Pedro Santos Guerreiro, Expresso online
Ricardo Salgado acaba mal e acaba só. O grande
banqueiro era afinal péssimo gestor, arruinou um grupo familiar de 145 anos e
saiu expulso do BES. Mas não há vazios de poder: quem dominará agora? Quem vai
ser o Dono Disto Tudo? Este texto propõe uma resposta.
Talvez seja apenas um mito e Mayer Amschel
Rothschild não tenha mesmo dito aquela frase no século XIX: «Dêem-me o controlo
do dinheiro de uma nação e pouco me importarei com quem faz as suas leis.»
Ficou a frase infame e a família famosa, os Rothschild, que já não são os
banqueiros mais importantes da Europa mas cuja descendência prevalece.
No mesmo século XIX, uma família portuguesa de
banqueiros era fundada por um órfão, a quem por isso mesmo chamaram de Espírito
Santo, e que atingiu o ponto mais alto da sua influência já no século XXI.
Depois – agora – os negócios faliram, num escândalo internacional de desonra. A
família perde tudo. O movimento é tão poderoso que pode significar uma mudança
de regime na economia portuguesa. Há uma rede de poder que desaba. Outra
emergirá.
Como foi possível que um império tamanho se
perdesse entre dois Verões, sem Invernos que anunciassem a ruína ou Primaveras
que a redimissem? Talvez a resposta esteja noutra pergunta: como foi possível
sequer construir este império tamanho? A resposta é, agora, fácil: não foi
possível. Não era um império. Era um conglomerado descapitalizado, opaco e mal
gerido. A plácida cascata de activos, que criou um sistema de minorias
accionistas encadeadas que garantia o controlo familiar com pouco capital,
tornou-se uma torrencial cascata de passivos.
É impressionante tudo ter acontecido debaixo dos
olhos da comunidade, incluindo poderes políticos, reguladores, auditores,
concorrentes. Ao contrário do BPN, que «sempre se soube», no BES nunca se soube
de nada. Escrevia-se sobre a opacidade e a complexidade do grupo, mas não havia
denúncias nem sequer suspeitas conhecidas. O poder do BES era imenso. E era um
poder de um homem, Ricardo Salgado, 70 anos acabados de fazer.
Sintomaticamente, o líder da família desde o final dos anos 80 não tinha número
dois. Era costume dizer-se que o BES era como um comité central do Partido
Comunista, não havia «vices», havia o líder e o resto. Era um poder total,
bajulado e quase incontestado.
O poder hegemónico
A primeira vez que falei sobre o assunto foi em
Julho de 2009, há cinco anos, num encontro à porta fechada do Projecto Farol,
que decorreu no Pavilhão de Portugal. O Farol, um think tank liberal,
convidara-me para fazer uma apresentação sobre factores de bloqueio da economia
portuguesa e eu escolhi o BES. Na minha tese, o problema não era o BES ser
poderoso, era ser hegemónico.
O jornalista José Manuel Fernandes estava no
encontro e, mais tarde, convidou-me para escrever essa análise para o Anuário
da Fundação Francisco Manuel dos Santos, onde está publicada. Dos três eixos de
poder da década anterior, restava um: o BCP, muito ligado à Teixeira Duarte,
Cimpor, EDP e depois à Caixa, Berardo, Fino, estava prostrado; o BPI, muito
ligado a grandes empresas do Norte, incluindo o Grupo Sonae, tinha-se virado
para Angola; restava o BES e a sua linha de poder com a Portugal Telecom,
Ongoing, Mota-Engil, mais tarde a EDP e José Sócrates.
A falta de oposição entre eixos financeiros
permitira uma afirmação do BES que, juntamente com o BCP e a Caixa, lucraram
muitos milhões concedendo crédito no imobiliário e nas obras públicas, onde
estariam a maior parte dos grandes problemas da economia, com malparados
gigantes, obras paradas a meio, transferências para fundos de reestruturação.
Nessa minha tese, estes bancos haviam «fabricado»
lucros, dividendos e prémios de gestão. Os créditos, que constituíam lucro nos
primeiros anos, virariam graves prejuízos no futuro. Os bancos foram sendo
esventrados. No ano 2000, BES, BCP, BPI e Banif valiam em Bolsa um total de 18
mil milhões de euros. Os mesmos bancos valem hoje menos de sete mil milhões.
Apesar de muitos dividendos entretanto pagos, a destruição de valor é evidente.
Houve aumentos de capital em catadupa.
É hoje possível argumentar que, apesar de a
intervenção externa de 2011 se ter feito por causa das contas do Estado, ela
acabou por permitir uma gestão controlada e até disfarçada dos problemas
enormes que estavam nos balanços dos bancos. Já foram reconhecidas nas suas
contas mais de 24 mil milhões de euros de perdas reais e potenciais. E é
essencial perceber isto para compreender o que se passou no Grupo Espírito
Santo.
Paradoxalmente, a devastação na economia portuguesa
que foi acelerada com a intervenção externa de 2011 não havia produzido até
aqui nenhuma grande falência. Houve algumas construtoras de média dimensão,
empresas de turismo e de imobiliário a caírem ou a serem resgatadas, mas não
houve nenhuma queda abrupta de um grande grupo. Na verdade, tal foi sendo
possível precisamente pela gestão controlada da banca. Muitas empresas zombie foram
sendo transferidas para fundos de reestruturação, outras tiveram as suas
dívidas reestruturadas, sempre com perdões indirectos da banca. Na maior parte
dos casos, porque os próprios bancos não queriam (ou não podiam) assumir todas
as perdas, sobretudo numa altura em que a pressão regulatória europeia obrigava
a sucessivos aumentos de capital para garantir rácios de solvabilidade. Em
muitos outros casos, porque o «sistema» funciona assim: preserva-se.
Assim foi com aquele que teria sido o maior estoiro
na economia portuguesa: o Grupo José de Mello. O caso foi então noticiado mas
estranhamente teve pouco impacto na sociedade. Por causa do corte do rating do
Estado para nível lixo, em 2011, os bancos estrangeiros exigiram o pagamento
imediato de empréstimos a muitas empresas portuguesas. Ao Grupo Mello foram
exigidos mil milhões de euros, o que tendo em conta a quebra das receitas da
empresa e o desequilíbrio entre activos e passivos a colocou num estado
crítico, sendo necessário «entrar» com o próprio património da família e, mais
tarde, retirar a Brisa de Bolsa para a revalorizar e aceder a mais dividendos.
O problema ainda hoje não está ultrapassado, embora
esteja controlado. Mas nada disso teria sido possível se, em 2011, o Grupo José
de Mello não tivesse tido o apoio dos bancos portugueses, que então
substituíram os bancos estrangeiros como seus financiadores. O trio do costume,
Caixa, BCP e BES injectaram mil milhões no grupo, que assim pôde pagar aos
bancos estrangeiros Santander, Deutsche Bank e Société Générale.
A grande falência aparece agora e é muito maior: o
Grupo Espírito Santo. Inteiro. Uma derrocada, de cima para baixo. Mas como?
Assim: anos e anos de prejuízos não assumidos, operações que não geravam cash
flow, investimentos nunca recuperados à custa de dívida sobre dívida nas
próprias participadas, que ficavam pendurados nas contas como se estivessem
bem. Pura má gestão e algumas ligações perigosas, com Angola à cabeça. Mas as holdings de
topo, com contas opacas e triangulando várias praças financeiras, escondiam uma
montanha de passivo, para mais agravada com dívidas que não estavam registadas
nas contas, num total de 1,3 mil milhões de euros, o que pode constituir
prática criminal.
A situação tornou-se insuportável quando a dívida,
além de ser grande, passou a ser em grande parte de curto prazo. O famoso papel
comercial tornou a pressão sobre a tesouraria intolerável e sujeita a enorme
risco. Pior do que isso: contaminou o BES.
Como a família perdeu o BES
Foi assim que a família perdeu o controlo do banco,
primeiro na gestão, depois na própria posse das acções. Se os problemas de
dívida no Grupo Espírito Santo eram já enormes, o contágio ao banco foi um
passo deliberado e aconteceu no último ano. Talvez fosse uma última tentativa
de evitar a ruptura, mas transmitiu o problema das holdings de
topo pela cascata abaixo até ao banco, o que constitui um pecado mortal e
dificilmente compreensível.
A falência poderia ter sido apenas da holding ES
International, o que seria um escândalo que arrastaria a família Espírito
Santo, mas não contaminaria as empresas nas holdings inferiores.
Mas, no início deste ano, Ricardo Salgado começou a
transferir os passivos da ES International para a RioForte, contaminando-a
irremediavelmente. A Espírito Santo Financial Group e o BES concederam crédito
às holdings de cima, ficando também desse modo contaminadas. E
o BES expôs os seus próprios clientes ao risco, quando os pôs a financiar o
GES, primeiro através de fundos de investimento como o ES Liquidez, depois
através do papel comercial. Era difícil ter sido mais destrutivo.
Se o Banco de Portugal não tivesse forçado a
constituição de provisões para pagar aos clientes de retalho do papel
comercial, a hecatombe dos clientes teria sido devastadora. Um BPP multiplicado
muitas vezes.
O que levou o GES à crise revela no mínimo
incompetência, mas a própria gestão da crise desde o fim do Verão do ano
passado foi desastrosa, revelando uma equipa bloqueada, em negação e obcecada
por uma guerra interna de sucessão. Como criticou Fernando Ulrich recentemente,
a informação financeira foi sendo revelada aos poucos, cada comunicado trazia
um novo número, nunca houve transparência total e tudo isso gerou uma
desconfiança insanável dos mercados, sobretudo depois de os investidores terem
acreditado no BES para um derradeiro aumento de capital de mil milhões de euros
há cerca de dois meses. Esses investidores sentem-se enganados. Têm boas razões
para isso. Mas houve mais: foram sendo anunciados aumentos de capital na
RioForte que nunca aconteceram, vendas em Bolsa que não ocorreram,
reestruturações que não existiram. Tudo colapsou, estrondosamente.
A melhor definição que ouvi até hoje sobre o
sistema de poder económico em Portugal foi dada por Paulo Morgado, líder da
filial portuguesa da Cap Gemini. Mais do que uma estrutura hierárquica
piramidal, ou de que um polvo com tentáculos, o poder em Portugal assenta num
sistema em rede. É, descreveu Paulo Morgado, como um jogo de micado: vários
paus cruzam-se e é quase impossível mexer num sem tocar noutros.
Essa interdependência serviu ao mesmo tempo de rede
de sustentação e de força de resistência passiva. Ninguém ousava dar um murro
na mesa e atirar as peças de micado todas pelos ares, o efeito sistémico seria
imprevisível. A falência do Grupo Espírito Santo e o afastamento da família é
esse murro na mesa e sim, tem efeito sistémico, porque arrasta centenas de
empresas com milhares de trabalhadores. Alexandre Soares dos Santos já disse
que o efeito é «brutal, brutal, brutal...»
Hoje, Ricardo Salgado é um homem só. Poucos dos
seus aliados ainda o são, muitos dos seus mais próximos já deixaram de o ser.
Começou por aqueles que eram enfeitiçados pelo dinheiro ou mesmo pagos pelo
Grupo: esfumaram-se. Passou depois para os amigos, para a família, para os
clientes, para dentro do banco.
É preciso perceber a mitificação que existia à
volta de Ricardo Salgado, em muitos membros da comunidade mas sobretudo dentro
do Banco Espírito Santo. Os quadros falavam de Salgado como de um banqueiro
predestinado, um líder de que se orgulhavam, um homem que estaria sempre acima
dos desafios e dos seus pares. Foi assim pelo menos até Novembro do ano
passado, quando começou a guerra na família. Mas mesmo no princípio da fase
mais aguda da crise, muitos quadros do banco recusavam-se a aceitar a
informação que ia sendo divulgada, como se o grupo estivesse a ser alvo de
conspirações.
De alguma maneira, a situação foi semelhante no BCP
aquando da crise de Jardim Gonçalves: era venerado pelos seus quadros, a
incredulidade foi semelhante. Acresce que, no caso de Ricardo Salgado, muitos
se sentiram mais do que decepcionados: sentiram-se traídos. Esse terá sido o
caso de Amílcar Morais Pires e de outros altos quadros do BES: indefectíveis
até ao fim, foram deixados cair.
Curiosamente, Salgado foi negociando com quem o
traíra a ele. Como Pedro Queiroz Pereira, com quem acabou por fechar um negócio
que separou os dois grupos familiares. Com Carlos Costa, que lhe foi tirando o
tapete aos poucos. E com José Maria Ricciardi, o seu primo que liderou uma
tentativa de «golpe de Estado» em Novembro que falhou. Ricciardi falara então
com diversos membros da família, isoladamente, para retirar a confiança a
Salgado, mas quem acabou isolado foi ele próprio. Teria o desfecho sido
diferente se Ricciardi tivesse conseguido afastar Salgado?
Os últimos meses revelaram que, na geração em
causa, a família Espírito Santo só tinha dois potenciais líderes, Salgado e
Ricciardi, que são tão parecidos um com o outro como o sal é do açúcar. José
Maria Ricciardi foi o único a estar frontalmente contra Salgado e o tempo
mostrou que tinha razão. Mais: ele podia ter sido o líder que salvaria o grupo.
Mas não teve apoio da família. E, sobretudo, nunca teve um plano alternativo a
não ser propor-se a si próprio como líder. Teve uma oportunidade histórica, não
esteve à altura dela.
Hoje, o resto da família já estará com ele. Ou,
pelo menos, está contra Ricardo Salgado. Há uma revolta surda entre os vários
membros da família dos demais ramos, sobretudo os que estiveram com ele até ao
fim, mas já não estão. Hoje, há membros de uma nova geração a despontar, como
André Amaral ou Caetano Barão da Veiga, mas não há muito por que lutar. Dos
mais velhos, já mais nenhum se solidariza com Salgado. Lealdade não é o mesmo
que fidelidade.
O próximo poder
Voltemos à frase atribuída a Rothschild: os
banqueiros sabem que o poder maior numa economia está em criar moeda, o que
Portugal aliás já não pode fazer. Em Portugal, o poder maior reside no Estado,
através da despesa pública e dos impostos, e nos bancos, pela concessão de
crédito. Mesmo nos últimos anos, com menos crédito concedido, o poder dos
bancos foi suficiente para decidir a vida ou a morte de muitas empresas, pela
renovação ou não renovação de créditos e linhas de tesouraria. Fale com
qualquer gestor de uma PME, ele explica.
A queda da família no BES está consumada, mas essa
não é a única alteração accionista em perspectiva. É hoje difícil perceber como
ficará o poder no banco, que está tomado por muitos accionistas especulativos
de curto prazo. Além disso, uma entrada do Estado, ainda que com títulos
híbridos, significa uma diluição enorme dos accionistas, incluindo dos
investidores que entraram no último aumento de capital e que podem accionar
legalmente o banco. Mas é óbvio que o BES acabará comprado, porque acabará
vendido, mesmo que seja aos poucos, em mercado.
A queda do BES enquanto eixo de poder poderia ter o
efeito reverso que teve a queda do BCP em 2007: abrir caminho para que outro
banco assomasse. Contudo, nenhum dos bancos portugueses parece ter a força ou
sequer a dinâmica para se catapultar neste momento, até porque o mercado
português continua a ser um mau «negócio». Assumindo que não há vazios de poder
– sempre que há rei morto, há rei posto –, quem, então, pode assumir as rédeas
do poder?
A resposta depende menos dos acontecimentos e mais
das circunstâncias (Vítor Gaspar vai gostar desta): é o credor estrangeiro. Às
vezes chamam-lhe «mercados». O credor torna-se accionista à força e vira
investidor. É a força mais poderosa que se abateu sobre a economia portuguesa
desde 2010, precisamente por sermos devedores. É o credor estrangeiro que está
a reconfigurar a economia portuguesa (e a sua política, que depois de perder as
ferramentas cambial e monetária, perdeu agora na prática a liberdade
orçamental). É ele que escolhe gestão profissional em vez de familiar, e que
prefere sempre fluxos de caixa a qualquer outro tipo de retorno, que pode
sempre pressionar o pagamento de dividendos em vez de reinvestimento. É isso
que está a acontecer dramaticamente no BES. É isso que vai reconfigurar a
economia portuguesa: uma mudança de fora para dentro.
O discurso dos centros de decisão nacional sempre
foi essencialmente um discurso de poder, e de manutenção desse poder pelo
regime vigente. Hoje é um anacronismo ridículo. O investidor estrangeiro já
tomou conta. A EDP e a Ren são hoje chinesas, a Ana é francesa, o BCP, BIC, Zon
e Optimus são angolanos, o BPI é hispano-angolano, o BES há-de ser de quem o
quiser, a Cimpor é brasileira, a PT quer sê-lo, a Galp é apátrida e há dezenas
de grandes empresas à venda, incluindo hotéis, seguros, saúde e imobiliário do
Grupo Espírito Santo, a TAP ou os resíduos do Estado.
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