domingo, 30 de novembro de 2014


É legítimo supor


José Gomes Ferreira

A propósito da detenção de José Sócrates, recordo por estes dias vários momentos da vida política do País e do exercício do jornalismo em Portugal.
5 de Janeiro de 2009.

No final do primeiro mandato e já em ano de eleições legislativas, o primeiro-ministro aceita dar uma entrevista televisiva à SIC, conduzida por mim e por Ricardo Costa.

No decurso da conversa tensa, crispada, José Sócrates é confrontado com um gráfico do próprio orçamento de Estado de 2009, que mostra o verdadeiro impacto das sete novas subconcessões rodoviárias em regime de parceria público privada: a conta a cargo do contribuinte é astronómica, mas só começará a ser paga...em 2014.

A reacção do político é de surpresa desagradável, de falta de argumentos rápidos, pela primeira vez em muitos momentos de confronto jornalístico com a realidade das políticas que estavam a ser lançadas como «as melhores para o país», sem alternativa válida. Na mesma entrevista, Ricardo Costa questiona o então primeiro-ministro sobre o verdadeiro impacto da política para o sector energético, que estava a invadir a paisagem com milhares de «ventoinhas» eólicas. A reacção evoluiu da surpresa negativa para a agressividade.

No balanço dessa entrevista, boa parte do País «bem pensante» insurgiu-se contra...os jornalistas. Os nomes que então nos chamaram estão ainda na internet, basta fazer uma pesquisa rápida.

Nesse ano de 2009, o governo tinha lançado um pacote de estímulo à economia no valor de dois mil milhões de euros – obtidos a crédito no exterior porque nem Estado nem privados tinham já poupança interna suficiente.

A maior parte do mega-investimento foi aplicada na renovação de escolas através da Parque Escolar. Uma crise decorrente de um brutal endividamento combatia-se com mais dívida.

No ano anterior, a Estradas de Portugal tinham visto os seus estatutos alterados por iniciativa do governo. Passava a ser uma entidade com toda a liberdade para se endividar directamente, sem limite. Ao então primeiro-ministro, ao ministro da tutela, ao secretário de estado das obras públicas, perguntei muitas vezes em público se sabiam o que estavam a fazer. E fui publicamente contestado por andar a «puxar o País para baixo».

Em 2007, o então ministro da Economia cedia por 700 milhões de euros a extensão da exploração de dezenas de barragens por mais 15 a 25 anos à EDP. Os próprios relatórios dos bancos de investimento valorizavam na altura esta extensão em mais de dois mil milhões de euros.

A meados de 2009 começa a ouvir-se falar do interesse da PT em comprar a TVI. O negócio é justificado pela administração da empresa como uma necessidade de as operadoras de telecomunicações, distribuidoras de conteúdos avançarem para o controlo da produção desses mesmos conteúdos.

Por aquela altura, já os casos, dos projectos da Cova da Beira, da licenciatura duvidosa e das alegadas luvas no Freeport faziam as páginas dos jornais e aberturas nas televisões.

Por aquela altura, o jornalista e gestor Luís Marques, dizia-me que era uma vergonha nacional Portugal ter um primeiro-ministro com indícios de ser corrupto. E que a nível internacional isso também já era notado.

Confesso que apesar das dúvidas que tinha sobre a condução dos grandes negócios de Estado, achei exagerada a afirmação. Sublinho a altura em que foi feita – finais de 2009.

O tempo, esse grande clarificador, fez o seu trabalho.

Muitas mais histórias ouvimos desde então sobre a mesma personalidade política.

Muitas investigações que já estavam em curso foram aprofundadas; muitas novas investigações foram iniciadas.

Desde há muito que está a ser questionada a legalidade da atribuição de concessões de barragens por valores irrisórios; que está a ser investigada a suspeita de favorecimento de decisores no processo das PPP rodoviárias; que foi investigada e estranhamente arquivada a suspeita de controlo deliberado da comunicação social através da compra de um grande grupo de comunicação social por uma empresa do regime; que se continuam a investigar a razoabilidade dos mega-investimentos em novas escolas e dos pagamentos avultados a determinados fornecedores...

Outras histórias mal-explicadas, como a da origem dos recursos para manter multiplicados sinais exteriores de riqueza, foram correndo o seu tempo e os seus termos, com ou sem intervenção das entidades de investigação...

O tempo, esse grande clarificador, faz sempre o seu trabalho.

A suspeita materializa-se agora sob a forma de detenção e prolongado interrogatório. A imprensa, desde sempre acusada de conspiração, destapa agora indícios de inquietantes conluios com receptadores e correios de verbas muito avultadas.

Só se surpreende quem não quis ver os sinais.

É legítimo supor que mais investigações levarão a mais resultados. É legítimo perguntar porque é que no ano 2010 aparecem 20 milhões de euros na conta de um amigo na UBS, na Suíça. E é legítimo lembrar que em Julho desse ano a PT vendeu a Vivo à Telefónica por 7.500 milhões de euros. E é legítimo imaginar que negócios desse tipo requeiram «facilitadores».

Face ao que aconteceu na história recente deste País, é legítimo a um jornalista e a qualquer cidadão interrogar-se sobre tudo isto e muito mais.

E é extraordinário ver que a maior parte do tempo de debate sobre esta mediática detenção é gasta em condenações à maneira de actuar das autoridades judiciais, como se fosse dever dos investigadores convidarem o suspeito para uma conversa amena num agradável bar de hotel, por ter ocupado o cargo que ocupou.

Não, o que está a acontecer em Portugal, com a queda do Grupo Espírito Santo e de Ricardo Salgado, as detenções de altos funcionários públicos no caso dos Vistos Gold e a detenção de José Sócrates, não é uma desgraça: é a grande clarificação do regime, a derrocada do Crony Capitalism, o capitalismo lusitano dos favores e do compadrio.

É revoltante saber que o Parlamento aprovou sem hesitar todos os regimes especiais de regularização tributária, os RERT I, II e III, quando sabiam que a respectiva formulação jurídica iria apagar todos os crimes fiscais associados à repatriação do dinheiro de origem obscura que tinha sido posto lá fora. Os deputados foram previamente avisados desse gigantesco efeito de «esponja» pelos mesmos altos responsáveis tributários que me avisaram a mim...

Os mesmos RERT que passaram uma esponja sobre as verbas de Ricardo Salgado e as do receptador agora identificado no caso do ex-primeiro-ministro.

Sim, o Parlamento continua lamentavelmente a ser a mesma central de interesses.

Mas há esperança. Tal como o País está a mudar, o Parlamento também há-de mudar.

A nós, cidadãos e jornalistas, assiste o direito de fazer perguntas, face a sinais estranhos que alguns políticos insistem em transmitir.

Face a esses sinais, é legítimo supor.





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