Henrique Raposo
Um filho não é mercadoria, não é uma propriedade
para ser regida debaixo do código comercial
A barriguita de aluguer é a próxima causa fracturante e, claro, passará
no parlamento porque representa a «novidade» e o «progresso». E o «progresso» é
sempre benéfico. Ninguém no seu perfeito juízo pode negar as qualidades do «progresso».
Quando critica a novidade progressista, um sujeito só pode ser uma de duas
coisas: ou é deficiente mental (tem incapacidades cognitivas que o impedem de
ver a verdade) ou é reaccionário (o representante do mal na terra). Como toda a
gente sabe, eu junto os dois defeitos e, por inerência, gostava de dizer que um
filho não é mercadoria, não é uma propriedade para ser regida debaixo
do código comercial. A figura da barriga de aluguer é uma aberração
por várias razões.
Em primeiro lugar, casais inférteis ou homossexuais podem adoptar crianças.
Há milhares à espera. «Ah, mas queríamos um que fosse mesmo nosso», diz o casal
do canto.
Ora, o segundo problema começa logo aqui: um casal que pensa assim não
sabe aquilo que tem à espera; a paternidade nada tem que ver com gostarmos de
nós próprios e dos nossos desejos fofos. Ser pai é gostar menos de nós
próprios, é aprender a renunciar. Além disso, não renunciar ao capricho da
barriga de aluguer é o mesmo que impor uma mentira fatal à criança em causa. Em
cima da mentira, existe a óbvia exploração da mãe de aluguer.
Eis o terceiro problema: a barriga de aluguer será sempre uma mulher
miserável cuja pobreza será aproveitada por alguém mais rico. A desigualdade
económica já não interessa aqui?
Em quarto lugar, este contracto desumaniza a relação entre mãe e
criança. A vida intra-uterina é mesmo decisiva. Temos o direito de cortar esse
laço? «Ah, mas o óvulo é meu e não da barriga de aluguer», diz a senhora do
canto.
Sucede que nós não somos cucos, os pássaros que põem os ovos nos ninhos
de outras aves.
A relação emocional mãe-filho será sempre estabelecida entre a mãe de
aluguer e o bebé, logo é preciso fazer esta pergunta: os sentimentos da mãe de
aluguer não contam? E se ela se arrepender a meio do caminho? Já agora: o que
fazemos quando a mãe-contratante se arrepender e recusar o filho gerado no
ventre da mãe-de-aluguer? Em quinto e último lugar, um filho não é mercadoria,
e também não é um rim que se doa. Um bebé não é um órgão que ajuda no
funcionamento da vida, um bebé é a própria vida. Se transformar o útero num
anexo descartável já era um acto intolerável, reduzir o bebé a um órgão
transferível é um acto abjecto.
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