José Gomes Ferreira
A propósito da detenção de José Sócrates, recordo por estes dias vários momentos da vida política do País e do exercício do jornalismo em Portugal.
5 de Janeiro de 2009.
No final do primeiro mandato e já em ano de eleições legislativas, o
primeiro-ministro aceita dar uma entrevista televisiva à SIC, conduzida por
mim e por Ricardo Costa.
No decurso da conversa tensa, crispada, José Sócrates é confrontado com
um gráfico do próprio orçamento de Estado de 2009, que mostra o verdadeiro
impacto das sete novas subconcessões rodoviárias em regime de parceria público
privada: a conta a cargo do contribuinte é astronómica, mas só começará a ser
paga...em 2014.
A reacção do político é de surpresa desagradável, de falta de
argumentos rápidos, pela primeira vez em muitos momentos de confronto
jornalístico com a realidade das políticas que estavam a ser lançadas como
«as melhores para o país», sem alternativa válida. Na mesma entrevista, Ricardo
Costa questiona o então primeiro-ministro sobre o verdadeiro impacto da
política para o sector energético, que estava a invadir a paisagem com milhares
de «ventoinhas» eólicas. A reacção evoluiu da surpresa negativa para
a agressividade.
No balanço dessa entrevista, boa parte do País «bem pensante»
insurgiu-se contra...os jornalistas. Os nomes que então nos chamaram estão
ainda na internet, basta fazer uma pesquisa rápida.
Nesse ano de 2009, o governo tinha lançado um pacote de estímulo à
economia no valor de dois mil milhões de euros – obtidos a crédito no exterior
porque nem Estado nem privados tinham já poupança interna suficiente.
A maior parte do mega-investimento foi aplicada na renovação de escolas
através da Parque Escolar. Uma crise decorrente de um brutal endividamento
combatia-se com mais dívida.
No ano anterior, a Estradas de Portugal tinham visto os seus estatutos
alterados por iniciativa do governo. Passava a ser uma entidade com toda a
liberdade para se endividar directamente, sem limite. Ao então primeiro-ministro,
ao ministro da tutela, ao secretário de estado das obras
públicas, perguntei muitas vezes em público se sabiam o que estavam a
fazer. E fui publicamente contestado por andar a «puxar o País para baixo».
Em 2007, o então ministro da Economia cedia por 700 milhões de euros a
extensão da exploração de dezenas de barragens por mais 15 a 25 anos à EDP. Os
próprios relatórios dos bancos de investimento valorizavam na altura esta
extensão em mais de dois mil milhões de euros.
A meados de 2009 começa a ouvir-se falar do interesse da PT em comprar a
TVI. O negócio é justificado pela administração da empresa como uma necessidade
de as operadoras de telecomunicações, distribuidoras de conteúdos avançarem
para o controlo da produção desses mesmos conteúdos.
Por aquela altura, já os casos, dos projectos da Cova da Beira, da
licenciatura duvidosa e das alegadas luvas no Freeport faziam as páginas dos
jornais e aberturas nas televisões.
Por aquela altura, o jornalista e gestor Luís Marques, dizia-me que era
uma vergonha nacional Portugal ter um primeiro-ministro com indícios de ser
corrupto. E que a nível internacional isso também já era notado.
Confesso que apesar das dúvidas que tinha sobre a condução dos grandes
negócios de Estado, achei exagerada a afirmação. Sublinho a altura em que foi
feita – finais de 2009.
O tempo, esse grande clarificador, fez o seu trabalho.
Muitas mais histórias ouvimos desde então sobre a mesma personalidade
política.
Muitas investigações que já estavam em curso foram aprofundadas; muitas
novas investigações foram iniciadas.
Desde há muito que está a ser questionada a legalidade da atribuição de
concessões de barragens por valores irrisórios; que está a ser investigada a
suspeita de favorecimento de decisores no processo das PPP rodoviárias; que foi
investigada e estranhamente arquivada a suspeita de controlo deliberado da
comunicação social através da compra de um grande grupo de comunicação social
por uma empresa do regime; que se continuam a investigar a razoabilidade dos
mega-investimentos em novas escolas e dos pagamentos avultados a determinados
fornecedores...
Outras histórias mal-explicadas, como a da origem dos recursos para
manter multiplicados sinais exteriores de riqueza, foram correndo o seu tempo e
os seus termos, com ou sem intervenção das entidades de investigação...
O tempo, esse grande clarificador, faz sempre o seu trabalho.
A suspeita materializa-se agora sob a forma de detenção e prolongado
interrogatório. A imprensa, desde sempre acusada de conspiração, destapa agora
indícios de inquietantes conluios com receptadores e correios de
verbas muito avultadas.
Só se surpreende quem não quis ver os sinais.
É legítimo supor que mais investigações levarão a mais resultados. É
legítimo perguntar porque é que no ano 2010 aparecem 20 milhões de euros na
conta de um amigo na UBS, na Suíça. E é legítimo lembrar que em Julho desse ano
a PT vendeu a Vivo à Telefónica por 7.500 milhões de euros. E é legítimo
imaginar que negócios desse tipo requeiram «facilitadores».
Face ao que aconteceu na história recente deste País, é legítimo a um
jornalista e a qualquer cidadão interrogar-se sobre tudo isto e muito mais.
E é extraordinário ver que a maior parte do tempo de debate sobre esta
mediática detenção é gasta em condenações à maneira de actuar das autoridades
judiciais, como se fosse dever dos investigadores convidarem o suspeito para
uma conversa amena num agradável bar de hotel, por ter ocupado o cargo que
ocupou.
Não, o que está a acontecer em Portugal, com a queda do Grupo Espírito
Santo e de Ricardo Salgado, as detenções de altos funcionários públicos no caso
dos Vistos Gold e a detenção de José Sócrates, não é uma desgraça: é a grande clarificação
do regime, a derrocada do Crony Capitalism, o capitalismo lusitano dos favores
e do compadrio.
É revoltante saber que o Parlamento aprovou sem hesitar todos os regimes
especiais de regularização tributária, os RERT I, II e III, quando sabiam que
a respectiva formulação jurídica iria apagar todos os crimes fiscais
associados à repatriação do dinheiro de origem obscura que tinha
sido posto lá fora. Os deputados foram previamente avisados desse
gigantesco efeito de «esponja» pelos mesmos altos responsáveis tributários que
me avisaram a mim...
Os mesmos RERT que passaram
uma esponja sobre as verbas de Ricardo Salgado e as do receptador agora
identificado no caso do ex-primeiro-ministro.
Sim, o Parlamento continua lamentavelmente a ser a mesma central de
interesses.
Mas há esperança. Tal como o País está a mudar, o Parlamento também há-de
mudar.
A nós, cidadãos e jornalistas, assiste o direito de fazer perguntas,
face a sinais estranhos que alguns políticos insistem em transmitir.
Face a esses sinais, é legítimo supor.
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