quarta-feira, 8 de outubro de 2014


Os donos da História e das palavras


Helena Matos

Portugal é um país em que o poder é naturalmente de esquerda e em que a não esquerda tem a função de, como oposição, mostrar que a esquerda é democrática

O propósito da deputada Rita Rato (a mesma que ainda não teve tempo para se informar sobre o gulag) de sanear os bustos de alguns presidentes da República veio recordar-nos que há em Portugal quem se considere dono da História. E que nessa qualidade não só se ache no direito de definir quem e o quê pode ou não ser recordado e em que estatuto mas que, não menos relevante, tem tido a capacidade de tornar normal o absurdo: no parlamento português, admiradores de Estaline passam por combatentes da liberdade e um partido que não se sabe quantos votos vale, os Verdes, tem um grupo parlamentar.

Isto para não nos alongarmos mais sobre a estranha patologia que leva a parte mais à esquerda do nosso hemiciclo a defender estrenuamente hoje aquilo que atacou violentamente ontem. E invariavelmente se a esquerda defende algo é porque lhe pode aplicar o termo «esquerda» e se ataca alguma coisa é porque essa coisa, facto, situação ou o que seja não é nesse momento de esquerda.

Veja-se o caso da homossexualidade sobre a qual o PCP tem hoje um entendimento oficial muito diferente do que tinha no ano de 1961 quando, para expulsar o seu dirigente Júlio Fogaça, invocou os seus comportamentos homossexuais. Dir-me-ão, quiçá a remoer interiormente que era escusado falar de tal coisa, que se estava em 1961. Pois estava e aí é que está o cerne da questão: os donos da História aplicam a todos os restantes mortais uma espécie de grelha revisionista que leva a que de D. Afonso Henriques aos participantes no Festival da Canção os protagonistas sejam avaliados positiva ou negativamente à luz do progressismo vigente: seria feminista? Praticava assédio? Pode dizer-se anticolonialista? Seria racista?… Acreditem: tivesse Fogaça sido ideologicamente próximo das bancadas à direita e o seu nome seria não só muito mais evocado nestes tempos como muita exigência de pedidos de desculpa se teria feito ouvir.

E aqui chegamos à outra zona de domínio da esquerda: a agenda e a respectiva linguagem. Só que nesta matéria, e ao contrário do que acontece na História, o absurdo está bem e recomenda-se. Por outras palavras, os desígnios censórios em relação ao passado do PCP, Verdes e BE, devidamente acolitados por alguns deputados do PS (com Jorge Lacão a destacar-se pelo radicalismo), já enfrentam resistência. Mas assim que se passa para o presente as palavras e os argumentos continuam como há quarenta anos: continua a discutir-se, ou melhor dizendo continua a ter de se confirmar como desfecho inevitável para qualquer mudança, o que a esquerda previa e cientificamente sabe que vai acontecer: antigamente era a sociedade sem classes, agora é a sociedade sem sexos. A criminalização do piropo é a mais recente conquista nessa luta pelo novo homem novo. (Fonte bem informada garante que o anterior homem novo morreu de síncope em Outubro de 1989 quando ouviu os manifestantes gritar em Leipzig para as autoridades comunistas «Nós somos o povo!» Mas há também quem diga que sobreviveu e morreu sim soterrado um mês depois em Berlim quando milhares de cidadãos da então RDA experimentaram passar para o outro lado do Muro de Berlim).

Obviamente continua a acreditar-se que os ricos podem pagar a crise, que são suficientemente ricos para isso e que tudo correria no melhor dos mundos se o fizessem. (Num sinal inequívoco do nosso empobrecimento, os ricos já não são os Mellos nem os Champalimaud mas sim a Alemanha.) Afirmar o contrário e questionar a razoabilidade de tal procedimento implica no mínimo ficar-se candidato a um prémio por impopularidade e alienar boa parte das hipóteses de fazer carreira política.

Mas é sobretudo quando chegamos às questões em que os direitos e o dinheiro para os garantir se cruzam que se torna mais evidente que o imaginário e o discurso vigentes continuam no mesmo sítio em que a esquerda os colocou há décadas: questionar a sustentabilidade da segurança social é estar a favor do lobby disto ou daquilo. Defender a racionalidade nos gastos do SNS que, note-se, serão sempre crescentes, dado o envelhecimento da população e a evolução da ciência médica, leva quase a acusações de tentativa de homicídio: oficialmente cada um de nós deveria viver a escassos metros de hospitais com todas as especialidades onde nos farão sempre todos exames e mais algum sem esquecer o acesso a medicamentos inovadores. Perguntar quanto tempo poderemos continuar a afectar recursos ao SNS sem discutir que se têm de fazer escolhas é algo que levará à crucificação mediática de qualquer político.

No caso do arrendamento, proteger os inquilinos é sinónimo não da existência no mercado livre de casas para arrendar mas sim de congelamento de rendas para os actuais inquilinos. Não importa que esta política tenha tido os desastrosos resultados de todos conhecidos: prédios de aluguer a cair no centro das cidades e periferias cheias de jovens endividados para comprar casa. Menos importa que inúmeros comércios pagassem rendas irrisórias em locais privilegiados. O que importa é repetir expressões como «proteger os inquilinos» e dizer que a loja A e o café B não podem desaparecer.

Considerar que o contribuinte não pode ser obrigado a pagar os concertos mais as performances que não sei quantos artistas querem fazer por esse país fora é estar a atacar a cultura. Mesmo afirmar o óbvio como fez Isabel Jonet quando declarou: «Pior inimigo dos desempregados são as redes sociais», «as pessoas ficam dias e dias inteiros agarradas ao Facebook, a jogos e a amigos que não existem e vivem uma vida que é uma total ilusão» leva a que logo os jornais escrevam «Isabel Jonet critica desempregados que passam o tempo agarrados ao Facebook». Escassos minutos depois já as tricoteuses do twitter e do facebook, que da luta contra a pobreza e a fome nada sabem, soltam as fúrias.

Podia continuar a dar exemplos mas na verdade eles levam-nos invariavelmente ao mesmo sítio: um país em que o poder é naturalmente de esquerda e em que a não esquerda tem a função de como oposição mostrar que a esquerda é democrática. Note-se que em Portugal ninguém se diz de direita. Logo aquilo que temos é uma definição do espaço político sobrante não por aquilo que é mas sim por não ser de esquerda, atitude que per si é vista como uma espécie de pecado original. Não admira portanto que ao não se ser de esquerda imediatamente se acabe classificado como fascista, capitalista, reacionário, neo-liberal… Afinal, da inteligência à honestidade., passando pela cultura e pela solidariedade, existe uma escala que coloca essas qualidades no topo à esquerda. Quanto mais para a direita se caminha mais ignorante e insensível se é. Se por acaso tal não sucede isso é a excepção que confirma esta regra.

O problema da não esquerda em Portugal é que não tem nome, não tem discurso, não marca a agenda e lá no fundo, no dia em que as contas o permitirem, gostava mesmo era de ser socialista.





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