio como uma forma de expressão artística, ainda que Portugal saia um pouco achincalhado? Pode a arte veicular uma imagem depreciativa de Portugal, usando para isso mesmo os símbolos que representam o país?
O bom senso indica que sim e, graças a este ter prevalecido sobre o acatamento cego da taxativa norma jurídica, o nosso «artista» vai poder continuar a dedicar-se tranquilamente à concepção de «instalações» tão foleiras e medonhas como a que pendura Portugal na forca, mas cujo valor artístico os lentes da Universidade do Algarve atestaram, atribuindo-lhe a gloriosa classificação de 18 valores! O produto assim avaliado é tão tosco e feio que dificilmente se compreende a generosidade da classificação atribuída, a menos que o verdadeiro motivo da sua sedução resida na dramatização hiperbólica da terrível crise que o país tem atravessado – algo que todos estamos fartos de saber, mas que a esquerda tem sempre um gosto especial em repisar.
Acontece que o problema é outro. Se a Constituição decreta a liberdade de expressão, e mormente a liberdade «artística», mas exceptua possíveis afrontas à dignidade da Pátria perpetradas com a utilização de símbolos nacionais, então o problema é definir e distinguir o que é arte de simples rabiscos, simples «instalações» desprovidas de nexo e beleza ou de simples fantasias e caprichos pessoais inteiramente arbitrários.
Reconheço que o problema é insolúvel desde pelo menos os anos 60 do séc. XX, quando morre, às mãos de Andy Warhol, a narrativa da História da Arte iniciada por Vasari no séc. XVI, e que ainda conseguira integrar formas extremas e provocatórias do expressionismo abstracto, como, por exemplo, as telas monocromáticas de um Malévich (Ver Arthur Danto, Art after the End of Art.). Mas a tinta, que se manteve até ao século XX como veículo privilegiado da pintura, foi substituída, com certos artistas, por mero pano de algodão pré-tingido. Após a supressão do pincel e sua substituição pelo espalhar da tinta directamente a partir da lata, à maneira de Jackson Pollock, a tinta tornou-se dispensável para «pintar». É difícil conceber maior ironia – ou absurdo.
Foi assim que chegámos, nos museus mais privilegiados do mundo, como o Guggenheim de Nova Iorque, a ver uma espécie de lençóis pendurados de cordas, como a roupa a secar nas janelas lisboetas. Ou podemos deleitar-nos com a nova raça dos chamados apropriacionistas, que, conforme o nome indica, se apropriam das obras de outros autores, antigos ou modernos, executando cópias que mesmo a um olhar informado são praticamente indistinguíveis dos originais. Em suma, tudo se tornou aceitável no mundo da arte contemporânea, que por isso mesmo se tornou impossível de definir. Quem decreta hoje o que é arte não é a tradição, não são referências aos cânones consagrados na sua história, quem hoje em dia monopoliza o juízo sobre a qualidade artística de uma obra são os curadores de museus, os galeristas e negociantes de arte, os redactores das revistas da especialidade. A academia limita-se a seguir modas. Mas um dia chegará em que o tempo se encarregará de operar uma impiedosa destrinça entre o que resiste ao passar dos anos e das décadas, e o que nunca passou de lixo. A forca do nosso algarvio talvez ainda venha a servir para acender uma lareira.
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