José Ribeiro e Castro, Público, 14 de Janeiro de 2015
Custa compreender a persistente mistificação alimentada a respeito dos feriados banidos.
A primeira é a lenda fantástica da suspensão encantada. Contaram-me um provérbio antigo: «a palavra é criação do diabo para o homem esconder aquilo que pensa». Nunca li a existência do provérbio, mas já o tenho visto acontecer. Não podemos, porém, levá-lo a sério. Quando alguém diz ou escreve, diz ou escreve o que quer significar.
Há duas palavras bem distintas: uma é «suspensão»; outra é «eliminação». Se eu quero suspender, escrevo «suspensão»; se quero eliminar, escrevo «eliminação». Se se escreveu «eliminação», é porque se quis eliminar; porque, caso se quisesse suspender, ter-se-ia escrito «suspensão».
Custa compreender a persistente mistificação alimentada a respeito dos feriados banidos. Por exemplo, a frase «não houve eliminação de feriados, mas sim a suspensão de quatro dias feriados» resolve-se com três palavras apenas: não-é-verdade. Os quatro feriados foram eliminados. Ainda hoje, os feriados estão eliminados. Para os repor, no todo ou em parte, é preciso repô-los. Não há qualquer suspensão que viesse a esfumar-se assim, candidamente, sem nada ter de fazer. Vigora uma eliminação.
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Surpreende que a comunicação social embarque acriticamente na mistificação, contribuindo para a desinformação do público, quando os factos e os textos são claros.
A lei votada em Maio de 2012, na Assembleia da República, não pode ser mais clara no seu texto: «A eliminação dos feriados de Corpo de Deus, de 5 de Outubro, de 1 de Novembro e de 1 de Dezembro, resultante da alteração efectuada pela presente lei ao n.º 1 do artigo 234.º do Código do Trabalho...» E quem consultar, hoje, este artigo 234.º, que contém o catálogo legal dos feriados, verificará que aqueles quatro dias já lá não constam. Sumiram… Foram apagados.
A inicial proposta de lei do Governo, aprovada em Conselho de Ministros de Fevereiro de 2012, não escondia, aliás, o propósito, na Exposição de Motivos: «no domínio dos feriados, procede-se à redução do catálogo legal, mediante a eliminação de quatro feriados, correspondentes a dois feriados civis e a dois feriados religiosos». As palavras são claras. E ficaram em letra de lei. Não houve suspensão. Porquê? Porque quem tinha o poder de determinar não o quis; quis eliminar.
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O que aconteceu foi reacção cívica contra isso, nomeadamente a que tenho animado no Movimento 1.º de Dezembro. Assim se produziram mudanças.
Daqui
resultou um imbróglio sério, para que logo chamei a atenção e em que insisti.
Ocorreram peripécias que me poupo de contar. E é no rescaldo disto que, quase
um ano depois, em nova alteração ao Código do Trabalho publicada em Agosto de
2013, é feita uma primeira correcção, ficando a norma assim: «A
eliminação dos feriados de Corpo de Deus, de 5 de Outubro, de 1 de Novembro e
de 1 de Dezembro, resultante da alteração efectuada pela presente lei ao n.º 1
do artigo 234.º do Código do Trabalho (…) será obrigatoriamente objecto de
reavaliação num período não superior a cinco anos».
Foi um
acrescento metido a martelo, quase clandestinamente, com técnica jurídica
original (uma lei preambular que altera outra lei preambular), enxertado em
revisão do Código de Trabalho em matéria bem diversa (as indemnizações por
despedimento) e que nem figurava na proposta inicial, nem no texto de
substituição que subiu a debate no plenário. Entrou apenas à última da hora em
votação na especialidade, nas sessões finais de Julho, antes das férias de
Verão.
Porém,
mesmo após esta correcção cirúrgica, nem aí pode ler-se «suspensão»: a lei
continua a dispor «eliminação» e comina apenas uma vaga obrigação de «reavaliação»,
seja o que for.
Se
houve erro na expressão da vontade política e, nomeadamente, na tradução do
acordado com a Santa Sé, há que rever novamente a lei, por forma a fazê-la
corresponder ao efectivo pensamento do legislador: se se quis suspensão, é
suspensão que tem de ficar escrito. As palavras falam. E vinculam.
Outra lenda é a de que acordos internacionais impedem, agora, de mexer no assunto. Suponho que a lenda se refira ao diálogo com a Santa Sé e ao tal acordo que tudo permitiria deslindar, mas que mora no segredo dos deuses – e de alguns homens também. É a suave lenda dos acordos misteriosos.
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Outra lenda é a de que acordos internacionais impedem, agora, de mexer no assunto. Suponho que a lenda se refira ao diálogo com a Santa Sé e ao tal acordo que tudo permitiria deslindar, mas que mora no segredo dos deuses – e de alguns homens também. É a suave lenda dos acordos misteriosos.
Todavia,
nada nos impede de eliminar a eliminação de feriados – amanhã mesmo, se o
quiséssemos. Ou de levantar a suspensão, se de suspensão se tratasse.
O
Estado Português estava impedido de cancelar feriados contra a Concordata – mas
foi o que fez. Daí o tal acordo secreto, que não se conhece. Face à situação
criada, eu sustento que, diga esse acordo o que disser, a nossa lei ficou
ilegal à luz do Direito Internacional, por violar um catálogo de feriados
religiosos que consta da Concordata e que, nos termos da Constituição, entrou
directamente em vigor – e está, portanto, em vigor. Esse processo jurídico
seria, porém, tão complexo que o melhor é resolver as coisas politicamente. E
com bom senso.
A
posição jurídica do Estado Português diante da Santa Sé é, hoje, frágil. E
tornar-se-á absolutamente insustentável ao expirar dos cinco anos de que falam
os dois comunicados trocados a 8 de Maio de 2012.
Porém,
se, hoje mesmo, o Estado Português quisesse de novo realinhar a lei com o
catálogo expresso da Concordata, não haveria obviamente problema algum. Antes
pelo contrário: estaria reconstituído o Direito.
A última lenda tem a ver com a troika. Que se saiba, objectivamente, a troika não meteu aqui prego, nem estopa. Não há no Memorando de Entendimento de Maio de 2011 uma só referência à eliminação ou suspensão de feriados. Pior: o que foi legislado contraria o próprio Programa de Governo. Nas versões posteriores do Memorando, que várias foram, tão-pouco consta o assunto. Não recordo um só dos doze relatórios de avaliação que o referisse, erigindo-o como uma condicionalidade satisfeita. E não tenho ideia de alguma vez ter sido valorizado nas inúmeras reuniões da Comissão de Acompanhamento com a troika.
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A última lenda tem a ver com a troika. Que se saiba, objectivamente, a troika não meteu aqui prego, nem estopa. Não há no Memorando de Entendimento de Maio de 2011 uma só referência à eliminação ou suspensão de feriados. Pior: o que foi legislado contraria o próprio Programa de Governo. Nas versões posteriores do Memorando, que várias foram, tão-pouco consta o assunto. Não recordo um só dos doze relatórios de avaliação que o referisse, erigindo-o como uma condicionalidade satisfeita. E não tenho ideia de alguma vez ter sido valorizado nas inúmeras reuniões da Comissão de Acompanhamento com a troika.
A troika tem
as costas largas. É a terrível lenda do dragão da troika.
Por
isso, depois de o Governo – e bem – ter enfrentado a troika na
questão do salário mínimo, menos compreendo que não se reponha já o feriado
incomparável: o 1.º de Dezembro. Que não volte já o feriado que celebra o valor
único da independência nacional de Portugal e, por isso, é o feriado dos
feriados, o mais alto dos feriados nacionais. E que, a partir daí, se
esclarecesse também com a Igreja a festividade religiosa que deveria ser já
reposta (em minha opinião, o 1 de Novembro) e se abrisse um diálogo
institucional sério para resolução concertada e duradoura desta matéria.
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